Nas fotos acima, cenários da Milford Track, percorrida por Diego Gonzales no frio inverno neozelandês. Na página ao lado, no alto, uma das trilhas suspensas do trajeto e a Sutherland Falls, a maior cachoeira do país e a quinta do mundo. Acima, Gonzales numa típica paisagem alpina.

Cheguei à Nova Zelândia animado com a ideia de correr o país em busca de esportes radicais. Bungee jump, skydive, rafting, fly-by-wire, snowboarding e outras atividades esportivas ousadas são alguns dos atrativos que a terra dos kiwis (como são conhecidos os neozelandeses) oferece aos turistas. O que eu não sabia, e poucas pessoas sabem, é que existe uma maneira ímpar de conhecer o país, sem gastar muito dinheiro e passando por todos os impressionantes cenários dos livros de fotos e cartões-postais da Nova Zelândia. Para isso bastaria dedicar uns poucos dias da minha viagem a algumas das centenas de opções de trilhas que o país, orgulhosamente, ostenta.

O trekking (ou tramping, como eles gostam de chamar por lá) é uma das mais tradicionais expressões da paixão dos neozelandeses pelas atividades outdoor. O país é recortado por uma imensa teia de trilhas, ideais para o tramping de todos os níveis. Muito bem sinalizadas e mantidas pelo Departamento de Conservação (DoC – Department of Conservation), essas trilhas permitem ao visitante conhecer o país de uma maneira única e alheia ao roteiro tradicional de turismo.

A milford track é considerada há mais de um século como “a caminhada mais incrível do mundo”. para a revista national geographic, a routeburn track é a 11ª nessa lista. a kepler track também é impressionante

Durante a viagem, estive com um dos maiores atletas kiwis de aventura, Steve Moffatt, grande responsável por me incentivar a conhecer a Nova Zelândia através das trilhas. Ele e sua família me receberam calorosamente por todo o período que passei lá e, graças ao seu estímulo, decidi embarcar rumo a Te Anau, cidadezinha na região de Southland, na parte meridional da Ilha do Sul, que serve de base de saída para as três trilhas mais famosas do país. Eu havia decidido percorrer a Milford Track, conhecida há mais de um século como a “caminhada mais incrível do mundo”, a Routeburn Track, considerada pela revista National Geographic, em 2005, como uma das 11 melhores trilhas do planeta, e a Kepler Track, que vive à sombra das duas primeiras, mas nem por isso é menos impressionante. A Milford foi a primeira a ser percorrida. Foram 53 quilômetros de caminhada em quatro dias, com um pouco de chuva, muito frio e alguns metros de neve no topo da travessia alpina. A trilha faz jus a sua fama. Somente aqueles que decidem percorrê-la podem ficar frente a frente com a maior cachoeira da Nova Zelândia, Sutherland Falls (a quinta maior do mundo), ou ter a visão infinita dos vales que formam essa região. A caminhada é recortada por inúmeras cachoeiras, lagos que refletem as montanhas como espelhos, trilhas suspensas sobre rios de água cristalina e uma floresta úmida de verde intenso.

Preferência nacional

O povo neozelandês tem paixão pelo ambiente natural e a interação do homem com a natureza através de atividades ao ar livre. Muitas pessoas vão ao trabalho de bicicleta ou correndo e, no verão, quando os dias são mais longos, a prática da escalada esportiva, mountain bike e corrida em trilhas parece ser unanimidade entre a população, principalmente para os moradores da Ilha do Sul.

Com a sorte ao meu lado, escolhi uma semana de inverno em que ninguém estava na trilha. Fiz os quatro dias de caminhada absolutamente sozinho, o que a tornou mais contemplativa e inspiradora. Confesso que a solidão foi um fardo durante as escuras e geladas noites que passei nos huts (ver quadro “Dicas e informações importantes”, à pág. 57), mas a experiência da solitude em um ambiente absolutamente selvagem foi única.

Quando acabei a trilha, mal podia conter a minha satisfação. Ao ver as fotos, percebi que havia conhecido lugares inesquecíveis, de uma forma completamente diferente da planejada. A partir daí, passei a fugir do turismo de massa, imergindo país adentro em busca das Great Walks (ver quadro “Dicas e informações importantes”, à pág. 57).

