26/11/2024 - 12:21
Este texto faz parte do Projeto Escravizadores, uma investigação inédita da Agência Pública. O trabalho foi financiado pelo Pulitzer Center e republicado pela DW.
Em 19 de novembro de 1993, um grupo de 12 ativistas negros, entre homens e mulheres, a maioria estudantes da Universidade de São Paulo (USP), fez um protesto. Eles almoçaram do bom e do melhor no Maksoud Plaza, hotel cinco estrelas que tinha, à época, um dos restaurantes mais caros de São Paulo (SP). Mas, quando a conta vultosa chegou, os manifestantes disseram que os valores podiam ser “pendurados” na dívida histórica que o país tinha com a população negra. O calote protesto foi uma forma de captar os olhares da imprensa e da opinião pública, às vésperas do Dia da Consciência Negra e do aniversário da morte de Zumbi dos Palmares, para a pauta da reparação pela escravidão.
O ato marcava o lançamento do Movimento Pelas Reparações dos Afrodescendentes (MPR), que pleiteava o pagamento de indenização pelo Estado brasileiro a cada um dos descendentes de escravizados do país. O montante total demandado ultrapassava os 6 trilhões de dólares, em valores da época – o equivalente a 12 vezes o PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro de então.
“Nós, afrodescendentes, somos os herdeiros diretos, no sentido negativo, da escravidão”, diz o jornalista e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Fernando Conceição, um dos participantes do ato no Maksoud Plaza. Na época do protesto, o Brasil vivia os primeiros anos pós-redemocratização e o mito da democracia racial, que negava a existência do racismo no Brasil, vinha sendo cada vez mais questionado. Nos meses seguintes, o grupo captou assinaturas em vários estados para propor um projeto de lei popular que tornasse as reparações pela escravidão uma realidade.
O pleito não prosperou, mas parte das propostas serviram de base para a formulação do Estatuto da Igualdade Racial, um dos principais instrumentos reparatórios da desigualdade racial do país.
Mais de 30 anos depois do protesto, neste 21 de novembro, a União fez um pedido de desculpas pela escravização de pessoas em um evento organizado pela Advocacia-Geral da União (AGU), o Ministério da Igualdade Racial e a organização Educafro Brasil. “A União manifesta publicamente seu pedido de desculpas pela escravização das pessoas negras, bem como de seus efeitos. Reconhece que é necessário envidar esforços para combater a discriminação racial e promover a emancipação das pessoas negras brasileiras. Por fim, compromete-se a potencializar o foco de criação de políticas públicas com essa finalidade”, disse o advogado-geral da União, Jorge Messias.
“O nosso suor, que deu riqueza aos antepassados deles, precisa ser devolvido a nós, porque nós estamos sofrendo as consequências dessa escravidão”, afirmou o fundador e diretor-executivo da Educafro, Frei David Santos. Para ele, o pedido de perdão é apenas uma chave para abrir outras portas da justiça de reparação no Brasil. “Ora, todo mundo que pede desculpa, automaticamente está confessando a sua culpa”, disse.
Na esteira das manifestações que tomaram o mundo desde o início do movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), nos Estados Unidos, a discussão sobre reparação tem ganhado cada vez mais força. No Brasil, uma ação inédita contra o Banco do Brasil, uma instituição financeira bicentenária, demanda medidas reparatórias pela participação da empresa no tráfico negreiro.
Nos Estados Unidos e também no Reino Unido, universidades prestigiadas como Harvard, Cambridge, Glasgow e Oxford, além de empresas tradicionais, têm revisitado seu passado escravista e adotado medidas de compensação. É o caso do jornal britânico The Guardian, cujo conselho de administração financiou uma pesquisa sobre as ligações do fundador do jornal e de seus financiadores iniciais com o tráfico negreiro. Em reação à descoberta, o veículo apresentou um pedido de desculpas formal e anunciou um programa de justiça restaurativa de uma década, com investimentos acima de 10 milhões de libras (mais de R$ 75 milhões, na cotação atual).
O jornal britânico lançou ainda a série multimídia “Cotton Capital” (Capital do Algodão, em tradução livre), que aborda o legado da escravidão e explora os achados da pesquisa – que incluem a identificação de parte das pessoas escravizadas conectadas com os fundadores do veículo.
Mais do que apenas reparações financeiras diretas aos descendentes de escravizados, as demandas de quem clama por justiça reparatória também envolvem medidas simbólicas, como pedidos de perdão, criação de monumentos e promoção de memória e verdade sobre o período escravista. Cotas raciais e cancelamento de dívidas acumuladas pelos países explorados pelas potências coloniais também aparecem como caminhos possíveis para reparar o legado de desigualdade deixado pela escravidão.
Em uma das matérias publicadas no especial do The Guardian, a historiadora francesa Olivette Otele sintetiza o que querem aqueles que clamam por justiça reparatória. “No centro das demandas por reparações está o entendimento de que o passado não pode ser apagado e não deve ser ignorado. As antigas potências coloniais não podem desfazer o dano que infligiram a pessoas escravizadas e colonizadas, mas podem se engajar de boa-fé com os descendentes dessas pessoas e trabalhar para enfrentar as desigualdades sistêmicas que existem hoje.”
