01/12/2011 - 0:00
O professor paulista Maurício Waldman recorreu a ferramentas multidisciplinares – como um doutorado em geografia, um mestrado em antropologia e uma gradução em sociologia – para escrever Lixo: cenários e desafios (Cortez Editora), um dos dez finalistas do Prêmio Jabuti 2011 em Ciências Naturais. Resultado de uma tese de pós-doutoramento em geografia na Universidade de Campinas (UNICAMP), seu trabalho traça uma radiografia assustadora da questão do lixo no mundo e no Brasil, lastreada em mutos números. Waldman sublinha que não há planeta para tanto lixo e que só uma revisão dos hábitos de consumo pode trazer uma saída para o problema.
Maurício Waldman
É pós-doutor em geografia pela Unicamp e autor do livro Lixo: cenários e desafios, um dos finalistas do Prêmio Jabuti 2011.
Em seu livro o sr. afirma que, embora o Brasil tenha 3,06% da população mundial e responda por 3,5% do PIB mundial, descarta 5,5% do total dos resíduos planetários. Como chegou a esses números?
Minha pesquisa envolveu a investigação de dados primários e documentais, lastreada com grande preocupação sobre dados quantitativos e qualitativos. Importa lembrar que não basta obter números, mas também conhecer os processos que os geram e o que tais números significam em seu conjunto na escala do tempo e do espaço. Há muitas fontes, e cito algumas aqui: Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre), Banco Mundial, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), agências das Nações Unidas e Ongs como a Greenpeace. Foi um trabalho imenso. Também examinei legislações, sobretudo o Plano Nacional de Redução das Emissões (PNRE) e a lei nº 12.305, de agosto de 2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).
Cerca de 1 milhão de catadores reciclam 13% do lixo produzido no Brasil. Sem eles, não haveria indústria de reciclagem. Mesmo assim a sociedade os discrimina.
A que o sr. atribui a má performance brasileira?
Há uma performance cultural, de percepção, de índole antropológica e simultaneamente geográfica. Como dizia Abraham Moles, vivemos numa sociedade que produz para consumir e cria para produzir, num ciclo em que a noção fundamental é a velocidade e a descartabilidade dos materiais. Ou seja: somos uma civilização dedicada a gerar lixo. O mundo gera 30 bilhões de toneladas de lixo por ano. Não há mais espaço para depositar resíduos, e a questão de onde colocá-los virou um enorme problema logístico. Nova York, hoje, descarta lixo a 500 km de distância. O Brasil não fica atrás. Segundo o relatório de 2010 da Abrelpe, a média de lixo domiciliar de cada brasileiro, de cerca de um quilo, é semelhante à de um europeu. Porém, nossas classes afluentes geram muito lixo, enquanto as classes humildes geram pouquíssimo. É assim que se chega a uma média europeia. Algo está profundamente errado nisso, relacionado ao processo socioeconômico de geração de lixo e agravado pela falta de política pública no setor.
Entre 1991 e 2000 a população cresceu 15,6%, mas o descarte de resíduos aumentou 49%. Por que essa expansão perversa?
Em seu primeiro texto publicado, o geógrafo Milton Santos disse que o crescimento urbano no Brasil estava muito ligado à sedução do consumo. Segundo ele, a percepção do consumo atrai as pessoas, induzindo-as, por exemplo, a trocar uma casa bem montada por um automóvel, uma despensa forrada de alimentos por um aparelho eletrônico. Daí que, segundo o Relatório 2010 da Abrelpe, em um ano a população cresceu 1%, mas a produção de lixo cresceu 6%. De modo geral, a geração de lixo também está crescendo por causa das altas expectativas de consumo.
Em seu livro o sr. afirma que, embora o Brasil tenha 3,06% da população mundial e responda por 3,5% do PIB mundial, descarta 5,5% do total dos resíduos planetários. Como chegou a esses números?
Minha pesquisa envolveu a investigação de dados primários e documentais, lastreada com grande preocupação sobre dados quantitativos e qualitativos. Importa lembrar que não basta obter números, mas também conhecer os processos que os geram e o que tais números significam em seu conjunto na escala do tempo e do espaço. Há muitas fontes, e cito algumas aqui: Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), Compromisso Empresarial para Reciclagem (Cempre), Banco Mundial, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), agências das Nações Unidas e Ongs como a Greenpeace. Foi um trabalho imenso. Também examinei legislações, sobretudo o Plano Nacional de Redução das Emissões (PNRE) e a lei nº 12.305, de agosto de 2010, que instituiu a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS).
Como impedir o lixo de triunfar sobre a civilização?
A alternativa mais viável é reduzir o consumo. Além dos três “R” conhecidos – Reduzir, Reutilizar e Reciclar -, é preciso agregar outro “R” essencial: Repensar. No caso, repensar como produzimos, consumimos e descartamos. Mudando hábitos e estilo de vida, consumindo menos, o cidadão retroage positivamente em toda a cadeia produtiva. Com isso, os resíduos que geram o lixo final diminuirão.
