Barradas por D. Pedro 1° em 1828, famílias de Luxemburgo que queriam emigrar ao Brasil acabariam voltando e fundando povoado empobrecido sob o estigma de “brasileiros”. Hoje, parte dos locais busca manter memória viva.Em 1828, um grupo de famílias rurais do Grão-Ducado de Luxemburgo iniciou uma dura viagem a partir do pequeno enclave europeu para emigrar ao Brasil. Eles apostaram tudo na promessa de uma vida nova como cidadãos brasileiros. Só que eles nunca chegaram ao destino. Nasceria assim um povoado que ficaria conhecido como Novo Brasil (Nei Brasilien) no oeste luxemburguês.,

Na hora de cruzar Atlântico, os pretendentes a colonos não puderam embarcar ao Rio de Janeiro. Para a sua surpresa, o Império do Brasil, então sob Dom Pedro 1° , avisara por uma carta em 22 de janeiro daquele ano que já recebera gente demais. “Nas circunstâncias atuais, em seguida à última decisão das autoridades, mais nenhum novo colono (com destino ao Brasil) será admitido.”

Mas as caravanas de migrantes já tinham vendido suas casas, torrado economias de uma vida e percorrido centenas de quilômetros a partir de vários pontos de Luxemburgo. Primeiro, eles viajaram até Weisel e, de lá, até o porto de Bremen, ambas na atual Alemanha, carregando crianças e malas nos braços e em carroças. Foi um banho de água fria para uma “febre brasileira instalada” naquele ano, o primeiro da emigração luxemburguesa ao Brasil.

Com os planos interrompidos e recursos depauperados, a volta para Luxemburgo foi o que restou para os colonos que nunca foram. Eles seriam reassentados numa área árida elevada e inóspita da pequena nação, e levariam vidas ainda mais difíceis do que às que tinham renunciado.

“Brasileiros ladrões”

Os “brasileiros”, como seriam chamados os migrantes desafortunados, sofreram com a pobreza e um longevo estigma de surrupiadores de batatas e roupas nos porões e varais alheios.

“Eles eram mendigos na vizinhança. Eram mal vistos como imigrantes, como refugiados, que se estabeleceram aqui e que não tinham dinheiro nem nada mais”, conta Christiane Thommes-Bach, vereadora em Groussbus-Wal e uma espécie de guardiã da história.

“As pessoas tinham medo de que fossem ladrões. Que simplesmente pegassem o que quisessem. E eles tentavam sobreviver de alguma forma, como artistas de rua ou vendendo coisas no mercado.”

O Novo Brasil manteria o nome até 1957. Mas a rua principal do minúsculo vilarejo que passou então a se chamar Grevels hoje exibe o Centro Cultural Novo Brasil. O local é rodeado por estradas rurais de uma pacata região montanhosa, em que passam mais tratores do que pessoas.

Já numa capela católica a poucos passos de distância, ilustrações na parede e cartilhas informativas retratam a fundação do povoado, ao lado de um pequeno cemitério, onde jazem algumas das famílias pioneiras.

Uma escola inaugurada há quatro anos e um time de futebol juvenil também chamam Novo Brasil. O nome está no serviço de mapas online do Google. E permanece um par de famílias descendentes dos pioneiros.

Mesmo assim, dois séculos depois, não falta entre os 303 moradores de Grevels quem não fale no assunto — por desconhecimento ou tabu. Por muito tempo, virtualmente ninguém ali queria ter nada a ver com os filhos pródigos de Luxemburgo ou o Brasil.

Segundo Charles Peiffer, que foi professor escolar na região por 35 anos a partir de 1970, o tema dos “brasileiros” permanecia absolutamente intocado nas salas de aula.

“Talvez eu devesse ter feito melhor e começado a falar sobre isso por conta própria. Mas aí os pais provavelmente não teriam ficado muito felizes, nem os avós”, diz ele, hoje aposentado. “É uma época que se pode dizer que foi vergonhosa para esta região. Para tocar no assunto, tinha-se que beber pelo menos cinco doses. Eles foram mal vistos por pelo menos um século, se não mais. E isso não passa tão rápido assim.”

