24/09/2025 - 9:07
Em 80 anos, apenas cinco mulheres comandaram o principal espaço de deliberação das Nações Unidas. Baixa representatividade feminina também se reflete entre chefes de Estado e de governo.A 80ª Assembleia Geral das Nações Unidas começou na última terça-feira (23/09) em Nova York sob o comando da ex-ministra do Exterior da Alemanha Annalena Baerbock, escolhida em junho para presidir o órgão. É a primeira vez que uma europeia ocupa a função e apenas a quinta vez que uma mulher assume a liderança do principal espaço de deliberação da ONU.
Criada em 1945, a Assembleia reúne anualmente chefes de Estado e de governo para debater temas que afetam toda a comunidade internacional. Ao longo das décadas, o encontro se consolidou como fórum de negociações políticas e palco de discursos que marcaram momentos históricos. A participação de mulheres, porém, ainda é pequena, tanto entre as lideranças que dirigem os trabalhos quanto no número de oradores que ocupam o púlpito. Além disso, desde a fundação da ONU, nenhuma mulher ocupou o cargo de secretária-geral da organização.
“A baixa presença de mulheres na abertura da Assembleia Geral da ONU reflete um problema estrutural, vivemos em sociedades marcadas pelo patriarcado, uma estrutura de poder e opressão que reproduz papéis sociais desiguais. A política internacional não está isolada disso”, argumenta Jucimeri Isolda Silveira, mestre em sociologia e professora de Serviço Social da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR).
A igualdade de gênero é um dos compromissos fundamentais da ONU. O tema aparece como o quinto Objetivo de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030, ao lado do combate à pobreza e à fome, da mitigação dos efeitos da crise climática e da promoção da educação de qualidade. A meta é aumentar a presença de mulheres em posições de comando e reduzir barreiras que limitam a participação em espaços de decisão política e econômica.
Discurso X prática
Em 2025, apenas 25 países têm mulheres no comando como chefes de Estado ou de governo. No Legislativo, elas representam 27,2% das cadeiras nos parlamentos nacionais. A participação feminina no Executivo também é limitada: menos de um quarto dos cargos ministeriais no mundo é ocupado por mulheres, segundo dados da União Interparlamentar (UIP) e da ONU Mulheres.
Mesmo com os avanços registrados em países e organismos internacionais, a Assembleia Geral da ONU, que integra o núcleo central da entidade, ainda enfrenta limitações para ampliar a paridade, segundo especialistas ouvidos pela DW.
A estrutura de poder da instituição continua majoritariamente masculina, reforçando a distância entre o discurso de igualdade e a prática dentro do próprio órgão. “Trata-se de um reflexo da realidade interna dos países, que se soma e produz um déficit democrático global”, complementa Silveira.
Em oito décadas de existência, a Assembleia Geral da ONU elegeu apenas cinco mulheres para comandar seus trabalhos. A primeira foi a indiana Vijaya Lakshmi Pandit, em 1953. Figura importante na política de seu país após a independência, ela foi eleita em um momento em que a presença feminina em cargos de destaque internacional era rara.
Quase duas décadas depois, em 1969, a liberiana Angie Brooks se tornou a segunda mulher a presidir a Assembleia. Jurista e diplomata, ela já atuava em comissões voltadas para os territórios autônomos da África. Sua trajetória abriu espaço para iniciativas futuras, como o Centro Internacional Angie Brooks, criado na capital liberiana Monróvia, que ainda hoje promove debates sobre liderança feminina, paz e segurança.
A terceira foi Haya Rashed Al Khalifa, do Bahrein, em 2006. Advogada e diplomata, assumiu a 61ª sessão da Assembleia em um contexto de discussões intensas sobre Oriente Médio e reformas institucionais da ONU. Em 2018, foi a vez da equatoriana María Fernanda Espinosa. Ao vencer a disputa com a candidata de Honduras, ela dedicou a vitória a todas as mulheres que enfrentam discriminação e obstáculos na política.