Cerca de 70% dos municípios brasileiros não dão destinação correta aos resíduos, e 59% desse material é depositado a céu aberto. Até os resíduos recicláveis separados pela coleta seletiva em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro acabam em lixões. Como mudar esse quadro?
Em termos de reciclagem, não há nenhuma cidade de porte no Brasil com reciclagem em bons termos. Segundo o Cempre, mesmo em Curitiba – cidade icônica em termos de reciclagem – 60% dos materiais que estão nos aterros poderiam ser recuperados, mas não estão sendo. Com base na Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, em 80% do território nacional há lixões e aterros controlados (na verdade, “lixões melhorados”). Isso acontece justamente nas áreas de maior interesse ambiental – Amazônia, Pantanal, mangue, cerrado… Estamos colocando lixo em locais onde isso jamais poderia acontecer. Como mudar esse quadro? Pela Constituição, o Estado tem a prerrogativa da gestão dos resíduos sólidos. Cabe a ele mudar a situação. Porém, pelo jeito deve demorar muito.
O sr. diz que 1 milhão de catadores de lixo são heróis do trabalho de combater o desperdício, mas são discriminados pela sociedade. Falta dinheiro?
Falta vontade política. Segundo o Cempre, em 2008 o Brasil reciclou 7,1 milhões de toneladas de lixo. Desse total, que corresponde a 13% do lixo nacional e a 25% do lixo seco, 98,1% é trabalho de catador, de acordo com o Instituto Socioambiental. Sem os catadores, no dia seguinte a indústria de reciclagem entraria em colapso. Além disso, os aterros teriam seu tempo de vida útil reduzido, haveria mais lixo nas calçadas, mais enchentes e assim por diante. Embora façam um trabalho imprescindível, os catadores são discriminados. Apenas 142 municípios brasileiros (2,5% do total) mantêm parceria com os catadores.
O sr. é um crítico da obsolescência precoce dos produtos industriais. A solução cabe ao Estado?
Na forma como ocorre, é difícil acreditar em ação concreta do Estado. Em termos de lixo, há três atores básicos: Estado, sociedade e cidadão. Como o Estado não faz a parte dele, as empresas se sentem à vontade para fazer o que bem entendem e o cidadão termina órfão de pai e mãe. Em suma: ou esse Estado é mudado ou não se vai resolver nada. Quanto à obsolescência, não há solução. Não existe planeta para suportar a obsolescência precoce. Precisamos de produtos duráveis, porque a descartabilidade propicia o avanço da geração de lixo.
Só 2,5% dos municípios do país mantêm parceria com catadores
Quais são as atividades que mais produzem lixo?
Em primeiro lugar, a pecuária, seguida pela mineração e pela agricultura. Esses segmentos respondem por cerca de 90,5% do lixo planetário. Na sequência, temos o lixo industrial com 4%, o entulho com 3%, e os resíduos sólidos urbanos com 2,5%. Note-se que, embora o lixo domiciliar seja 2,5% nessa conta, corresponde de fato a quase todo o lixo mundial. Tudo ou quase tudo que se produz no mundo vai parar no saquinho que colocamos na calçada ou na lixeira do prédio. Segundo a norte-americana Annie Leonard, professora da Universidade Cornell, atrás de cada saquinho desses há 60 outros sacos de lixo descartados no processo de produção. O lixo domiciliar é o último avatar na ciranda da geração de lixos.
A nova Política Nacional de Resíduos Sólidos estabelece regras para a coleta e o armazenamento de lixo urbano. Mas não há aterros sanitários nas cidades. Para que serve a lei?
Essa lei permite muitas ressalvas. Por que ela ficou 19 anos perambulando nos corredores de Brasília? Em primeiro lugar porque há um jogo de forças relacionado à sua normatização. Essa demora gerou problemas e um enorme passivo ambiental. Em segundo lugar, temos a lei e eu digo: e daí? No Brasil, há leis que não pegam e não-leis que pegam. Um exemplo de não-lei que as prefeituras inventam é a criação de planos de gestão de resíduos no papel. Pode-se dizer que haverá fiscalização – mas qual fiscalização?
A do Estado atual? Para complicar, a lei abre uma brecha enorme para a instalação de incineradores, um grande descalabro. Ao contrário do que dizem os defensores da ideia, não adotaremos um padrão de Primeiro Mundo ao permitirmos sua instalação. A Alemanha recicla 48% do lixo e tem incinerador; os Estados Unidos reciclam 31% e têm incinerador; a Bélgica e a Suécia, 35%. Porém, o Brasil recicla só 13%! Antes, temos de repensar, reduzir, reutilizar e reciclar, retardando ao máximo a necessidade de incineradores porque geram uma série de substâncias maléficas à saúde, aceleram a retirada de materiais da natureza, queimam matériaprima útil e afetam o trabalho dos catadores e da indústria recicladora. Muitos municípios brasileiros não têm mais espaço para aterros. Mas as políticas para mitigar o problema não foram implantadas. Assim, nesse exato sentido os incineradores não constituem solução.