23/05/2025 - 12:29
Ele fotografou trabalhadores, indígenas e paisagens colossais, percorreu dezenas de países e marcou como poucos a fotografia do novo milênio. Aos 81 anos, fotógrafo brasileiro parou de contar histórias com sua lente.Se no princípio a pobreza, a guerra e o deslocamento foram os principais motivos que caracterizaram as fotografias em preto e branco de Sebastião Salgado, mais tarde, o fotógrafo documental brasileiro transformou sua obra numa homenagem colossal ao planeta.
E explicou também o caráter narrativo de sua obra: “Eu escrevo com a máquina fotográfica, é a língua que escolhi para me exprimir”, disse certa vez. “De alguma forma, meu ponto de vista – muito focado no social e na comunidade – não é muito diferente dos conceitos básicos da maioria das religiões. Leva tempo, e muito, para compor uma narrativa coerente: você não tira uma foto. Você constrói uma história. Afinal, acho que fotógrafos documentais são pessoas que gostam de contar histórias.”
Nesta sexta-feira (23/05), o homem que elevou a fotografia documental ao pedestal artístico morreu, aos 81 anos.
Sebastião Ribeiro Salgado Júnior nasceu em 8 de fevereiro de 1944 em Conceição do Capim, distrito do município de Aimorés, no Vale do Rio Doce, na divisa entre Minas Gerais e Espírito Santo.
Filho caçula com mais sete irmãs, o “Tião” ‒ como era chamado pelos mais antigos ‒ foi um menino “muito levado e ativo”, disse uma vez sua irmã mais velha, acrescentando que seu pai queria que o único filho fosse advogado.
Salgado chegou a cursar um ano de direito, antes de se formar em economia, em Vitória. Dali, seguiu com uma bolsa de pós-graduação para a USP, onde conheceu a esposa, a arquiteta Lélia Wanick. Em 1969, durante a ditadura militar, Salgado se mudou para Paris e escreveu sua tese de doutorado em Ciências Econômicas.
Pouco tempo depois, em 1971, passou a trabalhar para a Organização Internacional de Café (OIC) e a fazer viagens à África. Foi no continente africano que Sebastião Salgado descobriu sua paixão pela fotografia e a possibilidade que esse meio lhe proporcionava de retratar, mais do que textos e estatísticas, a realidade socioeconômica da região.
Mais tarde, ele viria a falar sobre seu trabalho: “Nossa história é a história da comunidade, não da individualidade. Esse é o ponto de vista da minha fotografia e o ponto de partida de todo o meu trabalho.”
Ao retornar a Paris em 1973, ele deu início à carreira de fotojornalista. Como freelancer, Salgado trabalhou durante a década de 70 para as agências Gamma, cobrindo a Revolução dos Cravos em Portugal e a guerra civil em Angola e Moçambique, e Sygma, que o enviou para dezenas de países na Europa, África e América Latina.
Em 1979, passou a fazer parte da lendária agência Magnum Photos, cooperativa fundada por alguns dos fotógrafos mais célebres do século 20, como Robert Capa e Henri Cartier-Bresson. Dois anos depois, ele foi encarregado pela Magnum de cobrir os cem primeiros dias do governo de Ronald Reagan.
Salgado capturou em sua lente um fato que iria mudar sua vida: o atentado a tiros contra o então presidente americano em 30 de março de 1981. Essas imagens correram o mundo e lhe proporcionaram financiar seus primeiros projetos pessoais.
Ao contrário dos fotógrafos de “notícias”, Salgado preferiu não correr atrás de eventos atuais imediatos, mas ir aonde nada acontece, exceto a persistência de uma situação, crítica ou simplesmente peculiar. Muitos desses projetos e seus volumes de fotos foram criados em cooperação com organizações como Médicos Sem Fronteiras, Unicef, Unesco e Repórteres Sem Fronteiras.
Depois de seis anos documentando em preto e branco as populações rurais e indígenas na América Latina, Salgado lançou em 1986 seu primeiro livro de fotografias: Outras Américas. No mesmo ano, ele também publicou Sahel: O Homem em Pânico, onde retrata os refugiados da seca e o trabalho dos voluntários na região semiárida do Sahel, ao longo de Etiópia, Sudão, Chade e Mali.
Entre 1986 e 1992, ele viajou por um total de 23 países como parte de um projeto de longo prazo focado nas lutas dos trabalhadores manuais e no questionamento do desequilíbrio econômico entre países ricos e pobres.
O livro de fotografias resultante – Trabalhadores: Uma arqueologia da era industrial – destacou as duras condições de trabalho nas lavouras de cana ou no formigueiro humano nas minas de ouro de Serra Pelada, no Brasil; nas plantações de chá em Ruanda; na construção de uma barragem na Índia ou nos poços de petróleo no Kuwait.
Essas fotografias em preto e branco lhe renderam fama mundial e a exposição relacionada Trabalhadores foi exibida em mais de 60 museus. Em 1994, Salgado montou com sua esposa a própria agência para distribuir suas fotos: Amazonas images.
E foi o próprio fotógrafo quem explicou sua opção pela fotografia em preto e branco: “Nada no mundo é em branco e preto. Mas o fato de eu transformar toda essa gama de cores em gamas de cinza me permitiu fazer uma abstração total da cor e me concentrar no ponto de interesse que eu tenho na fotografia. A partir desse momento, eu comecei a ver as coisas realmente em branco e preto.”