Brasil teve avanços, mas desigualdade racial persiste
O Brasil é, de longe, o país que recebeu o maior contingente de africanos escravizados do planeta. Segundo o Banco de Dados do Comércio Transatlântico de Escravos, 4,86 milhões de escravizados foram desembarcados no território brasileiro entre 1501 e 1900 – muitos deles após a proibição do tráfico negreiro. A eles, se somam milhões de brasileiros nascidos sem liberdade ao longo dos séculos em que o regime escravista perdurou no Brasil, o último país das Américas a abolir a escravidão, em 13 de maio de 1888. Segundo um estudo da Universidade de West Indies, em parceria com a American Society of International Laws, o valor a ser pago de indenizações pela escravidão no Brasil poderia chegar a R$ 135 trilhões.
Mais de 130 anos depois da abolição, o movimento negro conquistou avanços importantes, que se inserem na lógica de justiça reparatória. Além da criação do Estatuto da Igualdade Racial, a adoção de cotas raciais vingou e se tornou generalizada nas universidades e no serviço público. Em 2020, 52% dos matriculados em universidades federais eram pretos e pardos, ante 41% em 2010, antes da Lei de Cotas.
Houve também avanços, ainda que lentos e insuficientes, na titulação de terras quilombolas e no ensino da história e da cultura afro-brasileira, que se tornou obrigatório pela Lei 10.639/03. As conquistas, na visão de especialistas, militantes e autoridades com quem a Agência Pública conversou, no entanto, não são suficientes para reparar o legado perverso de desigualdade causado pelos séculos de regime escravocrata.
“Temos um monte de gente que foi para as universidades, cotistas que são doutores, mas seguem vivendo as agruras do racismo no Brasil. Isso tem a ver com uma mentalidade, um valor que é incrustado na alma do povo brasileiro, de que o preto vale menos. Isso vem desde a escravidão”, aponta o advogado Humberto Adami, vice-presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
À frente da coordenação-geral de Memória e Verdade da Escravidão e do Tráfico Transatlântico de Pessoas Escravizadas – um órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, criado no início do governo Lula –, a pesquisadora Fernanda Thomaz diz que “a população que sofreu com a escravidão é a mesma que hoje tem as piores condições de habitação, de saúde, de acesso à educação, de acesso ao trabalho, que sofre com uma violência policial gigantesca”.
“É preciso reconhecer essa violência do passado e pensar, a partir desse reconhecimento, como se pode promover melhores condições que rompam com essa violência histórica na vida das pessoas que herdaram o efeito perverso da desigualdade racial causada pela escravidão”, conclui Thomaz.
Ação mira participação do Banco do Brasil no tráfico ilegal de escravizados
Um inquérito civil sem precedentes está colocando a riqueza acumulada por empresas brasileiras durante a escravidão sob os holofotes. A ação em questão mira o bicentenário Banco do Brasil (BB). A revelação do vínculo da instituição financeira com a escravidão veio de um estudo feito por um grupo de 14 historiadores, que serviu de base para a instauração de um inquérito civil pelo Ministério Público Federal (MPF), em setembro de 2023.
Segundo os pesquisadores, boa parte dos recursos utilizados na refundação do banco, em 1853, veio do tráfico negreiro, que na época já era proibido no país. Um dos empresários que assinaram o termo de refundação do Banco do Brasil, por exemplo, José Bernardino de Sá, tinha como principal atuação o contrabando de escravizados.
Depois que a descoberta veio a público, a direção do BB divulgou uma carta aberta pedindo perdão pelo envolvimento de “suas versões predecessoras” na escravidão e apontou medidas já tomadas e em andamento em prol da igualdade racial. Posteriormente, anunciou a formulação de um “pacto pela igualdade racial”, em parceria com o Ministério da Igualdade Racial (MIR).
Para o procurador regional dos Direitos do Cidadão adjunto do MPF Julio Araujo Junior, o reconhecimento da importância do tema pelo banco é notável, mas não é suficiente. É fundamental, diz, que a instituição “aprofunde a investigação sobre a sua participação na escravidão, estruture um novo pensamento sobre a organização e o funcionamento da instituição e apresente um plano de reparação para a sociedade”.
O MPF expediu uma recomendação instando que o pacto anunciado pelo BB não seja “uma mera carta de intenções”, mas traga indicação de recursos e pautas prioritárias. O Banco do Brasil prometeu que vai anunciar as medidas no próximo dia 4 de dezembro.
À espera do anúncio, o procurador Araujo Junior ressalta que “os efeitos da escravidão não ficaram no passado”. “São efeitos do presente e do futuro. Uma sociedade que não se reconcilia, que não olha para esse passado, certamente tem um risco de perpetuar e de repetir essas violações no futuro.”
