Em 2003, Assembleia Geral das Nações Unidas foi palco de memorável show do então ministro Gilberto Gil. Não foi a única oportunidade na qual o país usou palco da organização para vender imagem da “marca Brasil”.O Brasil deu um show na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2003. Literalmente. Naquele evento, o famoso auditório que reúne todos os anos as maiores autoridades do planeta em Nova York foi palco de uma apresentação de quase uma hora de Gilberto Gil.

Batizado de Show da Paz, o concerto do então ministro da Cultura brasileiro, Gil, contou com a participação do ganês Kofi Annan (1938-2018), então secretário geral das Nações Unidas, na percussão. O pretexto era honrar a memória dos mortos num atentado ocorrido em Bagdá, em agosto daquele ano, entre eles o diplomata brasileiro Sérgio Vieira de Mello (1948-2003), alto comissário da organização.

Para o mundo, contudo, ficou uma lição de soft power. E o show de Gil é recordado até hoje como um dos momentos mais memoráveis da história da Assembleia Geral. “Aquele momento foi mais do que um espetáculo musical”, diz a economista Cristina Helena Pinto de Mello, professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Para ela, os símbolos são “ativos econômicos que podem ou não ser monetizados” e aquele show foi momento de “afirmação política” em que a cultura se manifestou como “ativo estratégico” para o Brasil.

“Ao ocupar o espaço da Assembleia da ONU com a música, o país projetou não apenas sua criatividade, mas também sua capacidade de dialogar com o mundo em linguagem universal”, salienta a professora. “Isso é soft power na prática: conquistar admiração e gerar influência por meio da cultura”.

O principal impacto é o fortalecimento da informalmente chamada “marca Brasil”. Mas ficou o recado de que o país era plural, criativo e se posicionava como uma voz cultural importante. “Naquele momento, a mensagem era de um Brasil que podia ser moderno, democrático e globalmente relevante”, ressalta Mello. Para a economista, o show traduziu a “confiança simbólica” de que o país se considerava “ponto para se inserir em cadeias globais” não apenas comerciais, mas “também de ideias e valores”.

Brasileiro, negro, artista…

Gil já gozava de prestígio internacional e, tendo aceitado o convite de Luiz Inácio Lula da Silva para compôr seu ministério naquele primeiro governo, referendou o projeto petista de desenvolvimento. Dois anos antes do show, o músico baiano havia sido nomeado pela ONU como embaixador na luta contra a fome no mundo.

A “atuação política” e o “engajamento social” de Gil foram as características que fizeram dele ministro e, também, parceiro das Nações Unidas, lembra o sociólogo Rogério Baptistini, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. “[E ele] projetou a imagem de um governo comprometido com a diversidade cultural, com a valorização da identidade nacional e com o diálogo entre modernidade e tradição”, contextualiza. “Também conferiu prestígio ao ministério e ao governo no plano internacional.”

“[Gil] traduziu a ideia de um país que poderia se afirmar no mundo não apenas pela economia ou pela política, mas também por sua criatividade, sua diversidade e sua arte”, completa Baptistini. “O show na ONU expressou exatamente isso.”

Brasileiro, negro, artista, cantando música popular… Foi um conjunto de valores os que podem ser apreendidos da apresentação de Gil na mais solene arena da política mundial, o palco da Assembleia Geral da ONU. “Aquilo deu um lastro de otimismo, que ecoou pelo mundo”, define o músico Alberto Ikeda, professor aposentado da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e consultor da cátedra Kaapora da Diversidade Cultural e Étnica na Sociedade Brasileira na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Para Ikeda, Gil transmitiu uma “ideia de poder”, de “autoridade de impor”, de “prestígio”. Para o professor, o show musical significou para o Brasil o recado de que o país estava pronto para se inserir “dentro de um espaço de consagração internacional” — no caso, a ONU.

Mulher

Não foi o único momento lembrado por especialistas como um show brasileiro nos púlpitos das Nações Unidas. Em 2011, a então presidente Dilma Rousseff fez história ao ser a primeira mulher, e até agora a única, a fazer o discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU — prerrogativa historicamente reservada ao governo brasileiro.

Em cerca de 20 minutos de fala, Rousseff abordou a crise econômica mundial, a questão palestina e as mudanças climáticas.

Seu discurso “foi um marco” tanto na história do Brasil quando na história da ONU, segundo avalia a historiadora Bruna Gomes dos Reis, pesquisadora na Unesp e professora no Serviço Social da Indústria (Sesi).

Por ela ter sido a primeira mulher a discursar na abertura da Assembleia Geral, Reis considera que “foi a primeira vez que o mundo teve contato com um discurso sobre a importância do protagonismo feminino, sendo feito por uma mulher naquele espaço”.

Rousseff citou 16 vezes o termo mulher durante seu pronunciamento. “Junto minha voz às vozes das mulheres que ousaram lutar, que ousaram participar da vida política e da vida profissional, e conquistaram o espaço de poder que me permite estar aqui hoje”, declarou. “Como mulher que sofreu tortura no cárcere, sei como são importantes os valores da democracia, da justiça, dos direitos humanos e da liberdade.”

“Em um contexto de afirmação feminina, esse gesto representou a imagem de um Brasil capaz de estar na vanguarda da representatividade política”, complementa Mello. “O efeito simbólico ultrapassa a política doméstica: posiciona o país como porta-voz de uma agenda de igualdade de gênero e inclusão. Tal imagem fortalece também a percepção do Brasil como nação moderna, o que se traduz em valor para sua diplomacia e para a economia criativa, já que países associados a valores progressistas tendem a atrair mais parcerias, talentos e investimentos.”

A mensagem da arte

Na visão dos especialistas, esses dois momentos marcam uma história que liga o Brasil ao cenário mundial representado pela ONU. É uma imagem que costuma ser lembrada por todos os líderes mundiais que entram e saem do prédio da sede principal da instituição em Nova York. Afinal, desde 1957, ali estão dois exemplares do suprassumo da produção artística nacional: os murais Guerra e Paz, de Cândido Portinari (1903-1962).

A historiadora Reis lembra que a dicotomia representada pelos painéis pode ser lida como, de um lado, “os desafios sociais, econômicos e políticos de complicada resolução” e, de outro, “a construção de alternativas igualmente trabalhosas e desafiadoras”.

Curiosamente, a arte de Portinari chegou a um espaço que ele mesmo estava proibido de frequentar. E isso, para a historiadora, é um exemplo de como a “cultura e a arte podem promover ideias tão importantes quanto um discurso”.

Em 1957, Portinari tentou ir aos Estados Unidos para participar da inauguração da obra. O governo americano, contudo, negou a ele o visto — porque ele era comunista