De 1993 a 1999, o fotógrafo voltou sua atenção para o fenômeno global de deslocamento em massa de pessoas, que resultou em Êxodos e Retratos de Crianças do Êxodo. Ambos foram publicados em 2000 e alcançaram sucesso mundial. Na época, esses livros chamaram atenção para o desalojamento de 30 milhões de pessoas em todo o mundo. Quando essas obras foram republicadas em 2016, o número mundial de refugiados já havia aumentado para 60 milhões.
Esse projeto, no entanto, abalou seriamente a saúde do fotógrafo, que decidiu parar um tempo com a fotografia. Em entrevista, Salgado afirmou sobre esse período: “Estava acabado. Passei sete anos fotografando refugiados fugindo de guerras. Nos campos de refugiados do Congo, em Goma, em 1994, 12 mil ruandeses morriam por dia. Eu estive ali. O que vi em Ruanda foi tão brutal que abandonei a fotografia.”
Para se recuperar, ele voltou para casa no Brasil, onde ele e a esposa descobriram com desânimo que a Fazenda Bulcão, de seus pais, havia se atrofiado. A floresta tropical, que anteriormente compunha metade da área, encolheu para menos de 1%. Lélia e Sebastião Salgado começaram assim seus esforços para reflorestar a região.
Em 1998, eles converteram 680 hectares numa reserva natural e fundaram o Instituto Terra, conseguindo plantar 2,7 milhões de árvores e recuperar a floresta a uma condição predominantemente original.
Após essa experiência, Salgado voltou a trabalhar como fotojornalista e dedicou sua atenção à fotografia paisagística. No projeto África (2007), ele posicionou imagens de pessoas marcadas por fome, guerra e deslocamento ao lado de fotografias de paisagens de tirar o fôlego. Esse método causou alguma irritação entre os críticos; por um lado, ele foi acusado de estetizar a miséria e transformá-la em kitsch.
O crítico Jean-François Chevrier, por exemplo, não hesitou em desqualificar a obra de Salgado, acusando-o de fazer “voyeurismo sentimental”. Por outro lado, seus apoiadores elogiaram a empatia contida em suas imagens, chamando atenção para sua política de nunca fotografar alguém contra a vontade e louvando sua abordagem respeitosa, que sempre defendia a dignidade de seus sujeitos.
Segundo o historiador Pedro Karp Vasquez, o trabalho de Salgado pode ser comparado ao dos fotógrafos Eugene Smith (1918-1978) e Henri Cartier-Bresson (1908-2004). Com Smith, diz Vasquez, Salgado compartilha a solidariedade com o ser humano, o que se vê no certo ar de gravidade e no sentimento do trágico que permeiam suas fotos. Em relação a Cartier-Bresson, ele divide o apurado senso de composição, o chamado “instante decisivo”: o momento fugaz em que todos os elementos constitutivos de uma determinada cena se harmonizam num instante expressivo, apontou o historiador.
Depois da dolorosa experiência em Ruanda e sua posterior volta ao Brasil, em 2004, Sebastião Salgado deu início a um projeto hercúleo, lançado em 2015 sob o título Gênesis. O fotógrafo passou oito anos viajando por lugares remotos do planeta para mostrar que, apesar da ameaça sobre a vida na Terra, ainda existem regiões alheias à noção de progresso. Cenários de natureza intocada, animais e povos indígenas que sobrevivem intactos em seus costumes ancestrais.
Nesse projeto, Salgado abandonou suas características retratistas, criando uma homenagem colossal ao planeta. Essa mudança em sua carreira é contada no filme O Sal da Terra, rodado pelo diretor alemão Wim Wenders junto a Juliano Salgado, filho mais velho do fotógrafo, e indicado ao Oscar de melhor documentário em 2015.
No final de 2017, Sebastião Salgado passou a integrar, como primeiro brasileiro, a Academia de Belas-Artes da França e, um ano depois, ele se tornou o primeiro fotógrafo a ser agraciado com o Prêmio da Paz do Comércio Livreiro Alemão, uma das premiações literárias mais prestigiadas da Alemanha.
A Federação do Comércio Livreiro justificou a escolha do nome do brasileiro afirmando que, com suas fotografias, Salgado é um artista visual que promove a “justiça e paz sociais” e confere urgência ao “debate mundial sobre a proteção da natureza e do clima”. Depois do pintor Anselm Kiefer, ele é o segundo nome das artes visuais a receber a honraria, concedida desde 1950.
Em seu discurso de agradecimento, Sebastião Salgado classificou sua obra como um “ensaio fotográfico”, que ele começou há 50 anos e que ainda continua a complementar. E, ao falar sobre as viagens à Amazônia, Salgado criticou na ocasião o presidente Jair Bolsonaro pelas políticas relacionadas aos povos indígenas e ao meio ambiente. “A Amazônia está nas notícias agora pela política criminosa do presidente brasileiro. Os povos indígenas vivem com medo.”
E foi à Amazônia que ele dedicou um de seus últimos projetos: a partir de 2013, Salgado passou a retratar em preto e branco 13 tribos amazônicas, como os suruwahas, que vivem sem cacique ou qualquer outra hierarquia numa pequena comunidade no sul do Amazonas; ou os corubos, que entraram em contato com a civilização somente há poucos anos. O projeto Amazônia se transformou num livro e numa exposição. “Eu pensava que ficaria meses em processo de adaptação a eles [indígenas], mas foi um processo de horas”, disse o fotógrafo na ocasião.
Depois de percorrer dezenas de países, no final de sua vida, Sebastião Salgado continuou viajando e contando histórias com sua máquina fotográfica, sempre fiel ao que disse certa vez: “Saí em busca do planeta, encontrei a mim mesmo”, pois “a viagem interior foi muito maior que a duríssima viagem exterior.”