Leve à mesa generosas porções de alimentos ultraprocessados, ricos em gordura, sal e açúcar; troque a água por refrigerante ou suco industrializado; junte a tudo isso uma boa dose de sedentarismo. A menos que você tenha uma genética superprivilegiada, o resultado não poderá ser outro: excesso de peso – um problema que atinge populações cada vez mais numerosas e jovens. Um estudo divulgado em junho na revista The New England Journal of Medicine não deixa dúvidas sobre isso.

Depois de reunir dados de 195 países, pesquisadores da Universidade de Washington, em Seattle (EUA), concluíram que, de 1980 a 2015, a obesidade dobrou em 73 deles. Ao todo, 10% da população mundial está obesa: 604 milhões de adultos e 108 milhões de crianças. Se somamos a esses números as taxas de sobrepeso, chegamos à astronômica cifra de 2,2 bilhões de pessoas, ou 30% da população mundial. Em 2015, ocorreram no mundo 4 milhões de mortes causadas por doenças relacionadas ao excesso de peso, o qual, segundo os pesquisadores, tem como principal causa o consumo de alimentos ultraprocessados.

Produtos ricos em açúcar: caminho certo para o excesso de peso (Foto: iStockphotos)

Também assustam os dados do relatório Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional da América Latina e Caribe 2016, lançado no início deste ano em Brasília: cerca de 360 milhões de habitantes desta região do mundo (58%) estão com sobrepeso e 140 milhões (23%) são obesos. Segundo o documento, um trabalho conjunto da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) e da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), uma das principais causas do excesso de peso foi a mudança nos padrões alimentares. Com o crescimento econômico, os pratos tradicionais, que tinham como base “os alimentos frescos, preparados e consumidos em casa”, foram dando lugar aos produtos ultraprocessados, com poucos nutrientes e ricos em açúcar, sódio e gordura.

Os números do relatório relativos ao Brasil são chocantes: mais de 50% dos brasileiros estão acima do peso e aproximadamente 20% atingiram a marca da obesidade. E o pior: entre 2006 e 2007, 7,3% das nossas crianças com menos de 5 anos (!) já estavam com sobrepeso. Para Eve Crowley, representante regional adjunta da FAO para a América Latina e o Caribe, além de recuperar a cultura culinária, precisamos juntar à boa alimentação as atividades físicas, uma vez que, ao pas­sarmos “da agricultura à vida mais urbana, nos tornamos mais sedentários”.

Problema antecipado

Essas estatísticas não surpreendem Maria Aparecida Zanetti Passos, coordenadora do Centro de Atendimento e Apoio ao Adolescente, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp): segundo suas pesquisas, meninos e meninas – prenúncio da nossa futura população de adultos – estão ficando obesos cada vez mais cedo. “Com 10, 11 anos eles já estão com problemas sérios de saúde decorrentes da má alimentação”, explica a nutricionista. Em 2010, quando publicou os resultados de um estudo que rea­lizou com 8.020 adolescentes entre 10 e 15 anos de idade, de 43 escolas paulistanas, públicas e privadas, Maria Aparecida já encontrou dados bastante significativos: 25,56% deles estavam com sobrepeso ou obesidade.

Nessa época, a nutricionista havia iniciado outra pesquisa, que duraria três anos. Dessa vez, trabalhou com 557 alunos da rede municipal e estadual, também entre 10 e 15 anos, e colheu todas as variáveis necessárias para “avaliar o crescimento com base no estágio de maturação sexual”. No fim do trabalho, ela descobriu que os adolescentes engordaram mais do que cresceram. “O excesso de peso, a idade e a idade feminina foram fatores que limitaram o crescimento”, conclui em seu artigo de pesquisa.

Os produtos prontos para comer ou beber disponíveis nos mercados (acima) têm poucos nutrientes e estão associados ao ganho de peso (abaixo) (Fotos: iStockphotos)

Atualmente, com a ajuda de uma equipe multidisciplinar, Maria Aparecida está fazendo um estudo de longa duração com estudantes da rede municipal de Santana de Parnaíba (SP). Além do estado nutricional, esse trabalho está avaliando os desvios alimentares e de comportamento, como déficit de atenção e uso de drogas. “Junto com o psiquiatra e os psicólogos, vamos verificar, por exemplo, quantas horas o aluno passa na internet, o que ele busca na rede, se esse hábito é uma fuga e até que ponto a obesidade está associada a isso”, explica a nutricionista.

A pesquisa, cujos resultados deverão ser publicados em outubro, analisará também a chamada “fome oculta” – a deficiência alimentar de micronutrientes (vitaminas e minerais), essenciais para o equilíbrio do nosso organismo. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cada quatro pessoas no mundo sofre desse mal.

Detecção na escola

A equipe da Unifesp vai transformar o projeto de Santana de Parnaíba em uma plataforma permanente para as escolas públicas da cidade. “Vamos treinar os profissionais que chegam, para que eles deem continuidade ao trabalho”,­ afirma a pesquisadora. Os professores, que convivem com os adolescentes, ajudarão a detectar, na sala de aula, os alunos com sobrepeso e obesidade e que apresentem desvios comportamentais. Com o estudo – que deverá ser apresentado a várias prefeituras – será possível também identificar, por região, as escolas com maior índice não só de obesidade, mas de dependência de drogas e de paternidade precoce, entre outros problemas. Caberá ao prefeito fazer o trabalho social necessário para resolvê-los.

