Mês foi marcado por conquistas de mulheres brasileiras nos Jogos Olímpicos, mas também pelos 18 anos da Lei Maria da Penha, que é ao mesmo tempo importante e triste.O mês de agosto começou inundado pela excitação dos Jogos Olímpicos de Paris. Foram 15 dias das mais variadas modalidades esportivas, sendo executadas por centenas de atletas dos mais diversos países. Ao mesmo tempo em que esse evento foi aula sobre a ordem mundial no sistema capitalista – basta ver o quadro de medalhas –, também contou aquelas histórias miúdas de pessoas que sozinhas representam uma nação inteira… não há como não ver beleza nisso.

Mas esses Jogos Olímpicos tiveram um gostinho especial: pela primeira vez na história houve paridade de gênero. Depois de mais de 120 anos, o número de atletas mulheres foi equiparável ao de homens. Uma mudança que diz muito sobre a história moderna das Olimpíadas, mas que fala muito mais sobre a quadratura histórica em que estamos e os avanços alcançados pelos movimentos feministas em todo o mundo.

No caso da delegação brasileira, o número de mulheres foi superior ao de homens. E, se não fossem elas, ou, se não fosse por elas, o Brasil não teria conquistado nenhuma medalha de ouro.

“Eu choro toda vez que vejo um atleta brasileiro em cena”: foi uma das frases que mais ouvi nas duas semanas de Jogos Olímpicos. Curioso. E o choro virou pranto – de alegria e de um nacionalismo que talvez nos fizesse falta – todas as vezes que subimos ao lugar mais alto do pódio.

Bandeira hasteada, mão no peito, hino na garganta

E como não poderia faltar nessa deliciosa pieguice nacionalista, todas as entrevistas das campeãs olímpicas brasileiras foram feitas sob o manto da superação. Histórias de mulheres que passaram por muitas intempéries antes de chegar no topo do Olimpo. Esse não é um manto falso, mas pode ser perigoso quando costuma ser a única possibilidade de falarmos das histórias de “sucesso” de mulheres pobres, periféricas, negras, indígenas. E, vale lembrar, dentre nossas quatro medalhistas de ouro, três são mulheres negras e uma é nordestina. Mulheres que, geralmente, não vemos sendo campeãs de muita coisa no mundo em que vivemos.

Talvez seja exatamente esse o nosso problema: conhecer pouco a diversidade que é ser mulher, sobretudo no Brasil.

Em meio aos Jogos Olímpicos, participei de uma banca de uma bela tese de doutorado, na qual a candidata revisitou boa parte da literatura brasileira, demonstrando como mulheres que poderiam ser as nossas medalhistas – ou as mães delas –, tiveram um lugar diminuto nos romances que foram escritos por autores brasileiros.

A tese focava especialmente na figura da empregada doméstica, uma das atividades que mais emprega pessoas no Brasil e que é massivamente executada por mulheres. Mesmo tendo uma representatividade tão grande (sem falar em toda história que essa categoria carrega), nunca foi protagonista das muitas histórias que encheram os livros e as telenovelas do país.

Eram (e em alguma medida continuam sendo) papeis secundários, personagens muletas, vidas sem esteio que serviam apenas para ajudar a desenrolar a trama principal – da qual elas eram telespectadoras ou, no máximo, vítimas. Histórias na qual sempre há algo para ser superado – a começar pelo lugar que elas têm na nossa capacidade de imaginar e de ler a sociedade brasileira.

Redução das experiências

Já passamos do tempo de reduzir as experiências das mulheres às histórias que nos encarceram. Não só porque essas histórias são pequenos fragmentos de nossas vidas, mas também porque esse desconhecimento sobre o mundo feminino é um dos responsáveis pelo alto índice de violência que se abate sobre nós.

Nesse mês de agosto, a Lei Maria da Penha completou 18 anos. Uma lei tão importante quanto triste, na medida em que revela como a vida das mulheres brasileiras segue ordenada por diferentes níveis de violência.

O feminicídio continua crescendo (parte dele diretamente vinculado ao aumento do número de porte de armas do fogo no país). Muitas vezes, superar é a única coisa que cabe às mulheres que sobrevivem a essas camadas de violência, pois não encontraram no sistema judiciário e na opinião pública o acolhimento, a compreensão e a justiça que merecem.

Superar é uma forma de sobreviver. Mas são as vidas das mulheres que devem importar.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.