21/06/2016 - 19:38
Em silêncio, a desertificação vem causando mais estragos do que o aquecimento global e desastres naturais como terremotos e furacões. Considerado um dos maiores problemas socioeconômicos contemporâneos, o fenômeno transforma terras cultiváveis em desertos a um ritmo de 120 mil quilômetros quadrados (12 milhões de hectares, ou quase três estados do Rio de Janeiro) por ano. Se mantida essa velocidade, a Organização das Nações Unidas (ONU) calcula que até 2050 o mundo perderá 8,49 milhões de quilômetros quadrados de solo produtivo, área equivalente à do Brasil. No país, as áreas suscetíveis de desertificação (ASD) somam 1,34 milhão de quilômetros quadrados, ou 16% do território nacional.
Embora haja desertos naturais no planeta há milhões de anos, as áreas que o homem degradou e tornou improdutivas são mais recentes. Elas começaram a surgir com a invenção da agricultura e do pastoreio e o uso das florestas para fazer lenha, a partir de 10.000 a.C. Processo lento, a desertificação só começou a chamar atenção no século 20, graças a acontecimentos dramáticos como a seca de três anos que ocorreu no Meio-Oeste americano nos anos 1930. O clima semiárido e a degradação da terra na região agravaram o fenômeno, estimulando os cientistas a iniciar pesquisas voltadas ao conhecimento dos processos de desertificação.
Outra seca, esta no Sahel (a faixa de terra situada ao sul do Saara, na África), entre 1968 e 1973, levou 500 mil pessoas à morte e foi um alerta ainda mais vigoroso para a gravidade do problema. A partir de então, a comunidade internacional começou a se mobilizar para combatê-lo. Em 1977, ocorreu em Nairóbi, no Quênia, a Conferência Internacional das Nações Unidas para o Combate à Desertificação, que definiu o fenômeno como “a degradação da terra nas zonas áridas, semiáridas e subúmidas secas resultantes de fatores diversos tais como as variações climáticas e as atividades humanas”.
Linhas de combate
Um dos principais resultados da conferência foi a criação da Convenção das Nações Unidas de Combate à Desertificação (UNCCD, na sigla em inglês), em 17 de junho de 1994, data que se transformou no Dia Mundial de Luta Contra a Desertificação. Ela estabelece as diretrizes para o combate ao problema em nível global. Em vigor desde 26 de dezembro de 1996, a UNCCD já foi assinada por mais de 190 países e é, hoje, a maior referência para planejar ações de controle do fenômeno. O Brasil a ratificou em 12 de junho de 1997.
Apesar desse esforço, o problema vem se agravando. “Cerca de 41% da superfície do planeta é coberta por terras secas, das quais de 10% a 20% estão sofrendo processos de degradação e desertificação”, diz a bióloga Rita Marcia da Silva Pinto Vieira, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). “Hoje, 44% das áreas agrícolas do mundo e cerca de 2 bilhões de pessoas estão localizadas sobre essas terras, e a maioria (90%) corresponde a países em desenvolvimento.”
Segundo Ana Maria Heuminski de Avila, diretora do Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas em Agricultura (Cepagri) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), a desertificação nas regiões semiáridas brasileiras foi formalmente identificada ainda nos anos 1970. “Um estudo pioneiro, realizado pelo ecólogo pernambucano João Vasconcelos Sobrinho, informava que ali estaria a surgir ‘um grande deserto com todas as características ecológicas que conduziriam à formação dos outros grandes hoje existentes em outras regiões do globo’”, conta. “O deserto que ali vinha se formando seria ‘atípico, diferenciado do típico deserto saariano, pela incidência de precipitações e natureza do solo, mas com as mesmas implicações de inabitabilidade’.”
As ASDs no Brasil englobam hoje 1.488 municípios (27% do total), afetando 31,6 milhões de habitantes, ou 17% da população do país, ou ainda 85% dos cidadãos considerados pobres. O Ministério do Meio Ambiente (MMA) reconhece oficialmente quatro núcleos de desertificação no país, isto é, onde ela já ocorre de fato. Todos se localizam no Semiárido nordestino e somam 21,3 mil km2 (veja quadro na página ao lado.)
