Em entrevista à DW, ex-eurodeputada Marietje Schaake defende a regulamentação de grandes empresas de tecnologia e cita Brasil e ministro Alexandre de Moraes como exemplos a serem seguidos. A influência de grandes empresas de tecnologia em diversas áreas, que vão de infraestrutura crítica à opinião pública, representa uma ameaça à democracia pelo mundo. Para a defesa dos valores democráticos, Marietje Schaake, eurodeputada pela Holanda entre 2009 e 2019, defende uma regulamentação maior desse setor.

“Alertei sobre a ameaça sistêmica à democracia do poder descomunal das empresas de tecnologia e seus CEOs, mas tudo isso se acelerou com a sinergia entre Elon Muske Donald Trump”, afirma à DW Schaake, que é autora do livro The Tech Coup: How to Save Democracy from the Sillicon Valley (O golpe tecnológico: como salvar a democracia do Vale do Silício, em tradução livre).

Em entrevista à DW, Schaake destaca o Brasil como um importante ambiente das disputas entre entes governamentais e as empresas de tecnologia, especialmente por conta das decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) encabeçadas pelo ministro Alexandre de Moraes. Em sua visão, o país pode ser parte importante de um esforço global para conter o poder deste segmento.

Atualmente, Schaake é diretora de política internacional no Centro de Política Cibernética da Universidade de Stanford e fellow de política internacional no Instituto de Inteligência Artificial Centrada no Homem de Stanford.

Confira os principais trechos da entrevista:

DW: Mesmo com os novos direcionamentos dos EUA, é possível acreditar em um avanço no controle das grandes empresas de tecnologia?

Marietje Schaake: Vai ser mais difícil porque os EUA não estão apenas se alinhando politicamente com os desejos dos bilionários da tecnologia, mas também porque estão se afastando de querer apoiar a democracia. Se você olhar de um ponto de vista global, esse é um grande problema. Mas acho que outros países entendem o que está acontecendo e podem realmente fazer mais porque querem enfrentar o risco do possível uso como arma das tecnologias dos EUA e da dinâmica geopolítica em mudança.

Em sua visão, é importante que governos busquem coalizões para lidar com o poder destas empresas. Nos últimos meses, Brasil e União Europeia fizeram sinalizações por uma maior regulamentação do tema, especialmente após a eleição de Donald Trump nos EUA. Uma colaboração pode ser efetiva?

Seria muito útil ter países que ainda querem uma estrutura democrática ou baseada no Estado de Direito em torno do uso da tecnologia trabalhando juntos para escalar e harmonizar suas abordagens. Até agora, vimos muitos adotando sua própria abordagem, o que leva à fragmentação. Mas se você quer apresentar um contrapeso, tanto para as empresas de tecnologia quanto para a administração dos EUA, então trabalhar juntos é muito útil. Acho que, de fato, este é um momento para novas e criativas coalizões. E espero que o Brasil possa fazer parte disso.

Quais as principais razões que colocam o Brasil atualmente como um ator global relevante neste âmbito?

Os exemplos que vimos do ministro Alexandre de Moraes foram muito encorajadores, porque ele realmente traçou linhas que poucos outros estavam dispostos a traçar em relação ao X, Musk e seu império empresarial. E vimos outros casos como a iniciativa NetMundial saindo do Brasil que mostrou uma abordagem local muito forte para a governança tecnológica.

Uma crítica frequente às medidas de Moraes é a de que o ministro não teria sido eleito para tomar certas decisões, e que parte delas estaria ligada ao processo legislativo. Há risco de perda de legitimidade popular ao delegar tais decisões ao Judiciário?

No meu livro, falo sobre a necessidade de mudança ancorada em mandatos democráticos e responsabilização. Os mandatos dos juízes estão muito bem ancorados no Estado de direito. Então não vejo tensão entre as soluções que ofereço e o papel dos juízes das supremas cortes. Acho que os tribunais têm um papel crítico a desempenhar, mas não estão em posição de criar novas leis. Eles podem criar novas interpretações das existentes, o que é útil. Mas, às vezes, também precisamos de novas etapas, como litígios estratégicos ou a ação da sociedade civil.

Recentemente, a interferência de Musk na política europeia foi alvo de duras críticas de líderes na região, com destaque para a recente eleição na Alemanha. Quais são os principais riscos destas manobras?

Há muito escrutínio sobre o que Musk está fazendo de várias maneiras com sua conta no X, como suporte a candidatos específicos. Há pontos de interrogação sobre como a amplificação algorítmica do X funciona. Então, acho que será muito importante observar e aprender com os casos de retenção de dados do X na Romênia, que agora podem ser investigado por ter impulsionado a candidatura de um candidato, além das alegações de interferência estrangeira lá também.

Com as disputas entre Musk e o STF, o Brasil passou a ser um foco do bilionário. Entre os interesses nacionais em questão, estão a infraestrutura de internet por satélite Starlink e a influência de redes sociais na eleição presidencial do próximo ano. Como as motivações de Musk podem repercutir nestes temas?

Vimos que ele está disposto a combater e que também se sente fortalecido pelo presidente Trump. Musk tem muito acesso para brigar com os juízes brasileiros. Parecia que ele estava entrando na briga com Moraes por causa de seu apoio a Bolsonaro, que seria o candidato que se encaixa no tipo de escola de nacionalistas de extrema direita que ele gosta de apoiar em todos os lugares. Não tenho certeza de quem concorrerá nas próximas eleições, mas devemos assumir que esse tipo de influência será exercida.

Um dos principais argumentos contra um avanço de regulamentação sobre as empresas de tecnologia, especialmente as de redes sociais, seria a suposta violação da liberdade de expressão. Quais os reais riscos para este direito em caso de maior controle?

Todas as palavras sobre liberdade de expressão estão muito distantes das ações sobre isso. Ouvimos Musk e Trump alegando que estão defendendo a liberdade de expressão, mas, na verdade, eles estão restringindo-a. É muito importante olhar para o que está acontecendo, não apenas ouvir o que eles dizem.

É um momento muito bom para procurar alternativas para que as plataformas nas quais encontramos notícias e compartilhamos atualizações não possam ser usadas como armas contra a democracia. Pode levar um tempo para a transição, mas há muitas oportunidades. Olhando para os danos, não apenas políticos, mas também outros impactos da desinformação, este pode ser um bom momento para fazer essa transição.

Um dos controles mais fortes defendidos no livro é o sobre dados pessoais sensíveis em mão privadas. Recentemente, na América Latina, houve uma grande polêmica pelo processo de escaneamento de íris feito pela WorldCoin, que pagava um montante em criptomoedas pela coleta. Qual sua visão no tema?

Acho que a WorldCoin, em particular, realmente ataca pessoas muito vulneráveis, que não têm dinheiro. Elas são facilmente seduzidas a fazer algo por um pouco de dinheiro, que não sabem realmente o que são dados biométricos, porque vivem em países onde não há leis de privacidade, ou porque simplesmente não tiveram experiência com esses produtos ou ferramentas. É uma maneira cínica de tratar as pessoas para tentar oferecer algo a elas quando estão mais vulneráveis e não têm como supervisionar as consequências. Deveríamos ser muito mais críticos com esses tipos de produtos.