O tornado que atingiu a cidade de Xanxerê (oeste de Santa Catarina) na tarde de 20 de abril não destruiu apenas casas e outras construções. O fenômeno, que deixou mais de 100 feridos (entre os quais três com membros amputados) e dois mortos, também colaborou para derrubar a ideia de que eles não ocorrem ou são raros no Brasil. Ao contrário, são muito mais comuns do que se imagina. Na verdade, o país­ é o vice-líder mundial em número de ocorrências dessas tempestades circulares, perdendo apenas para os Estados Unidos. Uma tese de doutorado, defendida na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mostra que de 1990 a 2011 foram registrados 205 eventos desse tipo no Brasil.

Para chegar a esse número, o geógrafo Daniel Henrique Candido, autor da tese e hoje atuando na área de Prevenção a Desastres Naturais do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) , recorreu a uma série de fontes, entre elas pesquisas científicas, relatos, fotos, vídeos e notícias de jornais. “Os dados utilizados na minha tese compreenderam unicamente tornados que têm registros fotográficos ou em vídeo”, diz. “Ou que deixaram sinais de sua ocorrência por meio de danos observados. Por isso, é possível que outros tenham ocorrido no período, mas que não foram vistos ou não causaram danos significativos, o que pode ter feito com que fossem confundidos, por exemplo, com uma simples ventania.”


Efeitos de um tornado em  Taquatituba, no interior de São Paulo, em 2013

Por isso, ele diz que pode haver uma contaminação dos dados. Regiões mais populosas tenderiam a apresentar maiores percentuais de risco de ocorrência, pois é muito improvável que um evento passe despercebido nesses locais. Em zonas rurais ou pouco habitadas, ao contrário, um tornado pode ocorrer sem ser notado. Isso não tira a importância do trabalho de Candido. De acordo com sua orientadora, a também geó­grafa Luci Hidalgo Nunes, do Departamento de Geografia do Instituto de Geociências da Unicamp, o estudo do seu doutorando confirma na prática o que já havia sido apontado teorica­mente por pesquisadores norte-americanos.

Segundo Luci, eles já haviam alertado quanto ao alto potencial de ocorrência desses fenômenos em áreas mais ao sul da América do Sul, incluindo partes do Brasil. “Embora menor em extensão, essa zona se iguala ao potencial da América do Norte”, diz. “O estudo do Daniel confirmou isso. Outro fato a destacar na pesquisa é que ele definiu, a partir dos registros levantados, quais locais do país têm tido mais ocorrências, as diferenças entre os processos produtores de tornados de acordo com o local, bem como períodos de maior incidência.”

 

Semelhança com os EUA

Considerando a quantidade de ocorrências, pode-se afirmar, de acordo com Candido, que o polígono que engloba parte do Sudeste e todo o Sul do Brasil, o Paraguai e a porção norte da Argentina é mais propenso a tornados, ficando atrás apenas dos setores sul e central dos EUA. “No mapeamento que fizemos, encontramos maior frequência de ocorrências nos estados de São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná”, conta o pesquisador. “O fato de esses quatro estados concentrarem o maior número de eventos decorre, entre outros fatores, de eles estarem em uma faixa de transição entre o clima tropical e o temperado.”


Cenário de destruição em Xanxerê (SC), que enfrentou o fenômeno em abril deste ano

O meteorologista Ernani de Lima Nascimento, coordenador do Programa de Pós-Graduação em Meteorologia, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, dá mais detalhes sobre as razões da alta incidência do fenômeno nesse polígono. Segundo ele, a região que engloba o nordeste da Argentina, o sul do Paraguai, o Uruguai, o Sul do Brasil e os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul apresenta algumas condições atmosféricas bem semelhantes àquelas observadas na área central dos EUA. As tempestades que geram os tornados mais intensos se formam em regiões continentais de intenso contraste de massas de ar, onde há grande variação horizontal de temperatura e da velocidade do vento com a altura.

São regiões distantes do equador, situadas em latitudes temperadas e subtropicais, e geralmente a leste de uma grande cadeia de montanhas. “Nos EUA são as Montanhas Rochosas, enquanto na América do Sul são os Andes”, explica Nascimento. “Essa configuração montanhosa favorece a formação de ventos intensos, a cerca de 2 mil metros de altura, que trazem umidade desde a zona tropical até a subtropical.” Na América do Sul, a fonte dessa umidade é a Bacia Amazônica. Ventos do norte, beirando os Andes, transportam o ar quente e úmido desde lá até os pampas, onde há o encontro com massas de ar frias e secas vindas da Patagônia. “Esse grande contraste serve de combustível para tempestades muito fortes, que podem dar origem a tornados intensos”, diz.

 

Desconhecimento acadêmico

Mas se essa região é propensa ao fenômeno e ele de fato ocorre com frequência, por que existe, inclusive na comunidade acadêmica, a ideia errônea de que os tornados são raros ou inexistentes no Brasil? “Não é incomum ver pesquisadores renomados afirmando que a ocorrência de tornados é rara em nosso país”, lamenta Candido. “Isso se deve principalmente à falta de conhecimento a respeito do assunto. Durante o levantamento de dados para a elaboração da tese, descobrimos textos datados do século 19 com descrições perfeitamente compatíveis com a ocorrência do evento, deixando claro que sempre houve condições para a formação dessas tempestades em território nacional.”

Nascimento lembra também que esses fenômenos são de curta duração e raramente apresentam um diâmetro maior do que um quilômetro. “Por isso, eles são de difícil documentação”, ressalta. “Satélites e radares meteorológicos não são capazes de registrá-los, e sua documentação ainda depende da confirmação visual por parte de uma testemunha ou por meio de fotografias e vídeos. Na ausência de danos ou de testemunhas visuais, um tornado pode muito bem se formar, se intensificar e se dissipar em 15 minutos sem ser documentado.” Essa situação está ficando cada vez mais rara, no entanto. Hoje em dia, é mais difícil esses fenômenos passarem despercebidos.

Com o aumento da população e a consequente maior ocupação do espaço geo­gráfico, além da proliferação de celulares com câmeras, um maior número de tornados tem sido documentado no Brasil. “Com isso, os brasileiros estão finalmente se conscientizando de que o fenômeno ocorre em nosso país”, diz Nascimento. O risco disso é que se passe a acreditar que o número de ocorrências esteja aumentando de fato. “O maior número de registros pode induzir a novo erro: ver o advento como um efeito das mudanças climáticas”, alerta Luci. “No entanto, mesmo em países onde o estudo desses eventos é mais sistemático, não existe comprovação científica disso.”