05/07/2025 - 12:00
Desde que Israel passou a controlar distribuição de ajuda humanitária, multiplicam-se relatos de civis feridos próximo a esses centros. “As pessoas estão se sacrificando para sobreviver”, diz palestino que perdeu filho.Mahmoud Qassem perdeu o filho Khader no final de junho. O jovem de 19 anos tentava chegar a um centro de distribuição de alimentos na Faixa de Gaza operado pela Gaza Humanitarian Foundation (GHF), entidade apoiada por EUA e Israel.
“A última vez que a mãe dele e eu falamos com ele foi às 23h daquela noite. Ele disse que estava em um lugar seguro – ele tinha ido ao centro de distribuição de Netzarim –, e eu disse para ele se cuidar”, contou Qassem à DW de uma tenda na Cidade de Gaza onde a família está abrigada.
“À 1h da manhã, tentei ligar de novo, mas o telefone dele não estava recebendo chamadas. Comecei a ficar ansioso. Não houve notícia todo o tempo, e esperei até as 14h do dia seguinte. Sentia como se um fogo queimasse dentro de mim”, disse o homem de 50 anos.
No dia 27 de junho, Qassem foi ao centro da Faixa de Gaza e procurou nos hospitais até descobrir que Khader havia sido morto. Quando o corpo foi finalmente recuperado, após coordenação com o exército israelense, viu-se que ele exibia diversas marcas de tiro.
“Um garoto de 19 anos que nem sequer tinha começado a viver a vida, tudo por buscar uma caixa [de alimentos]”, disse Qassem, mal contendo as lágrimas. Khader fizera a jornada contra a vontade do pai, por sentir que precisava sustentar a família.
“A situação aqui é indescritível. As pessoas estão se sacrificando para sobreviver. Só Deus sabe o que estamos passando. Ninguém sente por nós – nem o Hamas, nem Israel, nem os países árabes, ninguém.”
Escassez severa de comida e outros mantimentos em Gaza
Relatos quase diários de violência, feridos e mortos ligados à distribuição de alimentos e ajuda humanitária expõem as condições insuportáveis enfrentadas pelos 2,3 milhões de habitantes de Gaza, que se tornaram quase totalmente dependentes dos suprimentos que entram pelos postos controlados por Israel.
Quase toda a população do enclave foi deslocada pelo conflito, que já deixou cerca de 57 mil vítimas no lado palestino desde outubro de 2023, segundo contagem do Ministério da Saúde em Gaza, e 93% da população está em situação de insegurança alimentar aguda, segundo uma análise recente das Nações Unidas.
Alimentos e outros suprimentos se tornaram extremamente escassos em Gaza, mesmo com a retomada das entregas de ajuda da ONU e a abertura de novos centros de distribuição operados pela GHF – dos quais três atualmente em funcionamento, após quase três meses de bloqueio israelense.
Autoridades israelenses justificaram o bloqueio alegando que o Hamas está desviando ajuda e usando-a para financiar suas operações. A alegação foi rejeitada pela ONU e por outras organizações de ajuda internacionais e locais, que há muitos anos mantêm uma rede e um mecanismo de distribuição bem estabelecidos em Gaza.
Mas os caminhões que entram com essa ajuda têm sido repetidamente saqueados, seja por gangues armadas ou por pessoas comuns desesperadas por comida. Enquanto isso, o exército israelense tem intensificado seus ataques aéreos, emitindo ordens de evacuação para grandes áreas do norte e sul de Gaza.
A situação é difícil de ser averiguada de forma independente, já que Israel não permite o acesso de jornalistas estrangeiros ao enclave palestino.
Centenas teriam sido mortos próximo a centros de distribuição de ajuda
Pai de cinco filhos, o palestino Saeed Abu Libda, de 44 anos, disse à DW que conseguiu recentemente pegar um saco de farinha quando um caminhão passou perto de Khan Younis. “Sei que era arriscado, mas precisamos comer”, afirmou por telefone.
Segundo ele, havia milhares de pessoas esperando pelos caminhões. De repente, ele ouviu dois projéteis sendo disparados. “Vi pessoas no chão, algumas estavam feridas; outras, despedaçadas. Fui atingido por estilhaços no abdômen, mas por sorte foi um ferimento leve.”
O Ministério da Saúde em Gaza afirma que mais de 500 pessoas foram mortas nas últimas semanas por bombardeios, ataques aéreos e tiros. A maior parte das vítimas estava na fila para buscar comida nos centros de distribuição de ajuda ou próxima a caminhões que transportavam esses mantimentos.
