16/01/2021 - 8:50
Dois estudos científicos divulgados recentemente permitem compreender melhor de que forma se dá a disseminação do vírus SARS-CoV-2 em um ambiente musical. Resultados preliminares de pesquisa desenvolvida por cientistas da Universidade de Minnesota e realizada com 15 músicos responsáveis pelos sopros da Orquestra de Minnesota, localizada em Minneapolis, na região norte dos Estados Unidos, indicam que trompete, trombone baixo e oboé geram mais aerossóis, enquanto a tuba apresenta risco menor de espalhar essas partículas do que a fala ou mesmo a respiração normal – por ser mais longo, o tubo cilíndrico da tuba absorveria melhor essas partículas.
Além da estrutura do tubo, segundo os autores da pesquisa, a variação entre os diferentes instrumentos de sopro depende do design de entrada do instrumento e das técnicas de respiração utilizadas. Por essa razão, enfatizam que concertos com instrumentos de sopro de “alto risco” demandam cuidados extras por parte dos organizadores, como maior distanciamento entre os integrantes da orquestra e reforço na ventilação do palco.
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Volume vocal é o que importa
Já estudo desenvolvido por pesquisadores de distintas instituições britânicas comparou a emissão de partículas de aerossol em atividades de canto, fala e respiração. Durante a pesquisa, 25 cantores profissionais com idades entre 22 e 57 anos, de gêneros musicais variados como gospel, ópera e jazz, participaram de uma série de exercícios, como entoar Happy birthday to you. Em artigo preprint (sem a revisão de pares) divulgado no repositório de papers de ciências químicas, o chemRxiv, os pesquisadores registraram que tanto faz cantar ou falar – o ponto que demanda atenção é o volume vocal. Ou seja, quanto mais forte a voz, maior será a quantidade de aerossóis expelida no ar. O mesmo vale para o tempo de vocalização – as frases mais longas representam mais risco.
O estudo não detectou diferenças significativas na emissão de aerossóis entre os gêneros musicais avaliados, mas os pesquisadores observaram que alguns indivíduos disparam mais partículas do que outros. Com os primeiros resultados divulgados em agosto, o estudo busca entender, entre outros aspectos, se cantar constitui atualmente atividade de risco.
“A prática coral tem sido uma das mais discutidas em relação à segurança”, observa a cantora lírica Tati Helene, do Fórum Brasileiro de Ópera, Dança e Música de Concerto (Fórum-ODM), entidade criada em 2020 por 700 artistas e instituições para lidar com as consequências econômicas e sociais da crise sanitária desencadeada pela pandemia. Atualmente o grupo reúne mais de 1.400 integrantes. “O maior problema em relação aos coros é a grande quantidade de cantores reunidos em um mesmo espaço. Por causa disso, aconteceram episódios dramáticos durante a pandemia”, prossegue Helene.
Interrupção de atividades
Em março, por exemplo, um coral de Washington, nos Estados Unidos, que manteve ensaios regulares por três semanas, teve mais de 50 integrantes diagnosticados com covid-19. Dois dos infectados morreram, segundo noticiou a imprensa. “Infelizmente, não foi um caso isolado, e por causa disso grande parte dos corais mundo afora interrompeu suas atividades”, narra a cantora.
Em maio passado, o Fórum-ODM tornou público dois protocolos de segurança sanitária. Um para ser adotado em teatros e salas de concerto e outro dedicado à dança. No mês seguinte lançou outro documento, destinado à prática musical em ambientes públicos. “Indicamos um distanciamento entre os cantores de 1,5 metro [m], com máscara, ou 3,5 m, sem máscara. A distância mínima recomendada entre palco e plateia é de 5 m”, informa Helene. Entretanto, se o uso correto de máscara pode evitar a propagação de gotículas e aerossóis, também exige maior empenho respiratório do cantor. “Em ópera, por exemplo, é praticamente impossível usar máscara. Por causa da articulação labial, corre-se o risco inclusive de engolir a proteção.”