A lista se completa com a alemã Annalena Baerbock, eleita em junho de 2025 para conduzir a 80ª sessão da Assembleia. Em sua primeira fala como presidente-eleita, reforçou que a “paz e o desenvolvimento só podem ser sustentados quando as mulheres, que são metade da população mundial, têm lugar equitativo nas mesas de decisão”.
A evolução da ONU e momentos históricos
Ao longo dos anos, a Assembleia Geral da ONU foi palco de momentos que marcaram a discussão sobre a presença feminina na política internacional. Em 2011, a então presidente do Brasil Dilma Rousseff abriu os discursos como a primeira mulher a inaugurar um dos espaços diplomáticos mais importantes.
Para Silveira, o discurso da ex-presidente teve um efeito pedagógico e político. Segundo ela, mostrou que o protagonismo feminino pode estar no centro da política global e ajudou a reorganizar a dinâmica de inserção de lideranças em espaços de poder.
“Esses momentos inspiram novas gerações, reforçam a importância da representatividade e incidem na lógica cultural que inferioriza mulheres em posições de liderança”, observa. Passados 13 anos, o ato ainda é referência ao se discutir a participação feminina no cenário diplomático, segundo a professora.
Outro episódio de protagonismo feminino durante o evento ocorreu em 2018, quando a então primeira-ministra da Nova Zelândia, Jacinda Ardern, levou a filha de apenas três meses para a Assembleia momentos antes do seu discurso. A cena de uma chefe de governo conciliando a maternidade com a política reforçou o debate sobre a necessidade de políticas inclusivas e sobre a naturalização da presença feminina em postos de liderança.
A professora de Relações Internacionais da ESPM, Natalia Fingermann, lembra que a ONU tem buscado reduzir desigualdades de gênero desde os anos 1990, mas os números revelam que o caminho é longo. Ela cita a Plataforma de Ação de Pequim (PAP), de 1995, como marco na luta contra a violência de gênero. “Naquele ano, apenas 15 a 19 países tinham leis sobre violência contra a mulher. Hoje, são 152”, destaca.
Mesmo assim, a desigualdade persiste dentro da própria estrutura da ONU. Fingermann aponta que as mulheres representam cerca de 45% do quadro, mas sua presença cai para menos de 20% nos cargos de alta gestão. Para ela, o chamado “teto de vidro” ainda limita ascensões, tanto no sistema internacional quanto em governos e empresas. Ainda assim, defende que o papel da entidade é relevante, por criar consensos e estabelecer metas que orientam políticas públicas.
Como resolver a desigualdade de gênero?
O avanço da presença feminina na diplomacia e na Assembleia Geral da ONU está diretamente ligado às políticas internas de cada país. Segundo Fernanda Brandão, professora e coordenadora do curso de Relações Internacionais da Faculdade Presbiteriana Mackenzie Rio, medidas como estímulos à presença de mulheres em processos eleitorais e concursos de admissão para a carreira diplomática são fundamentais para aumentar a representatividade em cargos executivos e diplomáticos.
Para Bárbara Barboza, coordenadora de Justiça Racial e de Gênero da Oxfam Brasil, não basta apenas aumentar o número de mulheres nos púlpitos da Assembleia Geral. Ela defende que é necessário alcançar paridade em todos os níveis de decisão, de forma proporcional à metade da população mundial que as mulheres representam.
Para ela, a presença de Baerbock, uma mulher europeia na atual presidência da Assembleia, reflete a concentração do poder no Norte global, o que limita a diversidade de vozes no debate internacional.
Nesse sentido, Barboza destaca ainda que a mudança só será efetiva quando mulheres do Sul global, racializadas e com diferentes trajetórias puderem ocupar cadeiras de decisão em condições de igualdade. Isso permitiria que agendas internacionais fossem definidas a partir de perspectivas plurais, com maior capacidade de enfrentar desigualdades estruturais.