Região no entorno de aeroporto de Fortaleza foi desmatada para a construção de um centro logístico. Mata Atlântica derrubada estaria em área protegida. Empresa nega irregularidades.O Ministério Público Federal (MPF) no Ceará investiga possíveis crimes ambientais cometidos no Aeroporto Internacional Pinto Martins, em Fortaleza. O local é administrado pela Fraport Brasil, gigante alemã do setor aeroportuário.

O inquérito foi aberto em 13 de outubro para apurar denúncias sobre o desmatamento de 46 hectares na floresta no entorno do aeroporto para a construção de um centro logístico. A região de Mata Atlântica ficaria em uma Área de Preservação Permanente (APP).

O MPF também solicitou à Polícia Federal a abertura de um inquérito policial sobre o caso e notificou todos os envolvidos nas possíveis irregularidades. A obra foi paralisada. À DW, o MPF informou que as investigações em curso apuram não só possíveis crimes ambientais como também irregularidades cometidas pelas autoridades no processo de licenciamento e está aguardando parecer técnico sobre o caso.

Desde 2017, a Fraport Brasil possui a concessão do aeroporto na capital cearense e há cerca de três anos anunciou um projeto ambicioso: o Aeroporto Cidade, um complexo logístico e turístico a exemplo do modelo em implementação no Aeroporto de Porto Alegre, também de concessão da empresa alemã.

O objetivo era ocupar o terreno ocioso, uma floresta localizada atrás do aeroporto que faz parte do local sob concessão. A obra ficou por conta da pernambucana Aerotrópolis Empreendimentos. Em 2023, a empresa consegui a primeira a licença emitida pela Superintendência Estadual de Meio Ambiente do Ceará (Semace) para tirar o projeto do papel.

Em setembro, quando a empresa já havia iniciado o corte da vegetação no local surgiram denúncias de irregularidades. Segundo o vereador de Fortaleza Gabriel Aguiar (PSOL), presidente da Comissão de Política Urbana e Meio Ambiente da Câmara Municipal de Fortaleza, o impacto ambiental da obra não teria sido devidamente avaliado no processo do licenciamento.

O vereador apresentou a notícia-crime ao MPF após constatar por meio de imagens via satélite que a área no entorno do aeroporto já havia sido quase completamente desmatada no final de setembro.

Entraves legais

O processo de licenciamento ambiental deve ser conduzido pelos órgãos ambientais de cada estado mesmo em propriedades da União, como lembra Deodato Ramalho, superintendente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Ibama) no Ceará.

No caso do aeroporto de Fortaleza, no entanto, o Ibama havia sido questionado sobre a licença e estava concluindo seu parecer técnico quando recebeu com surpresa a notícia de que a floresta já havia sido desmatada. Para Deodato, há um “ponto nevrálgico” nesse licenciamento: o estágio de regeneração da floresta derrubada e sua conformidade com a Lei da Mata Atlântica.

Sancionada em 2006, a lei busca garantir a conservação da Mata Atlântica, um dos biomas mais degradados do país.

“Aquela área é uma floresta estacional, ou seja, tem uma estação seca e uma estação chuvosa. Ela está na proteção da Lei da Mata Atlântica, conforme o mapeamento atual”, explica o professor Marcelo Moro, coordenador do Laboratório de Biogeografia e Estudos de Vegetação na Universidade Federal do Ceará (UFC).

A legislação estabelece dois tipos de floresta: primária, quando não houve nenhum tipo de intervenção humana, e secundária, quando a floresta já recebeu algum nível de intervenção humana. Na área que hoje abriga o Aeroporto de Fortaleza, antes funcionava o Aeroclube da Cidade.

Portanto, a floresta no entorno tem um longo histórico de intervenção humana. Entre as florestas secundárias, existem três estágios de regeneração: inicial, médio e avançado. Pela lei, florestas em estágio avançado não podem ser derrubadas.

Tanto o professor Moro quanto Aguiar afirmam que a floresta derrubada para obra estava no estágio avançado, o que por si só impossibilitaria o desmate. O vereador cita ainda um relatório do Ibama do ano passado sobre um perímetro ao lado do local desmatado, na qual o órgão federal classifica toda a área como floresta secundária em estágio avançado.

A Semace, porém, afirma que a floresta se encontrava em estágio inicial ou médio de regeneração, considerando um estudo da Fundação SOS Mata Atlântica.

Impactos socioambientais

Uma pesquisa conduzida por Moro identificou que Fortaleza possui apenas 16% da sua vegetação nativa. Quase todo o perímetro da cidade foi ocupado ao longo dos anos. A floresta desmatada era uma das poucas ainda de pé, com uma grande biodiversidade em fauna e flora, aponta o professor.

Diante do que aconteceu na floresta do aeroporto, o professor lamenta que esse tipo de devastação ambiental ainda seja uma realidade não só na cidade, mas em todo o país. “Eu acho que a empresa não traria um plano de desmatamento e urbanização da floresta ao redor de um aeroporto na Alemanha, mas essa é a proposta trazida para as florestas aqui dos países subdesenvolvidos”, questiona o especialista.

Os impactos dessa devastação já poderiam ser sentidos pelos moradores das proximidades. Uma pesquisa preliminar comparou, por meio de imagens de satélites, as temperaturas na desmatada em setembro deste ano e do ano passado. Os resultados indicam que já pode ser percebido um aumento de pelo menos 6% da temperatura na superfície. Esse aquecimento estaria diretamente relacionado ao desmate da floresta.

Para além da temperatura, o professor chamou atenção para as possibilidades de inundações na região. Florestas reduzem o risco de enchentes e melhoram o fluxo da água no subsolo por meio de drenagens. O aeroporto de Fortaleza fica localizado entre bairros de IDH considerado médio ou baixo e com histórico de ocupações irregulares. Sem a cobertura vegetal, os bairros próximos ficam ainda mais expostos a inundações, explica.

Empresa nega irregularidades

A assessoria da Semace informou que está atualmente produzindo um relatório detalhado sobre os danos causados pelo desmatamento. O órgão também suspendeu as autorizações para o uso do solo naquela área e multou em R$ 200 mil a Aerotrópolis Empreendimentos após uma vistoria técnica encontrar irregularidades, como a intervenção na Área de Proteção Permanente e supressão vegetal para além dos limites autorizados.

Em nota, o órgão estadual afirmou que seguiu todos os critérios estabelecidos pela legislação e que esse tipo de licenciamento não requer anuência prévia do Ibama. A Semace ainda destacou que o empreendimento conta com anuência do munícipio de Fortaleza.

A Fraport afirmou todas as questões envolvendo o licenciamento do projeto devem ser tratadas com a Aerotrópolis.

Em nota, a Aerotrópolis Empreendimentos negou irregularidades e afirmou que o licenciamento foi “correto, transparente e embasado em dados oficiais, sendo agora reforçado por estudos complementares e independentes que reafirmam sua legalidade e consistência científica”.

A empresa informou ainda que de “de maneira proativa e voluntária” já apresentou ao MPF toda a documentação requerida pelo órgão e disse acreditar que os esclarecimentos prestados devem sanar as dúvidas sobre a questão.