Por razões óbvias, músicos de instrumentos de sopro também estão impossibilitados de utilizar máscara no palco, lembra Guilherme Mannis, diretor artístico e regente da Orquestra Sinfônica de Sergipe e um dos diretores do Fórum-ODM. Nesses casos, segundo ele, para reduzir o risco de contágio é preciso respeitar o distanciamento mínimo de 2 m entre os integrantes da orquestra e, quando possível, incluir barreiras, usualmente de acrílico transparente, no entorno dos instrumentos de sopro, de forma a barrar a disseminação de aerossóis em direção a colegas e a músicos de outros naipes – os grupos de instrumentos em que se divide a orquestra. Nem sempre isso é possível. “Muitas orquestras foram pegas desprevenidas e não têm como arcar com esse custo”, diz Mannis.
Protocolo próprio
Ainda em relação aos sopros, o especialista explica que dentro dos instrumentos ocorre a condensação do ar expirado. “Antes da pandemia, era praxe liberar essas gotículas no chão do palco durante e após os concertos. Isso tornou-se proibido pelo potencial de infecção que elas representam, inclusive entre músicos assintomáticos”, observa o músico.
Pelo protocolo do Fórum-ODM, agora esses resíduos devem ser recolhidos em coletores individuais, descartáveis. O procedimento foi adotado pela Orquestra Sinfônica de São Paulo (Osesp), que desenvolveu seu próprio protocolo de segurança para a manutenção de distanciamento no palco, na plateia e nas dependências da Sala São Paulo. Desde agosto, quando a orquestra retomou as apresentações virtuais, e a partir de outubro, com espetáculos presenciais, há a observância de regras estritas pelos músicos.
“Muita coisa mudou”, constata Marcelo Lopes, diretor-executivo da Fundação Osesp. As partituras, por exemplo, passaram a ser individuais para evitar risco de contágio. “Além disso, até o início do ano passado, os músicos do naipe de cordas compartilhavam a estante. Agora, com distanciamento de 1,5 m entre eles, isso se tornou impossível.” A distância entre os instrumentistas de sopro é ainda maior: 2,5 m. Painéis de acrílico nas laterais e defronte de cada músico reforçam a segurança. “Mas as divisórias não podem ser muito altas porque, além de comprometerem a difusão do som, podem reduzir a circulação de ar e diminuir a dispersão dos aerossóis”, ressalva Lopes.
Som com atraso
A diferença acústica incomoda Helene, que há duas décadas se apresenta com orquestras no Brasil e no exterior. “Por causa do distanciamento entre os músicos, o som chega com atraso para quem está no palco. Às vezes não sabemos de onde ele vem”, diz a soprano.
Integrada por 105 músicos, a Osesp se reorganizou em decorrência da pandemia. Agora são duas equipes que se revezam a cada semana. “Nosso palco é grande, tem 270 metros quadrados, mas, com as atuais medidas de distanciamento, só cabe metade da orquestra.” A plateia também reflete a mudança: dos 1.430 lugares disponíveis, apenas 480 podem ser ocupados. Até mesmo o repertório foi influenciado pela nova dinâmica. “Começamos a discutir a programação com cerca de três anos de antecedência. Para 2021, a ideia era realizar em março os três principais balés de Igor Stravinsky [1882-1971]: Pássaro de Fogo, Petrushka e A Sagração da Primavera”, relata Lopes. “Por causa da pandemia, estamos revendo a proposta. A Sagração da Primavera, por exemplo, exige um contingente enorme de músicos, com duas tubas, oito trompas, cinco trompetes, entre outros instrumentos. É absolutamente inviável nesse momento.”
ARTIGOS CIENTÍFICOS
GREGSON, W. e ORTON, H. et al. (2020). Comparing the respirable aerosol concentrations and particle size distributions generated by singing, speaking and breathing. chemRxiv. Preprint.
RUICHEN, H. e LINYUE, G. et al. Aerosol generation from different wind instruments. “Journal of Aerosol Science”. v. 151, 105669, ISSN 0021-8502, 2021.