Apesar de bombas, sirenes e perigo de morte, ucranianos fazem longas filas para assistir a uma icônica comédia musical. Um Festival Shakespeare está a caminho. E se preciso, o teatro vive até nas estações de metrô.”Para essas ocasiões, eu escolho um vestido bem bonito, ponho maquiagem e perfume. São oportunidades raras que a gente tem, na guerra”, relata a frequentadora de teatro Olena Vdovychenko, de Kiev. Para ela, as salas de espetáculo são um maravilhoso local de retiro – como já eram muito antes da invasão russa.

Os bombardeios aéreos diários e as ameaças constantes de ataques com mísseis não diminuíram sua paixão pelo teatro: pelo contrário, ela se sente fortalecida. Além disso, os eventos são uma oportunidade de dar apoio aos profissionais de cultura da Ucrânia, alguns dos quais serviram no front e agora estão de volta ao palco.

É fato que ficou mais difícil conseguir ingressos: os eventos costumam estar lotados, e as entradas para novas apresentações se esgotam logo; às vezes é preciso esperar de três a quatro meses para conseguir bons lugares. Os teatros avisam quando há ingressos disponíveis online, e Olena conseguiu os seus configurando notificações automáticas para poder comprá-los imediatamente.

Porém mesmo quando se tem a sorte de estar na sala, a apresentação pode ser interrompida a qualquer momento. Em caso de bombardeio, urge-se o público a acorrer para os abrigos subterrâneos pelo caminho mais curto. Anúncios de segurança também fazem parte do quotidiano teatral: se uma sirene aérea soar, os espectadores devem se deslocar rapidamente para a zona de segurança mais próxima.

Se a interrupção dura mais de meia hora, é possível que o evento seja cancelado. Olena já esteve nessa situação: “A gente está mentalmente sempre em alerta. E se pega pensando: ‘Por favor, nada de alarme, para a gente poder assistir à peça em paz’.”

As bruxas que zelam pela Ucrânia

A Bruxa de Konotop é uma comédia musical soturna que se transformou num fenômeno da guerra. Baseada no romance de Hryhorii Kvitka-Osnovianenko (1778-1843) a trama se desenrola na cidadezinha de Konotop, no nordeste, onde, por responsabilizarem as mulheres pela seca, os moradores promovem uma caça às bruxas. Pano de fundo é a ameaça militar pela Rússia czarista.

Nos primeiros dias da invasão iniciada por Vladimir Putin em 24 de fevereiro de 2022, divulgou-se um vídeo em que uma mulher se dirigia a um soldado num tanque de combate: “Sabe onde você está? Você está em Konotop, aqui uma de cada duas mulheres é uma bruxa.” Consta que, quando a câmera se desligou, ela teria acrescentado que amaldiçoara os invasores com impotência eterna.

O diretor do musical, Ivan Uryvskiy, explica que bruxas têm lugar especial na cultura nacional: “Elas aparecem muito na literatura ucraniana clássica. Há diversos tipos, que são representados de formas bem diferentes, elas são um componente próprio da cultura.” Assim, não é surpresa essa peça sobre bruxas ter fascinado os jovens, viralizando no TikTok.

“Os outros dizem, brincando, que me odeiam, quando eu conto que já assisti à Bruxa de Konotop duas vezes”, comenta Olena. “Porque eles estão tentando há meses, inutilmente.” Online é praticamente impossível obter entradas, e quem quer tentar na bilheteria do teatro já começa a fazer fila às cinco horas da manhã.

Desde a estreia no Teatro Nacional Ivan Franko, o diretor Uryvskiy adquiriu praticamente o status de astro pop, graças ao mundo mítico que criou no palco, minimalista, preto-e-branco e com diálogos irônicos. “Cultura é sempre importante, mas em tempos de guerra ela é especialmente decisiva “, comenta.

“A cultura ucraniana sempre esteve ameaçada, e sempre foi empurrada para segundo plano No decorrer da história, a Rússia sempre tentou apagá-la, eliminá-la ou bani-la. Mas ela é rica e digna de ser explorada. Desenvolver o nosso teatro e apresentá-lo dentro e fora do país, sobretudo durante a guerra, é vital.”

A Bruxa de Konotop chegou a ser apresentada aos delegados da cúpula de paz da Suíça, em junho de 2024. Yevhen Nyshchuk, ex-ministro da Cultura e diretor geral do Teatro Ivan Franko, definiu a peça como “a voz da Ucrânia moderna”.

O teatro vive, se preciso nos metrôs

“Isso é parte do fenômeno que consiste em retomar a cultura ucraniana da Rússia”, explica Mayhill Fowler, professora de História da Universidade de Stetson especializada no Leste Europeu. “Como parte da União Soviética, muitas peças teatrais ucranianas do século 20 foram escritas sob o jugo do império russo”, e assim se apresenta a oportunidade de “escrever um novo capítulo da história cultural ucraniana”.

Em toda a história do país, o teatro foi sempre um local que os cidadãos procuravam em tempos difíceis. Fowler recorda como, em meio à fome e à turbulência da Guerra Civil Russa, em 1920, o famoso diretor teatral Les Kurbas encenava o Macbeth de William Shakespeare. Ou como em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, o público da Ucrânia escutou pela primeira vez em seu idioma a célebre frase “Ser ou não ser, eis a questão”, do Hamlet.

Quase 80 anos adiante, em junho de 2024, na cidade de Ivano-Frankivsk, no oeste do país, realizou-se o primeiro festival da história ucraniana dedicado ao dramaturgo inglês. “A guerra é desumanizadora, e Shakespeare é fundamentalmente humanizador: ele nos recorda que somos seres humanos”, diz Fowler, citando a organizadora do evento, Iryna Chuzhynova.

Em Kharkiv, a segunda maior cidade do país em guerra, perto da fronteira com a Rússia e sob constantes bombardeios, peças de teatro continuam sendo apresentadas nas estações de metrô.

Toda essa atividade teatral não significa um retorno da normalidade, como os ucranianos a conheciam: o perigo e o caos da guerra ainda são presentes. Contudo é “uma das muitas possibilidades de lidar com a realidade atual”, observa a especialista em história ucraniana e russa.