Romance chega ao Brasil

Por outro lado, mora em cada um dos moradores que topa falar do passado um pedaço da história “brasileira”. A cada repetição, ela é contada com um detalhe a mais ou ênfase diferente. Parte dos locais se esforça, inclusive, para mantê-la viva e honrar a memória dos colonos relegados ao que é frequentemente descrito como “terra de ninguém”.

Em 1997, Christiane Thommes-Bach codirigiu uma peça pela companhia de teatro amadora da comuna que recontou a saga. No elenco, estavam seu marido e dois filhos. Mas nem toda a comunidade, à época, reagiu bem. Décadas antes, houvera também resistência contra o nome escolhido para o centro cultural.

O trabalho de alguns estudiosos ou curiosos e um calhamaço de documentos guardados pelos Arquivos Nacionais de Luxemburgo também reconstroem os fatos de 1828. Já ao Brasil, o ocaso chegou com quase 200 anos de atraso, em novembro de 2024, com o lançamento de um romance nele inspirado.

“Ninguém mais queria estas pessoas”, relata Guy Helminger, escritor luxemburguês radicado em Colônia, que investigou a história a partir de 2008 para o seu livro “Novo Brasil” (editora Bestiário), primeiro publicado em 2010 na Alemanha. “Havia outras pessoas nas suas casas, e eles não tinham mais nacionalidade (luxemburguesa), porque você tinha que desistir dela se quisesse emigrar.”

Naquele tempo, os luxemburgueses vendiam suas propriedades agrícolas na esperança de escapar da precariedade e dos altos preços dos alimentos, provocados pelos impostos pagos desde 1815 ao rei dos Países Baixos e grão-duque de Luxemburgo Guilherme 1°.

Conta-se hoje em Grevels que, nos mercados pelo caminho, se cantavam versos como: “Certa vez, olhei para o céu e uma voz me chamou: ‘Crianças, naveguem agora para a terra do Brasil'” ou “Majestade, o imperador, o que lhe prometemos aqui — seja e permaneça sábio em todos os momentos, e não nos deixe perecer aqui.”

Sem terra à vista

Mas Dom Pedro não quis saber. Uma vez barrados pelo imperador brasileiro, os colonos desafortunados se viram à deriva em terra firme, sem ter aonde ir.

Não se sabe ao certo quantos migrantes foram parar de início no Novo Brasil. O palpite de quem conhece a história de perto dá conta de aproximadas cem pessoas pertencentes a uma dezena de famílias. Foi o suficiente para que, um par de anos depois, o povoado aparecesse no mapa luxemburguês.

Reza a lenda que os “brasileiros” não podiam passar da porta na única capela dos arredores. Nenhuma das comunas ao redor do Novo Brasil queria se responsabilizar pelos novos moradores, e os empregadores locais lhes recusavam trabalho. “‘Brasileiros’ não era uma boa palavra naqueles dias,” diz Helminger.

As famílias que se sabem pertencer à linhagem dos fundadores do Novo Brasil estão entre os que preferem esquecer. Pelo menos uma delas ainda mora no mesmo pedaço de terra onde seus antepassados foram parar.

Numa pequena casa cercada de peças enferrujadas, que destoa de vizinhas suntuosas, o caminhoneiro Pierre Rodenbour, descendente dos “brasileiros”, relutou em dar entrevista à DW.

“Eu sei que havia uma casa aqui. Uma casa muito pequena, mas construída com tijolos, com pedras. É a nossa história, sim. Mas não é que eu saiba tudo exatamente”, ele afirmou, após concordar, hesitante, que os “brasileiros” foram discriminados. Perguntado se a vida da família fora difícil, se limitou a dizer: “Não sei, eu não estava lá.”

Uma tentativa da prefeitura de renovar um casebre típico daquele tempo e preservá-lo para fins de memória já foi rejeitada por descendentes.

Ressignificando o passado

O estigma sobre os “brasileiros” impregnaria a imagem do Novo Brasil século 20 adentro. Sobreviveu em Luxemburgo a má fama de um lugar de supostas tendências gatunas.