Routeburn Track

Poucos meses depois parti para a mais ambiciosa empreitada: percorrer a Routeburn e a Kepler Track com apenas um dia de descanso entre elas. Comecei pela Routeburn, a menor das três trilhas, com seus 33 quilômetros e três dias. Embora menor, essa trilha exige um pouco mais do caminhante, com dois dias consecutivos de ascensão. Assim como a Milford, ela justifica sua reputação. Já nas primeiras horas de caminhada há um desvio que leva ao Key Summit, uma frágil área de vegetação de altitude estrategicamente localizada no topo de um monte, possibilitando uma visão de 360º das montanhas nevadas e vales ao redor. De volta à trilha, a vegetação e as cachoeiras que cruzam o caminho até o primeiro hut encantam pela sua magnitude. Às margens do lago Mackenzie, no Mackenzie hut, fiz a primeira parada da trilha. Dependendo do horário de chegada ao hut, ainda é possível explorar os arredores e deparar com fantásticos achados, como espelhos d’água que refletem as montanhas ao redor e uma imensa pedra envolta por volumosas raízes de vegetação nativa e partida em dois (onde é possível entrar pela estreita fenda formada pela rachadura).

O Harris Saddle, ponto mais alto da caminhada, oferece ao viajante um cenário surreal: de um lado, o hollyford va lley, cercado por montanhas imponentes; de outro, o lago harris, que parece suspenso no ar

Vista de Conical Hill trecho em meio à vegetação mais densa; Key Summit, que permite vista privilegiada das montanhas e vales ao redor

O segundo dia guarda uma das vistas mais espetaculares com que já me deparei. Deixando o hut, o caminho segue numa longa subida até a zona de altitude das montanhas do Hollyford Valley. Durante a subida, é possível avistar o lago Mackenzie em sua totalidade. Suas águas de degelo impressionam com as diferentes cores, que variam conforme a profundidade.

Quando se perde o lago de vista, ganha-se imediatamente a visão do Hollyford Valley. Boa parte do dia é percorrida no alto da zona subalpina, cortando uma das faces desse vale. Num dia de sol com céu limpo, é possível avistar o mar na região de Milford Sound.

Harris Saddle, com vista para o Hollyford Valley.

Após caminhar por meio dia, chega o momento alto da trilha, em todos os sentidos. O Harris Saddle é o ponto mais elevado da caminhada e o com maior apelo cênico. A visão ali é surreal. De um lado o Hollyford Valley, cercado por suas montanhas imponentes, e de outro o lago Harris, formado pelo abraço de formações rochosas, que fazem o lago parecer suspenso no ar. Há tanto com que se encantar que o tramper deve monitorar o tempo a fim de que não escureça antes de chegar ao próximo hut.

Para quem não ficou satisfeito com o visual do Harris Saddle há um desvio da trilha principal, conhecido por Conical Hill. Com um pouco mais de fôlego e disposição é possível, a partir do Harris Saddle, acessar esse topo de montanha e ter uma visão ainda melhor de tudo em volta.

Seguindo caminho para o último hut (Routeburn Falls), vale a pena virar a cabeça e olhar para a impressionante paisagem que fica para trás. A trilha segue por grandes áreas abertas, com vegetação de altitude e imponentes blocos de rochas, além de vários riachos, sempre presentes em Southland. O último dia é marcado por uma bem-vinda descida, no meio da mata, até o Routeburn Shelter. No retorno à cidade, me peguei imaginando como seria a próxima caminhada. Todas as minhas expectativas foram superadas e cada trilha que eu fazia parecia ser ainda mais incrível que a anterior.

De volta a Te Anau e após um único dia de descanso e preparo, eu estava pronto para começar a Kepler Track. Esta seria a maior das três trilhas, com 70 quilômetros (partindo do centro de Te Anau), em quatro dias. A trilha é circular e pode ser feita em quatro dias ou mais, dependendo do vigor dos trampers. Mesmo à margem das demais Great Walks da região, a caminhada satisfaz qualquer um em busca de grandes cenários naturais. A travessia alpina é incomparável. Por muitos momentos, caminhei pela crista de uma cadeia de montanhas, em uma área totalmente exposta, tendo como cenário o lago Te Anau, que encanta quando visto do alto, e os picos nevados das montanhas Jackson. A parte mais baixa da trilha é formada por uma exuberante floresta que espalha por toda parte seu imperativo verde. Em alguns trechos, é possível caminhar com vista para o lago Manapouri e deparar com cachoeiras, pontes suspensas e até cavernas na região do monte Luxmore.