O combate à obesidade deve começar ainda no período de gestação, afirma a pesquisadora Maria Aparecida Zanetti Passos (Foto: iStockphotos)

Há 20 anos desenvolvendo pesquisas com adolescentes, a nutricionista defende hoje uma medida radical para combater a obesidade. Como ainda cedo meninos e meninas já apresentam disfunções orgânicas provocadas pela alimentação inadequada, a intervenção, segundo ela, deve começar no período da gestação. “Precisamos conscientizar a gestante de que, nos primeiros anos de vida da criança, ela deve ter todo cuidado com a sua alimentação. Porque, geralmente, até o filho fazer 1 ano, a mãe tem o maior capricho. Depois, permite um chocolate, refrigerante… Temos visto muitos bebês de 6 meses – pasme! – tomando mamadeira de refrigerante à base de cola.”

Para ser vencida, a guerra contra a obesidade deve ser travada em várias frentes. Aos governantes cabe, no mínimo, manter a população bem informada sobre o tema e coibir os abusos da indústria alimentícia; às escolas, adotar as práticas de uma dieta saudável não só na merenda, mas também na grade curricular, como matéria obrigatória; e aos pais, providenciar a reeducação alimentar de seus filhos e de si próprios. Aos pesquisadores brasileiros – que estão cansados de alertar sobre a obesidade e seus malefícios – só resta continuar espalhando, aqui e acolá, as sementes da conscientização e a prática da boa cozinha. Sempre com pouca verba, claro…


A classificação brasileira dos alimentos

Frutas: alimentos integrantes do primeiro grupo (Foto: Filipe Frazao)

Criado por pesquisadores da Faculdade de Saúde Pública da USP, o sistema NOVA de classificação dos alimentos se tornou uma referência mundial para as orientações dietéticas atuais. Ele divide os alimentos em quatro grupos, de acordo com o tipo de processamento por que passam:

1) Alimentos in natura ou minimamente processados
São classificados como in natura as partes comestíveis de plantas e animais, como sementes, frutos, folhas, ovos e leite, além de cogumelos, algas e a água logo depois de ser retirada da natureza. Os minimamente processados são alimentos in natura que passaram, por exemplo, por secagem, desidratação, moagem, torra, congelamento e pasteurização e não receberam a adição de substâncias como sal, açúcar, óleos ou gorduras. Compõem essa lista as frutas secas, os sucos de frutas pasteurizados, a lentilha, o grão-de-bico, a carne bovina, os pescados, leite em pó ou pasteurizado, iogurte natural, etc.

2) Ingredientes culinários processados
Estão nesse grupo as substâncias extraídas de alimentos do grupo 1 ou da natureza e usadas nas preparações culinárias, como sal de cozinha, açúcar e óleos extraídos de vegetais ou animais. Os processos envolvidos aqui são prensagem, moagem, pulverização, secagem e refino.

3) Alimentos processados
São produtos fabricados com a adição de sal ou açúcar (às vezes óleo ou outra substância do grupo 2) a um alimento do grupo 1. Por exemplo: queijos, pães, conservas de hortaliças, castanhas com sal ou açúcar, frutas em calda e peixe conservado em óleo ou água e sal.

4) Alimentos ultraprocessados
São os produtos feitos tipicamente com cinco ou mais ingredientes, que incluem substâncias utilizadas na produção de alimentos processados (sal, açúcar, óleos e gordura), além de conservantes, estabilizantes e antioxidantes. O principal objetivo do ultraprocessamento é criar produtos industriais prontos para comer e beber ou que precisem só ser aquecidos e substituam os alimentos não processados ou minimamente processados. Fazem parte desse grupo refrigerantes, sorvetes, balas, chocolates, biscoitos, cereais matinais, barrinhas de cereal, bebidas com sabor de frutas, molhos prontos, maioneses, fórmulas infantis e de seguimento e outros produtos para bebês, produtos de carne reconstituída (como salsicha e hambúrguer), sopas e macarrão instantâneos, etc.


Menos açúcar

Diariamente, consumimos dois tipos de açúcar:

O natural, que está presente em frutas, legumes e leite fresco.
O açúcar livre, que é adicionado aos alimentos e bebidas, seja pelo consumidor, pelo cozinheiro ou pelo fabricante do alimento. Também se encaixam aqui o açúcar do mel e dos xaropes.

Desde 2015, a Organização Mundial da Saúde recomenda que adultos e crianças reduzam o consumo de açúcar livre a menos de 10% das calorias ingeridas diariamente. Numa dieta de 2.000 calorias, isso equivale a 50 gramas de açúcar por dia. O ideal para a OMS, porém, é baixar esse índice a menos de 5%, ou seja, 25 g por dia (cerca de seis colheres de café). O açúcar natural não entra nessa redução.

A diminuição de açúcar livre é essencial para se evitar diabetes, obesidade e problemas dentários.


O vilão refrigerante

Ricos em açúcar e sódio, entre outras substâncias, os refrigerantes podem causar diversos males ao nosso organismo, comprovados por inúmeras pesquisas. Eis alguns deles:

Obesidade
Aumento da gordura hepática
Diabetes tipo 2
Problemas cardiovasculares
Cáries
Gastrite
Aumento do risco de câncer

Além desses problemas, alerta a pesquisadora Maria Aparecida Passos, os refrigerantes à base de cola aumentam a diurese, o que compromete os rins e provoca maior excreção de cálcio dos ossos e dos dentes.