22/03/2016 - 20:23
“Quando a edição especial de PLANETA sobre o médico e profeta francês Nostradamus (1503-1566) foi publicada, em junho de 1984, a Terra era bem diferente. Em termos geopolíticos, por exemplo, o mundo vivia a polarização entre os Estados Unidos, pilar do capitalismo, e a União Soviética, modelo do comunismo. A maioria dos futurólogos da época nunca arriscaria afirmar que, cerca de 30 anos depois, o comunismo soviético seria uma página virada da história. Tampouco diriam eles que a China se tornaria uma potência mundial, que conflitos religiosos ressurgiriam com força ou que o planeta estaria seriamente ameaçado pelo efeito estufa, consequência do modelo de desenvolvimento então ambicionado por nove entre dez países.
Os estudiosos de Nostradamus considerados pelo jornalista Marco Antônio de Carvalho na elaboração da revista – o francês Jean-Charles de Fontbrune, a inglesa Erika Cheetham e o americano Henry Roberts – pouco captaram em relação a essas macromudanças. Embora a obra mais famosa do profeta, as Centúrias, use uma linguagem propositadamente hermética em seus versos, as referências no texto a uma devastadora guerra de 27 anos (supostamente iniciada em 1999, e com a participação do Anticristo), somadas aos temores associados à virada do milênio, desestimularam esses pesquisadores a encontrar ali sinais do pós-apocalipse.
A passagem do ano 2000 sem que a Terra estivesse no caos previsto pelos milenaristas para a época reduziu o interesse por Nostradamus e sua obra. Mas essa associação entre apocalipse e fim de segundo milênio pode ter sido apenas mais um dos incontáveis equívocos dos candidatos a intérpretes do profeta. Se for lido sem essa restrição, o texto reserva algumas surpresas interessantes. Um acerto inequívoco é a reaparição em primeiro plano do conflito entre (extremistas) muçulmanos e o Ocidente (predominantemente) cristão. Nesse sentido, vale a pena conhecer um trecho das Centúrias, no texto de Marco Antônio de Carvalho, em que é possível acompanhar diferentes interpretações para uma única quadra, começando pela de Jean-Charles de Fontbrune.
“Na quadra 61 da terceira Centúria, Nostradamus prevê o levante de forças muçulmanas contra o cristianismo, a partir do Iraque e da Síria:
“La grande bande et secte crucigere,
Se dressera em Mesopotamie:
Du proche fleuve compagnie legere,
Que telle loy tiendra pour ennemie. (III, 61)
“Tradução: ‘O grande bando e seita anticristã dos muçulmanos se erguerá no Iraque e na Síria perto do Eufrates, com um exército blindado, e considerará a lei como uma inimiga’.
“Fontbrune nota que a Mesopotâmia, no tempo de Nostradamus, correspondia ao atual Iraque e ao norte da Síria. Erika Cheetham não concorda com essa visão. Para ela, a Mesopotâmia, nesse caso, pode ser Paris, e a quadra se refere, então, à ocupação alemã em 1940. Se for assim, Nostradamus não se referia aos muçulmanos, mas aos nazistas – de fato, ‘um grande bando e seita anticristã’.”
Fontbrune parece ter acertado na mosca nesse caso. O Estado Islâmico, profundamente anticristão e defensor de uma rígida interpretação da lei baseada na sharia muçulmana, nasceu exatamente em partes do Iraque e da Síria perto do rio Eufrates. Outro trecho das Centúrias interpretado por Jean-Charles de Fontbrune é bem sugestivo, conforme escreve Marco Antônio de Carvalho:
“Sur le milieu du grand monde la rose,
Pour nouveaux faicts sang public espandu:
A dire vray on aura bouche close,
Lors au besoing viendra tard l’attendu. (V, 96)
“Ou seja: ‘Quando o socialismo estiver no poder por meio dos burgueses, o sangue do povo correrá por causa de novos atos. Para dizer a verdade, a liberdade de expressão desaparecerá. Então, o esperado chegará tarde por causa da penúria’.
De fato, correu “sangue do povo” durante um governo socialista (cujo símbolo é a rosa), duas vezes apenas em 2015: em janeiro, nos atentados que tiveram como epicentro o semanário Charlie Hebdo, e em novembro. Os dois episódios deixaram marcas na área da liberdade de expressão – no segundo caso, estimulando inclusive a aprovação de uma lei antiterror mais rígida na França.
Em carta a seu filho César, Nostradamus comenta a utilização de uma linguagem enigmática na sua obra, “para que permaneça obscura para sábios e estudiosos, poderosos e reis”. Talvez seja tempo de reexaminá-la com rigor. É bem possível que ela nos reserve outros momentos tão surpreendentes como os apontados aqui.
—–
Excerto
A quantidade de quadras das Centúrias que falam da história passada da França e da Europa é tal que não é possível aceitar a pretensa explicação da coincidência – especialmente porque, para o oculto e a magia, não existem coincidências.
Marco Antônio de Carvalho, em “Nostradamus”, PLANETA 141-A, 1984