01/12/2008 - 0:00
Vista geral do porto flutuante de , às margens do Rio Negro
O ritmo é frenético. Quem chega ao mais movimentado porto de Manaus, conhecido como , logo precisa se ajustar à correria de caixas e engradados, de gente com malas, pacotes, de vendedores, de mudanças inteiras. Todos têm pressa de embarcar ou de embarcar suas mercadorias nos porões das dezenas de navios ancorados, que em breve vão partir tendo o rio Negro como sua estrada.
A rotina de atordoa. Ele está próximo aos mais importantes entrepostos da capital amazonense, como a Feira da Pan Air (cujo nome é pronunciado em português pelos moradores da cidade) e o secular Mercado Municipal Adolpho Lisboa, inaugurado em 1882 e tombado pelo Iphan como Patrimônio Histórico Nacional.
Também está próximo a outro ancoradouro da cidade, o antigo Porto de Manaus, construído no início do século 20 para dar vazão à riqueza da borracha e modernizado há cerca de seis anos. Tornou-se oficialmente o local de embarque para destinos nacionais, internacionais e de contêineres. Tem guichês informatizados e monitores com horários de partidas e chegadas, que mais lembram um aeroporto, e que chamam a atenção em especial de turistas, mas não atraem os moradores da cidade. Nem de longe tem a mesma movimentação de .
Carregadores embarcam com todo tipo de produto nos barcos, como cervejas, legumes, ovos e artigos de limpeza.
Em uma breve conversa com as pessoas que circulam pelo local, descubro vários motivos para o fato. O primeiro, até mesmo óbvio, é que os preços das passagens no são entre 20% e 50% mais baratos do que no embarcadouro oficial, algo decisivo para quem vive às margens. Uma passagem para a cidade de Tabatinga, por exemplo, que no moderno guichê custa R$ 268, pode sair por R$ 200 em . “Negociamos direto com o dono do barco, sem aquele monte de impostos cobrados lá dentro”, explica Jailson Silva, um entre centenas de vendedores de bilhetes que circulam na calçada estreita do abarrotado porto. Ele explica que, além disso, há outras “facilidades”: o embarque é feito com mais agilidade, livre de passagem por raio X, inspeções da Polícia Federal, cobrança de taxas ou limites de carga. Obviamente, é esse o principal motivo de ter fama de ser o local de onde entra e sai de tudo – incluindo drogas e contrabando.
Tudo é muito simples no porto de . Três grandes balsas unem-se à terra firme por pontes de madeira e escadas de concreto, muitas delas deterioradas com a presença constante da água do rio Negro. Os guichês são guarda- sóis, a lanchonete é um trailer improvisado e o anúncio das partidas é feito com o apito dos navios. As últimas chamadas são no grito e aumentam a correria por alguns instantes.
É de Manaus moderna que saem os produtos que vão encher as prateleiras de dezenas de cidades localizadas ao longo do rio Negro e de seus afluentes, floresta adentro. Todo o comércio entre essas localidades depende de uma complicada matemática que dá preços a tudo que se pode imaginar, sem que as cifras façam sentido para quem desconhece o mundo das águas e dos porões dos barcos.
Muitos carregadores impressionam pela força e destreza com que equilibram os produtos
Vários romances nascem nas embarcações, principalmente em viagens longas
No mais movimentado e popular porto da capital amazonense, a lógica dos valores cobrados no embarque de produtos não é algo fácil de decifrar. O primeiro critério é o volume que cada produto ocupa, a maneira como ele se ajusta aos porões das embarcações. Em segundo lugar, leva-se em consideração o peso. “Mas tudo isso pode variar de acordo com o dia do embarque, do tempo e, muitas vezes, das posses de quem despacha, de quanto a pessoa pode pagar”, explica Rarison Silva, tripulante do navio Elyon Fernandes I. Sabão e água sanitária vão por R$ 1,50 a garrafa de dois litros. Bananas embarcam por R$ 0,60 o cacho. Para se levar um saco de 60 quilos de farinha, o preço é R$ 2. Perfumaria é mais caro: sai entre R$ 5 e R$ 10, dependendo da fragilidade do frasco. Uma motocicleta embarca por R$ 60.
Nesse caótico mundo de , torna-se imprescindível a presença dos carregadores, que, tal como formigas obreiras, levam a mercadoria das ruas para dentro dos navios. Alguns impressionam pela força e destreza com que equilibram os produtos transportados – o que, claro, também tem seu preço: Salvanei de Oliveira carrega quatro sacos de laranjas de uma só vez, algo em torno de 120 quilos, o que lhe rende R$ 1,50. Em um dia bom, chega a tirar R$ 150 – ou seja, repete cem vezes o esforço que já parece hercúleo se executado uma única vez.
Os carregadores disputam espaço com os vendedores ambulantes, que aproveitam a presença de milhares de pessoas para oferecer uma infinidade de produtos – óculos de sol, doces, salgados, frutas, biscoitos, panos de prato e de chão, rádios, fones de ouvido, DVDs, redes para dormir e mais uma série de artigos que sempre encontram sua utilidade na hora da partida. Paulo César Nascimento vende o par de pedaços de corda por R$ 2. O que a princípio parece um artigo dispensável torna-se um produto de primeira necessidade, pois a maioria dos barcos não tem o número de ganchos necessário para todos acomodarem suas redes. Com a cordinha, se amarram a qualquer pedaço de madeira do convés. Paulo César vende 18 pares em dias normais e mais de 70 nos dias de comemorações ou feriados, principalmente quando a cidade de Parintins (a capital do boi-bumbá, às margens do Amazonas) está em festa.
E ainda existe o comércio feito pelos próprios passageiros, que adquirem os produtos na capital do Estado por preços mais em conta e os revendem em suas cidades, fazendo dessas viagens um ganha-pão. É o caso de Francisca Costa da Silva, que vende roupas em Coari (cidade às margens do rio Solimões conhecida atualmente como produtora de petróleo e gás natural). Francisca viaja três vezes por mês para Manaus e, na volta, transporta na bagagem cerca de R$ 700 em roupas. “Lá, com um pouco de sorte, eu faço R$ 2 mil. Uma toalha que aqui sai por R$ 15 eu vendo lá por R$ 35, fácil, fácil. E uma calça de R$ 40 eu vendo por R$ 70. Lá é tudo mais caro, menos o peixe”, contabiliza.
No porto de , mudar a vida também tem seu preço. Muitos dos que estão ali utilizam os navios para transportar parte de sua história para outro lugar. Alguns trazem toda ela para dentro dos navios, com o intuito de reiniciar a vida em outro porto seguro. Uma única embarcação pode levar mais de 600 passageiros, em viagens que chegam a durar oito dias.
Dona Maria Vilma Lopes, 63 anos, tem em sua bagagem um fogão Dako quatro bocas branco, o velho colchão de casal, uma cama de ferro vermelha brilhante, duas gavetas de roupa e o bambolê da neta, Lidiane, criada por ela. Seguem para Santarém tentar a vida, depois de quatro anos vivendo em Manaus. O preço disso é uma viagem a bordo do Maresia I, que sai por R$ 50 e dura três dias. Isso porque dona Maria resolveu não ir de camarote – são poucos em cada navio e custam quase quatro vezes mais. Dona Maria agradece a Deus por ter conseguido que suas coisas embarcassem como bagagem.
Patrícia Vieira é de Parintins, mas mora há um ano em Manaus. Cansouse das investidas sem sucesso na capital e volta para sua cidade natal com o filho Lucas Miguel no colo e toda a sua bagagem: dois colchões de solteiro, geladeira, sofá de três e quatro lugares em tom laranja forte, criadomudo, uma arara com roupas empilhadas e um berço, onde estão todas as roupas de Lucas. É um dia quente, difícil. “As coisas não deram muito certo”, afirma a moça, 19 anos. Veio para Manaus e ficou grávida de alguém que a abandonou. Segue agora seu destino a bordo do navio Comandante Santana – dois dias sobre as águas, R$ 30 de passagem.
Há também os amores. O jovem Saul, que trabalha há quatro anos como carregador do navio Maresia II, confessa que muitos romances nascem nos locais escuros de um navio, principalmente em viagens longas. “Tem gente que transa no banheiro, no camarote. Em alguns, a música rola solta. Quando é época de festivais, então, tudo rola solto. Aí tem gente que consegue uma esposa, ou até filho”, confessa o rapaz de 29 anos.
Enquanto Saul traz o mundo para dentro do barco, o restante da tripulação tenta manter a ordem. Há controladores de bilhetes de passagem e aqueles que identificam e etiquetam tudo o que entra. Ou quase tudo. Enquanto o barco está atracado, são eles que mantêm tudo organizado. Com o descolar da balsa, outra ordem se instaura – cada um passa a ser dono do seu destino e, em meio a redes e produtos, enche-se o navio de coisas que não se traduzem em cifras: despedidas e sonhos.