Jornalismo na luta pela reparação
Em junho de 2023, a agência de notícias Reuters revelou que mais de 110 membros da alta classe política americana são descendentes de escravizadores. O trabalho é uma das inspirações do Projeto Escravizadores, da Pública. A lista norte-americana inclui 72 deputados, 28 senadores (mais de um quarto do total), dois juízes da Suprema Corte, 11 governadores e cinco dos seis presidentes vivos – a exceção é Donald Trump, cuja família migrou para os Estados Unidos depois do fim da escravidão.
A ideia, contou o jornalista Tom Lasseter à Pública, surgiu no contexto pós-assassinato de George Floyd por um policial no estado de Minnesota, que resultou em protestos contra o racismo nos EUA e no mundo. À época, Lasseter tinha acabado de se mudar com a família de Singapura para a capital americana, Washington, depois de ter construído uma carreira de décadas na Ásia.
“Nas primeiras semanas de volta, me vi atraído pela constante cobertura televisiva dos protestos. Li sobre a derrubada de estátuas confederadas em terrenos públicos. Pensei na minha própria infância, em crescer na Geórgia. E me perguntei: Este país, que eu ainda não havia apresentado aos meus filhos, já havia realmente enfrentado sua história de escravidão?”, conta o jornalista, que explorou a conexão da sua própria família com a escravidão em uma das reportagens do especial.
Ato do movimento Black Lives Matter
A discussão sobre reparação nos EUA existe desde antes da abolição, em 1865. explica a historiadora Ana Lúcia Araújo, pesquisadora e professora da Universidade Howard, em Washington. “Ainda no século 18, a primeira pessoa de que se tem notícia que pediu reparação foi uma mulher escravizada chamada Belinda Sutton.” Ela é autora do livro Reparations for Slavery and the Slave Trade: A Transnational and Comparative History (Reparações pela escravidão e o tráfico de escravos: uma história transnacional e comparativa, em tradução livre).
A despeito de o tema estar em alta, ela diz que não há, atualmente, um movimento massivo e organizado pleiteando indenizações ou discussões avançadas de governos dos países onde houve escravização, que considerem reparações financeiras aos descendentes de escravizados.
Reparações como missão de vida
Levantamentos que resgatam o histórico de antepassados escravizadores, como o da Pública, suscitam questões sobre a responsabilidade que as pessoas têm sobre as ações dos seus antepassados ou mesmo o que pode ser feito hoje diante de tais revelações. A história de uma jornalista britânica parece indicar um caminho.
Nascida em Londres, Laura Trevelyan é uma mulher branca de 56 anos que construiu uma carreira de 30 anos na rede BBC, até deixar o veículo em março do ano passado, quando decidiu se dedicar integralmente à campanha por justiça reparatória pela escravidão.
A jornalista Laura Trevelyan
Essa decisão começou a tomar forma em 2016, quando um primo da jornalista descobriu que seis de seus ancestrais haviam sido donos de mais de mil pessoas escravizadas em Granada, à época uma colônia britânica no Caribe. Quando a escravidão foi abolida nos territórios que colonizava, em 1833, o Reino Unido pagou indenizações para os donos de escravizados. Vinte milhões de libras, o que representava cerca de 40% do orçamento britânico daquele ano, foram dedicadas a isso. Os Trevelyan foram uma das famílias beneficiadas, recebendo quase 27 mil libras em valores da época
Em 2022, Trevelyan viajou para o país caribenho e produziu um documentário sobre a experiência. “Para todos que eu encontrava, eu perguntava: ‘Você acha que eu devo pedir desculpas pelo que meus ancestrais fizeram? E acha que eu, pessoalmente, devo pagar reparações?’. E todos me disseram que sim”, contou à Pública.
No ano seguinte, parte da família dela viajou para Granada para formalizar pessoalmente um pedido de perdão e anunciar a doação de 100 mil libras (cerca de R$ 750 mil) para projetos de educação na ilha caribenha. Os Trevelyan criaram um fundo de caridade voltado para Granada. As medidas foram adotadas em diálogo com as vítimas, algo que a jornalista aponta como fundamental quando se fala em justiça reparatória.
“Esperamos que seja o começo, que outros sigam o exemplo. Esperamos que sirva de exemplo para os governos”, diz a jornalista. Ela afirma que, desde então, mais de 150 pessoas a procuraram, buscando saber o que poderiam fazer para reparar os crimes de seus antepassados.
Em março de 2023, Laura Trevelyan e outros descendentes de escravizadores uniram forças no Heirs of Slavery (Herdeiros da Escravidão, em tradução livre). Uma das bases da atuação do grupo é o “Plano de 10 Pontos pela Justiça Reparatória” formulado pela Comunidade do Caribe (Caricom), um bloco de cooperação econômica e política criado em 1973, formado por ex-colônias de países europeus.
O plano de ação inclui o cancelamento da dívida externa dos países da região; apoio para a erradicação do analfabetismo; transferência de tecnologia e o repatriamento para os descendentes dos africanos arrancados de seus países para quem o desejar, além de um pedido de perdão oficial.
Em 2001, uma conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) em Durban, África do Sul, declarou que a escravidão e o tráfico de escravos é um crime contra a humanidade e, portanto, imprescritível. Além disso, conclamou que os países buscassem caminhos para restaurar “a dignidade das vítimas”.