30/08/2020 - 13:07
Caracterizadas por sua rápida disseminação e altas taxas de mortalidade, as epidemias – sejam elas ligadas a doenças bacterianas, como peste bubônica e cólera, ou a vírus, como varíola, gripe e HIV/aids – deixaram sua marca na história da humanidade desde os tempos pré-históricos.
Essas epidemias foram responsáveis por um grande número de mortes – ocasionalmente resultando em desastres demográficos – e até mesmo mudaram o curso da história algumas vezes. A Grande Peste que atingiu Atenas entre 430 e 426 a.C. certamente precipitou a queda da cidade sitiada. As populações dos impérios inca e asteca foram dizimadas pela varíola, trazida pelos conquistadores espanhóis no século 16. Muitos historiadores acreditam que a gripe espanhola ajudou a acelerar o fim da Primeira Guerra Mundial.
A falta de conhecimento sobre as doenças que causam essas epidemias e seus modos de infecção levou as autoridades, desde muito cedo, a tomar as únicas medidas sanitárias possíveis para limitar sua propagação. Os exemplos incluem o isolamento dos doentes, desde o século 8, para impedir a propagação da lepra (hanseníase); depois, o confinamento no século 14, para conter a praga, que era galopante na época. No mar, os cadáveres de pessoas infectadas que morriam em navios eram atirados às águas.
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As primeiras medidas de isolamento sanitário forçado foram tomadas em Ragusa (agora Dubrovnik, na Croácia) no século 14; depois, em Veneza, no século 15. Ambas as cidades impuseram várias semanas de quarentena aos navios na época. Essa medida se espalhou nos principais portos, incluindo Gênova e Nápoles, na Itália, e Marselha, na França.
A busca por bodes expiatórios
As consequências de tais medidas revelaram-se muito desfavoráveis para o comércio. Como a Peste Justiniana que assolou diferentes partes do mundo do século 6 ao 8, a Peste Negra que atingiu a Europa em meados do século 14 perturbou gravemente as rotas comerciais tradicionais. A bacia do Mediterrâneo foi abandonada em favor da região de Flandres, que se tornou um importante centro comercial na Europa.
Na verdade, o desejo de não prejudicar o comércio foi um fator significativo no gerenciamento de epidemias – muitas vezes atrasando drasticamente as medidas para conter sua disseminação. Não era incomum que comerciantes e políticos tentassem encobrir sua existência.
A história das epidemias também é marcada pelo surgimento de movimentos populares contra determinados grupos sociais acusados de serem os causadores da doença. A perda massiva, simultânea e repentina de vidas humanas gerou tal sensação de medo e desordem que levou a uma busca para encontrar os culpados – na maioria das vezes, as populações mais pobres e marginalizadas, que foram então discriminadas.
Sofrimento generalizado
As pandemias causaram sofrimento generalizado, afetando famílias e aldeias inteiras. A Peste Negra matou cerca de 25 milhões a 40 milhões na Europa – entre um terço e metade da população na época. Demorou mais de dois séculos para o continente recuperar sua população anterior.
A gripe de 1918 causou a morte de cerca de 50 milhões de pessoas em todo o mundo. É difícil imaginar o estado de devastação que essa pandemia deve ter causado no final da Primeira Guerra Mundial.
Diante da morte e do inexplicável, esses desastres levaram os humanos a refletir sobre sua condição. Os acontecimentos também impulsionaram o avanço na busca por tratamentos e medidas preventivas. Embora a medicina ainda estivesse engatinhando no final da Idade Média, certas medidas de higiene estavam começando a ser impostas. Já no século 14, a roupa de cama dos pacientes era trocada. Após a epidemia de cólera que atingiu Londres em meados do século 19, as autoridades começaram a monitorar o abastecimento de água.
Surgimento de políticas públicas de saúde
A sucessão de epidemias mortais levou muitos países a entender que é mais caro tratar uma crise de saúde do que evitá-la. O cólera, uma doença preeminentemente social, destacou as condições deploráveis em que vivia e trabalhava a maioria dos habitantes do mundo. A necessidade de implementar políticas de saúde de longo prazo surgiu gradualmente – promover medidas de higiene, adotar códigos sanitários e conduzir pesquisas sobre as causas das doenças e sua prevenção.
Como as doenças não respeitam fronteiras, a cooperação internacional em saúde pública desenvolveu-se durante a segunda metade do século 19. Isso resultou em uma série de conferências e na elaboração de convenções internacionais de saúde.
Em um esforço para prevenir a propagação de epidemias – especialmente cólera e a peste –, enquanto limitavam o comércio e a livre circulação de pessoas na medida do possível, 12 estados europeus organizaram a primeira Conferência Internacional de Saúde em Paris, em 1851. Isso resultou em um projeto de Convenção Sanitária Internacional, acompanhado de regulamentos internacionais relativos à peste, febre amarela e ao cólera.
Embora conferências semelhantes se seguissem, só em 1903 uma Convenção Internacional de Saúde foi adotada, e só na segunda metade do século 20 a Organização Mundial da Saúde (OMS) foi criada, no rescaldo da Segunda Guerra Mundial.
Crise no modo de vida
Embora as epidemias sejam causadas pela circulação de micróbios e vírus, isso não as explica totalmente. Muitas vezes, são também o resultado de crises ambientais, alimentares, migratórias, de saúde, econômicas ou políticas. As epidemias agem como um fator agravante em crises preexistentes, muitas vezes causadas por guerra e fome.
A atual pandemia não é exceção. Isso marca uma crise em nosso modo de vida. Estudos científicos mostram que é a degradação sistemática da natureza a causa raiz da pandemia de covid-19 – pecuária industrial e desmatamento em particular. O desmatamento generalizado está exercendo pressão insustentável sobre os habitats, forçando os animais a saírem de seus ambientes naturais e encorajando os patógenos a saltar de uma espécie para outra – como foi o caso dos vírus ebola e zika.
As epidemias colocam a humanidade à prova, com uma ameaça coletiva, seguida de luto. Mas a história tem nos mostrado que sempre têm um fim – e que a partir de cada um, a humanidade soube se reinventar e até fazer alguns avanços. A atual pandemia pode igualmente levar a um mundo que respeita mais o meio ambiente e a vida humana.
* Ana María Carrillo Farga é historiadora médica, especialista em pandemias e professora do Departamento de Saúde Pública da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam).