Semana encerra capítulo inédito da nossa história com três novelas de uma das principais emissoras do país protagonizadas por atrizes negras, além de consagrar Camila Pitanga como vilã.Essa semana, marcada pelo início de um importante julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF), também encerra um capítulo inédito da nossa história: pela primeira vez na teledramaturgia, uma das principais emissoras do país colocou três atrizes negras como personagens principais de suas novelas.

Duda Santos, Jéssica Ellen e Gabz protagonizaram tramas distintas e de épocas diferentes, colocando suas respectivas dramaturgias para dizer aquilo que por muito tempo foi silenciado: há enredo, drama, comédia e consistência na vida das mulheres negras. Se isso não fosse suficiente, nessa mesma semana a já conhecida e consolidada atriz Camila Pitanga escreveu seu nome dentre as maiores vilãs da dramaturgia brasileira numa série-novela produzida por uma plataforma de streaming internacional, que bateu recordes de audiência e criou um verdadeiro furor nas redes sociais. Temos ainda o remake de uma das novelas mais importantes do país protagonizado por Taís Araújo, outra importante atriz negra brasileira.

Uma virada e tanto em terras brasileiras, onde a possibilidade de encenar também foi um interdito para atrizes e atores negros, que eram chamados apenas para novelas ambientadas no período escravista ou então como empregados domésticos, que serviam (quando muito) de âncora para o desenrolar da trama principal.

Aqui, não era a vida que imitava a arte, mas sim uma parte da arte que seguia sendo controlada por pessoas que se recusavam a enxergar a complexidade densa e profunda que marcou a vida de mulheres negras, fossem elas empregadas domésticas, professoras do ensino médio, mães solo ou empresárias de sucesso.

Mas é preciso dizer que, apesar do nosso já conhecido silenciamento racista, a possibilidade de sermos enredados pelas vidas de diferentes mulheres negras tem uma história mais longa, que, sem dúvida alguma, passa pelo encantamento ou o “chamado” da dramaturgia, mas também pela organização coletiva de artistas negros que não se curvaram aos papeis que lhes eram atribuídos dentro ou fora dos palcos.

Longa história

Entre final do século 19 e as primeiras décadas do 20, o Teatro de Revista floresceu no Brasil. Caracterizado por uma estrutura fragmentária, marcada por esquetes humorísticos, números musicais, danças e sátiras sociais ou política e com forte apelo popular, ele se consolidou como um espaço privilegiado de comentário crítico e entretenimento nas principais cidades, especialmente no Rio de Janeiro, que era a capital do país.

O que muita gente não sabe é que, apesar da existência dos black-faces em determinadas das peças, algumas atrizes negras se destacaram no Teatro de Revista. Chiquinha Gonzaga foi uma das pioneiras na composição de músicas para esse gênero teatral, colaborando ativamente com artistas negras e abrindo espaços para elas em um meio dominado por homens brancos.

Ascendina dos Santos e Alda Garrido são duas atrizes que se destacaram nesse gênero. Ascendina foi uma atriz negra, de pele retinta que atuou no Teatro de Revista nas primeiras décadas do século 20, participando de revistas e operetas em companhias populares, ganhando fama por sua presença cênica e suas performances musicais. Já Alda se projetou no Teatro de Revista como atriz cômica, tendo sido uma das figuras mais populares nas décadas de 1920 e 1930. Reconhecida por seu carisma, presença de palco e domínio da sátira, sua atuação contribuiu para ampliar a presença de mulheres não-brancas no teatro, mesmo em meio a limites de representação e aos estigmas de gênero e cor.

Mas sem sobras de dúvida foi o Teatro Experimental do Negro (TEN) que marcou um divisor de águas na história das artes cênicas brasileiras ao lutar contra o racismo e abrir espaço para artistas negros em um cenário até então dominado por brancos. Fundado em 1944 pelo ator, escritor e ativista Abdias do Nascimento, esse grupo teatral tinha como proposta não apenas formar atores e atrizes negras, mas também valorizar a cultura afro-brasileira e questionar estereótipos raciais no palco. Com peças, cursos e debates, o TEN foi também um instrumento de transformação social e política.

E não por acaso dentre os principais nomes que passaram pelo TEN estão as atrizes Ruth de Souza e Léa Garcia. Ruth de Souza foi primeira mulher negra a atuar no Theatro Municipal do Rio, a protagonizar uma novela na Rede Globo e a primeira atriz brasileira a ser indicada para um prêmio internacional de cinema por sua atuação no filme Sinha Moça (1954). Léa Garcia foi uma atriz, escritora e ativista brasileira reconhecida como uma das pioneiras na representação de mulheres negras nas artes cênicas e audiovisuais do país, sobretudo depois da personagem Rosa. Ganhou projeção internacional ao interpretar Serafina no filme Orfeu Negro (1959), vencedor da Palma de Ouro em Cannes e do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro.

Seria possível elencar outras tantas atrizes negras que fizeram do teatro, cinema e televisão sua forma de estar e enxergar o mundo, tais como Zezé Motta, que continua em cena nos ensinando outras tantas formas de ser mulher. Ou então Teca Pereira, que recentemente nos abrilhantou com sua atuação no comovente no filme Kasa Branca (2024).

A bem da verdade é que as mulheres negras nunca saíram de cena. O que tem mudado, graças à competência e luta dessas e de outras tantas mulheres, é que agora parte dos holofotes estão virados para nós. Já não era sem tempo.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.