O escritor moçambicano Mia Couto conhece o racismo por dentro e sabe o quanto ele custa. Para ele, a agressão maior do preconceito é anular a individualidade das pessoas

Filho de emigrantes portugueses, Mia Couto nasceu em Moçambique, no sudeste da África, e cresceu sob uma cultura mestiça, como no Brasil. Talvez por isso, sempre considerou um equívoco os critérios geopolíticos dos colonizadores europeus do século XIX que definiram o desenho das fronteiras da África. Para ele, a expressão “África Negra”, designada para denominar a África Subsaariana, é um exemplo desse erro. “Não há países negros e também não podemos falar de países brancos”, afirma.

Autor de uma extensa obra literária que inclui poesia, contos, crônicas e romances, Mia é o escritor moçambicano mais traduzido no mundo, com livros publicados em 22 países. Além da dedicação à ficção e ao jornalismo, foi também professor de biologia e militante da independência de Moçambique, quando era um jovem com sonhos românticos e revolucionários. Seu primeiro livro de poesia, Raiz de Orvalho, foi publicado em 1983.

Além de compartilhar com os brasileiros a herança linguística e cultural portuguesa, Mia Couto tem uma relação muito próxima com o país. É membro correspondente da Academia Brasileira de Letras e visita o Brasil com frequência para participar de debates e feiras literárias. Na sua passsagem mais recente, como conferencista do seminário Fronteiras do Pensamento, em São Paulo, conversou com a PLANETA.


Mia Couto, 59 anos, nasceu em Beira, segunda maior cidade de Moçambique, e já publicou mais de 30 livros. No Brasil, tem 16 títulos editados pela Companhia das Letras, entre eles o celebrado romance Terra Sonâmbula (2007). Em 2013, recebeu o Prêmio Camões, o mais relevante da língua portuguesa, pelo conjunto da obra

 

A última vez que a África conquistou a atenção da mídia brasileira foi com a paranoia do ebola. O sr. acha que a epidemia reavivou o estigma antiafricano?
O estereótipo de um continente escuro que tem, dentro de si, o inferno e o paraíso é algo que sobrevive. A força desse preconceito foi reduzida nas últimas décadas. Mas é preciso estar claro que apenas o verniz foi afetado. A responsabilidade maior nesse combate cabe aos próprios africanos. Tudo o que se ganhou na eliminação dos estigmas foi conquistado com luta. Mas também a maior parte do que sobrevive como preconceito é criado pelos próprios africanos. Grande parte dos regimes e das elites da África tem pouca preocupação em negar – por meio do exemplo, e não apenas pelo discurso – essa ideia de um continente visível apenas pela desgraça. Depois da síndrome do pânico causada pela gripe aviária em 2005, que se confirmou ter sido manipulada, existe uma reserva de desconfiança por parte de certa opinião pública. A fabricação do medo pode estar a serviço dos interesses da poderosa indústria farmacêutica. No caso do ebola, temos que reabilitar a confiança naqueles que avaliam o perigo real.

O sr. é um crítico dos estereótipos. O que acha da percepção brasileira de Moçambique?
Surpreendentemente, os moçambicanos têm uma ideia atualizada sobre o Brasil. Pode ser idealizada, já que parte dela vem das telenovelas. Mas, apesar da pobreza e dos altos níveis de analfabetismo no meu país, o Brasil é tido como um parente e sobre ele sempre há notícias. Uma vez mais, porém, prevalece entre os moçambicanos uma visão redutora e generalista sobre uma nação tão plural e diversa como o Brasil. Já os brasileiros praticamente desconhecem Moçambique. É raro encontrar alguém informado a respeito. Há mais interesse moçambicano pelo Brasil do que interesse brasileiro por Moçambique.

Na sua opinião, a independência tardia dos países africanos que falam a língua portuguesa manteve-os mais próximos de Portugal do que do Brasil?
O Brasil nunca teve uma política definida para o continente africano, a não ser recentemente. Nem sei se tinha uma política para a América Latina, da qual geograficamente é parte integrante. Trata-se de um território imenso, cujos limites parecem ser o último horizonte. Num determinado momento, quando o Brasil olhava para fora era apenas para olhar para cima, para os Estados Unidos da América. Aqueles indivíduos que reivindicavam uma proximidade com a África tinham pouco poder de influência. E muitas vezes falavam de uma África que apenas existia na sua cabeça. Uma referência nostálgica, outras vezes messiânica.