O Ministério do Exterior isralense refutou essas alegações na terça-feira passada (01/07) e acusou o Hamas de atirar em civis, afirmando que o grupo palestino “espalha falsas alegações culpando as FDI [Forças de Defesa de Israel], infla números de mortos e divulga imagens falsas”.
No mesmo dia, cerca de 130 das maiores entidades de caridade e ONGs, dentre elas Oxfam e Save the Children, pediram o fechamento da GHF alegando que a fundação força milhares de famintos a transitar por zonas militarizadas, correndo risco ao tentar acessar ajuda humanitária vital.
O presidente da GHF, Johnnie Moore, reagiu dizendo que a fundação não encerraria suas operações, que o grupo distribuiu mais de 55 milhões de refeições e que está disposto a trabalhar com a ONU e outras agências de ajuda.
Moore sugeriu ainda que o Ministério da Saúde de Gaza estaria inflando o número de mortes associadas à distribuição de ajuda humanitária. Segundo ele, o órgão divulga “todo dia uma estatística de vítimas civis e, simultaneamente, atribui 100% dessas mortes civis à espera por ajuda – praticamente sempre, à espera da nossa ajuda”.
O exército isralense admitiu em várias ocasiões ter disparado “tiros de advertência” contra indivíduos que se aproximavam de posições militares próximas aos locais de distribuição de ajuda, mas não divulga informações sobre o número de vítimas.
No final de junho, reportagem publicada no jornal israelense Haaretz afirmou que soldados israelenses foram autorizados a abrir fogo contra multidões perto de centros de distribuição de alimentos, com o objetivo de mantê-las afastadas de posições israelenses dentro das zonas militarizadas.
Soldados não identificados citados pelo Haaretz relataram ter usado força letal contra pessoas desarmadas que não representavam ameaça. O caso estaria sob investigação interna por suspeita de violação do direito internacional e crimes de guerra.
Em nota conjunta, o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu e o ministro da Defesa Israel Katz rejeitaram a denúncia, acusando o Haaretz de divulgar mentiras que visam “difamar as FDI, o exército mais moral do mundo”.
As FDI também rejeitaram as acusações, afirmando em comunicado que não houve ordens para “atirar deliberadamente contra civis, incluindo aqueles que se aproximam dos centros de distribuição”.
Mas três dias depois da publicação da reportagem, o exército isralense anunciou a reorganização de estradas de acesso e centros de distribuição de ajuda humanitária, com a criação de novos checkpoints e sinalizações para “reduzir a fricção com a população e manter a segurança das tropas que operam ali”.
A GHF tem repetidamente negado relatos de violência em seus centros de distribuição e acusado veículos estrangeiros de mentir. “Não tivemos um único incidente violento em nossos locais de distribuição. Não houve incidentes violentos nas proximidades dos nossos centros”, sustentou Moore.
No entanto, após as denúncias levantadas pelo Haaretz, a GHF declarou que elas eram “graves demais para serem ignoradas” e pediu uma investigação.
Neste sábado (05/07), a GHF anunciou que dois funcionários americanos teriam sido feridos num “ataque terrorista direcionado” com granadas. A entidade culpou o Hamas.
“Recebemos apenas o suficiente para nos mantermos vivos”
Enquanto isso, palestinos desesperados muitas vezes precisam caminhar por horas através de zonas devastadas pela guerra para alcançar os centros de distribuição, localizados em áreas militarizadas designadas por Israel. Esses centros costumam funcionar apenas por um curto período, e muitas vezes não está claro onde as pessoas podem se reunir com segurança enquanto esperam pela ajuda.
“A estrada até lá é muito perigosa, e eu tento ao máximo não desviar da estrada principal”, contou Ahmed Abu Raida por telefone à DW. Como outros tantos, ele também vive em um barraco improvisado com a família, em Mawasi, no sul de Gaza. “Esperamos o anúncio da abertura dos centros, e durante as longas horas de espera, há tiros intensos vindos de várias direções.”
Abu Raida disse que foi a um centro da GHF em Rafah várias vezes e conseguiu pegar uma caixa contendo farinha, lentilhas, macarrão, chá e óleo de cozinha. “Quando entramos no local, há um grande caos por causa da enorme quantidade de pessoas”, relatou.
Segundo ele, o processo de distribuição é aleatório. “Não há fiscalização nem limite para a quantidade de caixas que alguém pode pegar.” E, assim como outros ouvidos pela DW, ele disse também considerá-lo humilhante e injusto: idosos, mulheres, pessoas vulneráveis não têm chance.
“O que podemos fazer? Não temos comida suficiente nem renda para comprar nos mercados, onde os preços estão absurdamente altos”, lamentou. “Tudo o que recebemos é apenas o suficiente para nos manter vivos.”