11/07/2023 - 11:08
“Quando quero impressionar alguém por quem tenho interesse, geralmente envio poemas clássicos que celebram a beleza masculina”, conta Fouad, um gay de 26 anos, em um telefonema com a DW. “É algo infalível”, acrescenta dando risada.
Fouad é natural do Líbano, um dos poucos países árabes onde a homossexualidade não é explicitamente ilegal. Mas diante da recente repressão do governo à comunidade LGBTQ local, ele prefere manter a discrição e não revelar seu nome completo.
A inspiração de Fouad costuma vir de poemas clássicos do poeta do século 8 Abu Nawas, famoso por seus versos homoeróticos.
Assim como Abu Nawas, muitos outros poetas clássicos árabes, persas e turcos exploraram o desejo pelo mesmo sexo séculos atrás. Mas no Oriente Médio atual, onde a maioria dos países trata a homossexualidade como um crime, tal legado acabou sendo esquecido.
O argumento de que relacionamentos amorosos e sexuais entre pessoas do mesmo sexo não fazem parte da cultura original do Oriente Médio encontra eco entre muitas autoridades e líderes religiosos. Um exemplo é Ahmed al-Tayeb, o grande imã da Universidade de Al-Azhar, instituição sunita milenar no Cairo, capital do Egito. Para Al-Tayeb, a homossexualidade não passa de uma importação cultural do Ocidente.
Mas muitos ativistas LGBTQ discordam, culpando o colonialismo por espalhar a homofobia na região.
Blair Imani, uma muçulmana queer afro-americana, critica a ideia de que as sociedades muçulmanas sempre mantiveram atitudes rígidas em relação à sexualidade. “Quando muçulmanos e cristãos entraram em contato uns com os outros, os muçulmanos eram conhecidos por serem mais permissivos sexualmente [do que os cristãos]”, disse ela durante uma palestra da série de conferências TED.
No entanto, a história do amor entre pessoas do mesmo sexo no Oriente Médio é complexa e cheia de nuances.
Como o Oriente Médio tratava o desejo homossexual
Pesquisas históricas indicam que reis, comandantes, juízes e indivíduos comuns demonstravam uma relativa abertura a desejos não heterossexuais.
Viajantes muçulmanos que visitaram a Europa em meados do século 19, por exemplo, acharam digno de nota que homens europeus não cortejavam os rapazes mais jovens. Por outro lado, viajantes europeus visitando comunidades árabes pré-coloniais ficaram chocados ao ver homens expressando abertamente sua atração por meninos.
Registros históricos também sugerem o reconhecimento de indivíduos transgêneros, com alguns dicionários e enciclopédias árabes medievais descrevendo cinco ou mais categorias de sexos. Em um texto de 2020, Shireen Hamza, pesquisadora da Universidade de Harvard, categorizou-os como “mulher, mulher masculina, khuntha, homem afeminado ou homem”.
Khuntha refere-se a uma categoria entre os gêneros. Hamza também escreve sobre um processo judicial ocorrido em Damasco no século 16, quando um juiz muçulmano permitiu que uma mulher transgênero se casasse com um homem que estava apaixonado por ela.
Aceitação de indivíduos LGBTQ?
Ainda assim, os historiadores são cautelosos em definir o Oriente Médio pré-colonial como tolerante quando o assunto é LGBTQ.
Para começar, a orientação sexual sequer era vista como central para a identidade de um indivíduo nas sociedades muçulmanas. O mundo árabe medieval via a atração sexual de maneiras conflitantes, escreve Khaled el-Rouayheb, historiador da Universidade de Harvard. Em seu livro Before Homosexuality, de 2007, ele conta que expressões de atração pelo mesmo sexo eram recebidas com graus distintos de aceitação, oscilando entre a tolerância e a intolerância.
Estudiosos islâmicos distinguiam, por exemplo, entre a relação sexual entre dois homens e a expressão menos física de amor por outro homem. A primeira era considerada pecado, enquanto a segunda era sinal de sensibilidade apurada; uma capacidade de apreciar a beleza humana.