O porto de Maputo, centro cosmopolita de Moçambique

O sr. conhece a experiência brasileira da política de cotas raciais?
Evito falar disso. Fiz, uma vez, um comentário sobre a política de cotas no Brasil e fui atacado de maneira virulenta, o que sugere que fala-se nesse assunto movido mais por paixão do que por razão. É importante corrigir distorções provocadas por uma dominação secular baseada na raça. Se esses acertos forem fundamentados num critério de raça, existe um enorme risco de perpetuarmos uma abordagem racista. Não é a raça que cria o racismo. É o inverso: é o racismo que inventa a raça. Do meu ponto de vista, a maior agressão do racismo é anular a individualidade da pessoa, transformá-las em um “branco” ou um “negro”. O racismo vê raças naquilo que deviam ser pessoas singulares. Nesse sentido, não existem países negros e também não podemos falar de países brancos.

Como era ser branco e lutar contra o colonialismo português?
Sofri, nessa altura, da benévola cegueira de não me ver branco. Não me faziam ver assim. Eu era um moçambicano que queria lutar contra a ditadura colonial. Foi assim que me receberam. Eu era filho de portugueses, com uma cultura mestiça e uma percepção poética do mundo. Lembro-me do momento em que, na clandestinidade, fui avaliado para ser aceito como militante da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique). Havia uma comissão que escutava aquilo que se chamava “a narração do sofrimento” de cada um dos candidatos. Numa casa escura, num evento subterrâneo clandestino para escapar à polícia fascista, uma dúzia de homens negros e adultos desfilavam narrativas de sofrimento que faziam chorar as pedras. Eu era o único branco. Aguardava pela minha vez e me perguntava, constrangido: “O que sofri eu, na minha vida?” A resposta era “nada”, em comparação com aquela gente. Quando chegou a minha vez, dei um passo à frente e permaneci emudecido e vazio. Por sorte, um dos camaradas me identificou e perguntou: “Você não é aquele poeta que publica no jornal?” Respondi que sim. Então, disseram: “Entre, precisamos de poesia”.

Quem era você quando se aproximou da Frelimo nos anos 60?
Eu era um jovem que sonhava em ser guerrilheiro e ir para a mata. Sonhava ser Che Guevara. Mas isso não aconteceu. Apesar de pertencer a um movimento de libertação, nunca peguei numa arma. Hoje, fico grato por isso nunca ter acontecido. Não sei se alguma convicção poderia resolver o trauma de disparar contra um ser humano. Mas a luta política foi uma escola humana em que cresci e que me fez interrogar a própria política e as certezas que me moviam naquela altura.

O sr. disse que, conquistada a independência, os moçambicanos pareciam ter apagado a memória da guerra. Como isso é possível?
Não havia ingenuidade nessa escolha. Os moçambicanos sabiam que era impossível esquecer uma guerra que matou um milhão de pessoas. Ninguém pode ter tamanho esquecimento. Contudo, o que eles pretendiam era o inverso: que a guerra se esquecesse deles. Para tanto havia, pois, que colocar o pé da ausência sobre a caixa de Pandora. Porque se percebia também que as tensões que causaram o conflito armado estavam ainda presentes, mesmo depois do acordo de paz.


Vendedor de artesanato no mercado de Maputo

O sr. já definiu a sua literatura como uma expressão de sobrevivência com leões rondando a tenda. Como assim?
Essa expressão resulta do ocorrido numa certa noite, quando eu estava acampado numa mata numa região remota do norte de Moçambique, para fazer um trabalho de biólogo. Vieram chamar-me para anunciar que ali perto havia um homem morto. Era uma noite escura e, quando saí por um atalho em meio à floresta fechada, explicaram-me que o fulano acabara de ser morto por um leão que rondava por ali, nas redondezas, rugindo. Regressei à tenda paralisado pelo medo. De maneira mecânica, acendi a lanterna e comecei a escrever. Escrevia como se inspirasse profundamente, sem entender o que fazia, ouvindo os rugidos. Percebi, depois, que era na escrita que encontrava refúgio. A escrita é a minha casa, meu abrigo. Não contra as feras que rondam, mas contra os meus monstros interiores.

Como faz para conciliar poesia com prosa?
Não entendendo que sejam duas coisas diversas. Não há nada a conciliar, portanto. Sinto que faço sempre poesia. Mesmo quando não escrevo em verso. Escrevo como se anotasse na margem imaterial da página, ali onde cabem vozes e nenhuma caligrafia é possível.

Quais são os escritores de língua portuguesa que o sr. admira?
João Guimarães Rosa, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andrade, Sophia de Mello Breyner, João Cabral de Melo Neto. E o poeta moçambicano José Craveirinho.

Como é a sua família moçambicana?
Com exceção dos meus pais, que eram portugueses, todos meus familiares diretos são moçambicanos. Vivemos na mesma cidade, Maputo (ex-Lourenço Marques), capital de Moçambique. Gosto muito de viajar com meus filhos e apresentar-lhes a África. Quando meu neto viu uma cobra pela primeira vez, perguntou: “Vô, que animal é esse que só tem pescoço?”. Somos uma tribo com práticas clânicas. Festejamos a nossa identidade singular como se fosse uma nação.