“Em algum momento, minha mãe falou que não estava muito feliz que comprássemos uma casa aqui. ‘Ah você vai se mudar para Grevels? Por que Grevels?, ela perguntava'”, lembra Christiane. Foi a mesma experiência de Peiffer, ao aceitar a vaga de professor escolar há cinco décadas.

“Eu me lembro de a minha mãe dizer que eu não deveria ir para Grevels, porque eu voltaria nu. Estes preconceitos ainda estavam na mente das pessoas”, completa Helminger, que vem de outra parte de Luxemburgo.

Lentamente, as percepções vão mudando. Se, por um lado, os mais jovens já pouco sabem sobre o passado, no Campus Novo Brasil há quem trabalhe contra esta maré.

A professora Anne-Marie Diederich faz questão de contar aos alunos sobre o porquê do nome escolhido para a escola em 2021. As crianças sabem completar várias frases sobre os fatos de 1828.

“Eu sempre abordo este tema com a minha turma, porque é uma história muito triste, mas que as crianças conseguem entender bem”, diz a professora. “Para mim, é também importante recontá-la no contexto da integração. Temos um abrigo na região para pessoas que buscam asilo. Elas são bem-vindas aqui, e isso deve mostrar que não acontece o que aconteceu com as pessoas do Novo Brasil, que foram discriminadas.”

Alguns poucos dos 130 estudantes da escola descendem dos pioneiros de Grevels, e tantos outros são imigrantes de primeira ou segunda geração.

A comuna de Groussbus-Wal, que inclui Grevels, tem treze brasileiros dentre 2,3 mil habitantes. Pelo menos uma família de São Paulo mora, hoje, no coração do Novo Brasil.

“Sistema feudal em terras selvagens”

Historiadores acreditam que a maioria dos que tentaram construir uma vida no Brasil daquele período não tenha conseguido.

Havia ainda quem só ao chegar a Bremen descobrisse que era necessário pagar 120 florins renanos por adulto, ou 60 por criança entre 6 e 12 anos, para subir a bordo do navio, com exceção daqueles que se alistassem para o serviço militar brasileiro, enquanto o Brasil lutava a Guerra da Cisplatina. Hoje, estima-se que um florim renano valeria pouco menos de 1 euro (cerca de 6 reais).

Outros sofriam abusos dos articuladores das viagens que, frequentemente descritos como pouco ou nada escrupulosos, seduziam famílias do interior rural até as margens do Atlântico a embarcarem na aventura de virar brasileiro.

Guardadas no Arquivo Nacional de Luxemburgo, longas listas manuscritas registraram os nomes dos então futuros colonos, o tamanho das suas famílias quase sempre numerosas e se estavam recrutados para o Exército brasileiro. Eram agricultores, trabalhadores diários, comerciantes, açougueiros e mais.

“Sua profissão de marceneiro é o único meio de subsistência”, dizia a observação sobre um dos chefes de família da época. Não raro, os colonos viajavam convencidos de que encontrariam o seu Eldorado numa terra de muitas riquezas, incluindo ouro e prata.

Uma suposta comunicação do consulado imperial brasileiro em Bremen, veiculada por um jornal luxemburguês, afirmava que os migrantes ganhariam a propriedade de terras aráveis, pastagens e diversas espécies de gado proporcionais aos tamanhos das suas famílias. E, ainda, ajuda monetária para o sustento inicial e isenção de tributos por dez anos sobre renda e serviços.

As condições eram permanecer pela primeira década e, depois, entregar ao Estado um décimo da produção. “Não apenas a terra não será alienável, mas os colonos permanecerão vinculados a ela como os servos na Idade Média. Cidadãos dos Países Baixos, habitantes do Grão-Ducado de Luxemburgo, vocês querem deixar sua terra natal e se submeter a uma espécie de sistema feudal nas terras selvagens da América!”, disse, em resposta, o periódico.

Uma estimativa do historiador Claude Wey dá conta de 2,5 mil agricultores que em 1828 viajaram ao Brasil, com destino a Santa Catarina, o equivalente a 1,8% da população de Luxemburgo à época. Hoje, o Brasil é o país estrangeiro com segundo maior número de cidadãos luxemburgueses: 28 mil pessoas, atrás apenas da França, onde há 33 mil.