Como a homofobia se espalhou
A atração pelo mesmo sexo passou a ser vista de forma radicalmente diferente no Oriente Médio contemporâneo, possivelmente sob influência do colonialismo ocidental.
França e Reino Unido, que controlavam grandes partes do mundo árabe, introduziram os primeiros códigos penais contra a homossexualidade na região. Na Argélia, por exemplo, as forças coloniais francesas estipularam punições severas para relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo, incluindo prisão e trabalhos forçados.
A influência dos colonizadores persistiu por muito tempo depois de eles terem ido embora. Projetos nacionalistas mantiveram a noção colonial que via a atração pelo mesmo sexo como algo decadente ou uma forma de doença mental. Os movimentos islâmicos seguiram o exemplo, criminalizando as relações entre pessoas do mesmo sexo. Como resultado, poetas como Abu Nawas, que há muito eram celebrados por seu talento literário, tornaram-se polêmicos e tiveram sua obra censurada.
Um legado esquecido
Pra Samar Habib, romancista e pesquisadora independente radicada nos Estados Unidos, o mundo árabe ainda precisa iluminar esse debate. Ela ressalta, porém, que a comunidade árabe LGBTQ vem se munindo de registros históricos para construir um argumento contra a discriminação. “É assim que se cria um corpo de resistência”, observou Habib em entrevista à DW.
Segundo a estudiosa, evidências de que a homofobia não é universal nas histórias e culturas árabes e persas podem ser encontradas na sua própria literatura.
Mashrou Leila, uma banda de indie rock libanesa bastante popular, produziu dezenas de canções sobre o amor queer, baseando-se em alusões históricas e tradicionais e mencionando figuras como Abu Nawas. O apoio escancarado dos músicos à causa LGBTQ provocou reações de alguns governos da região, resultando em sua proibição no Líbano, Jordânia e Egito e, finalmente, levando-os a se separar em 2022.
Da mesma forma, o legado da comunidade LGBTQ do Oriente Médio serve cada vez mais de inspiração para pinturas e outras artes visuais. Um exemplo famoso é Habibi, les Revolutions de l’amour, uma exposição de arte no Instituto do Mundo Árabe, com sede em Paris, que investiga a cultura queer do Oriente Médio, entrelaçando elementos tradicionais e referências históricas das culturas árabe e persa.
As mídias sociais também têm testemunhado um aumento de postagens que destacam o amor entre pessoas do mesmo sexo na literatura e na história das sociedades de maioria muçulmana, com alguns usuários sugerindo que a lei islâmica tem muito espaço para interpretações que possam incorporar os direitos LGBTQ.
Necessidade de uma revisão histórica
Para Aya Labanieh, pesquisadora da Universidade de Columbia, em Nova York, a comunidade LGBTQ do Oriente Médio enfrenta um desafio duplo: “De um lado, existe a repressão doméstica, que caracteriza tal identidade como importada, estranha à sociedade e à cultura islâmica. Do outro, existem as narrativas islamofóbicas que os estigmatizam, usando seus ressentimentos para retratar uma imagem sombria das sociedades muçulmanas.” Consequentemente, observa, os ativistas queer têm enfatizado cada vez mais os aspectos originários de sua identidade.
No entanto, o passado também não deve ser glamourizado, alerta Labanieh. “É necessária uma revisão crítica, que considere também valores modernos como igualdade e direitos”, avalia.
Fouad, lá do início desta reportagem, começou a ler poesia clássica árabe ainda jovem, com a ajuda do pai. Mais tarde, isso acabou servindo como um refúgio do trauma. “Conheço muitos gays e lésbicas que cresceram se odiando porque eram levados a acreditar que havia algo de errado com eles”, aponta. “Não passei por isso, pois, quando adolescente, pude ver que gênios como Abu Nawas tinham os mesmos desejos que eu.”
Ao final da entrevista, Fouad recita seus versos favoritos de Abu Nawas, que acredita carregarem uma mensagem universal: “Abandone os costumes e a ética que foram destruídos ao longo do tempo, deixados à mercê do vento e da chuva, relegados à decadência inevitável. Esteja entre aqueles que vivem a vida no prazer e no risco.”