A natureza foi generosa com a nova zelândia. nas trilhas, ela se faz presente a cada momento, com toda sua força e grandiosidade

Quatro imagens da Kepler Track, a maior das três trilhas visitadas por Gonzales, com 70 quilômetros de extensão. O percurso reserva momentos especiais na travessia alpina e nas partes mais baixas, predominantemente ocupadas por uma esplêndida floresta.

Dicas e informações importantes

O DoC divide as trilhas em categorias, de acordo com suas particularidades. A principal delas é a das Great Walks (aquelas de excepcional apelo cênico e relativa acessibilidade, podendo ser percorridas até mesmo por aqueles com preparo físico médio e muita disposição). Todas as nove Great Walks exigem prévio agendamento para serem percorridas na alta temporada (de outubro ao início de abril) e contam com os huts, abrigos construídos para pernoite. Os huts possuem banheiros, água, camas (em estilo galpão ou quarto comunitário) e uma cozinha. No verão, o DoC fornece energia elétrica e gás. Fora desse período, os huts parecem casas abandonadas: ficam sem luz e gás, os banheiros principais são trancados e quase não há indícios de presença recente. Para utilizar esses huts é necessário pagar uma taxa ao DoC, que varia de acordo com a temporada e trilha e corresponde à compra de um voucher de uso do hut. Encontrados em quase todas as trilhas neozelandesas, os huts têm uma estrutura que varia, principalmente, de acordo com a demanda de visitação para cada caminhada.

• Para percorrer qualquer trilha, o viajante deve antes reportar ao DoC o seu itinerário, com data de entrada na trilha, sentido percorrido, tamanho do grupo (caso você esteja acompanhado), data prevista para saída/término e data de pânico (dia em que se devem iniciar as atividades de resgate caso não haja confirmação de retorno do caminhante).

• As Great Walks são extremamente bem conservadas e marcadas; é difícil se perder e, por isso, o serviço de guias pode ser opcional. Existem agências especializadas nessas caminhadas, que oferecem serviços de condução de grupos. Geralmente os preços são elevados, mas o conforto do tramper é muito maior, com direito a verdadeiros “banquetes” e huts de uso exclusivo.

• O clima é um fator de grande importância na Nova Zelândia. Uma simples caminhada no topo de uma travessia alpina pode se tornar um pesadelo com uma virada no tempo. Sempre verifique a previsão meteorológica antes de entrar numa trilha. O frio pode chegar a temperaturas extremas e causar hipotermia em poucos minutos. Bons equipamentos e prudência são a garantia da sua segurança.

• Em Te Anau pode-se organizar toda a viagem, desde a obtenção de autorização no DoC até o aluguel de equipamentos. Muitos de seus hotéis e albergues estão habituados com os trampers; oferecem serviços de guarda-volumes (para a bagagem que não será levada nas trilhas) e organizam, ou ajudam os caminhantes a organizar, serviços de transporte que partem da cidade para o início e fim das trilhas. Te Anau conta ainda com um centro de visitantes e agências de turismo que podem ajudar o viajante.

Após essa trilogia de Great Walks, continuei minha viagem pelo país, sempre em busca de novas caminhadas. Ao todo, percorri quase 400 quilômetros em trilhas, que variaram de um dia a quatro dias, de 6 km a 70 km, passando por ambientes de glaciares e vulcões ativos. A natureza na Nova Zelândia se faz presente a todo momento, com sua força e grandiosidade. Minhas memórias mais intensas dessa viagem são dos cenários e experiências vividas nas trilhas. Não há melhor forma de conhecer o país do que por dentro dela.

PARA SABER MAIS

• www.doc.govt.nz

• www.newzealand.com

• http://www.hikingnewzealand.com

• http://www.ultimatehikes.co.nz/

Contato com o autor: gonzales.diego@gmail.com