Gravidade ampliada
Estudos recentes apontam, porém, que a situação é ainda mais séria do que indica a versão oficial. Pesquisadores do Laboratório de Análise e Processamento de Imagens de Satélites da Universidade Federal de Alagoas (Lapis) cruzaram dados sobre a vegetação do Nordeste com índices de chuva nos últimos 25 anos, até abril de 2015. A pesquisa mostra que a desertificação atinge hoje, de forma grave ou muito grave, 230 mil km2 de terras da região, uma área maior do que a do Ceará.
Com base no trabalho do Lapis, o Instituto Nacional do Semiárido (Insa), do Ministério da Ciência, Inovação e Tecnologia, adicionou dois núcleos aos já conhecidos: Sertão do São Francisco (BA) e Cariris Velhos (PB).
Segundo Rita, a escassez de água e a perda ou redução de solos e da diversidade biológica causadas pelo fenômeno levam à improdutividade agrícola e ao abandono das terras pelas populações afetadas, que, como consequência, têm sua qualidade de vida comprometida. “O êxodo das áreas afetadas para as cidades desencadeia outros problemas sociais, associados a falta de emprego, moradia e estruturas educacionais e de saúde”, observa.
Para mitigar esses problemas, além de ter atendido à exigência da UNCCD de criar o Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca (PAN), o Brasil vem tomando outras iniciativas. Segundo Rita, o Inpe está construindo, em parceria com o MMA, o Sistema de Alerta Precoce contra Seca e Desertificação (SAP). “Cabe ao ministério a responsabilidade formal de coordenar e implementar ações preventivas de controle e combate ao problema”, diz.
“Nesse sentido, destacam-se os esforços da Comissão Nacional de Combate à Desertificação (CNCD), que vem articulando ações de convivência sustentável com a semiaridez para promover a segurança alimentar, hídrica, energética e da biodiversidade. Além disso, há o fortalecimento da pesquisa científica e inovação tecnológica, com o objetivo de monitorar, avaliar e prevenir os processos de desertificação e eventos extremos de seca.”
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Reino da areia
Há um processo de degradação do solo no Brasil, sobretudo no Rio Grande do Sul e no Centro-Oeste, semelhante à desertificação: a arenização. A diferença básica entre eles está no volume de chuva que cada local recebe. Enquanto os desertos estão em regiões áridas, semiáridas ou subúmidas, os areais se formam em áreas de clima subtropical, com chuva média anual de 1.400 milímetros. Sua origem remonta a 200 milhões de anos, quando a maior parte do centro-sul brasileiro era um imenso deserto. Hoje, o solo é pobre, com muita areia em sua composição.
A geógrafa Dirce Suertegaray, da Universidade Federal do Rio do Grande do Sul (UFRGS), estuda o problema há décadas e já publicou dois livros sobre o tema. Segundo ela, a área arenizada gaúcha é quase a mesma nas últimas décadas. “Em 1989 tínhamos o registro de 3.024,37 hectares de áreas em processo de arenização, em um total de 1.497 areais (zonas de areia exposta sem cobertura vegetal, sujeitas à ação do vento e das águas de escoamento superficial”, informa. “No último levantamento, em 2004-2005, foram encontrados 3.027,41 hectares e um total de 1.634 areais.” Os maiores núcleos estão em Alegrete, Quaraí e São Borja, na fronteira do Brasil com a Argentina e o Uruguai.
De acordo com Dirce, o pequeno crescimento talvez se explique pela política pública adotada pelos recentes governos gaúchos de estimular a silvicultura nessas áreas. Com o plantio de eucaliptos nos areais, não é mais possível mapeá-los com imagens de satélite, por exemplo. “Mas o problema persiste”, afirma Dirce. “A silvicultura apenas incentiva a exploração econômica dessas áreas consideradas improdutivas pelo governo.” O problema é mais antigo do que se imagina. “Povos caçadores-coletores já conviviam com ele há séculos”, afirma Dirce. “Mas isso foi agravado pelo uso inadequado do solo, sobretudo pelo cultivo da soja.” É a mesma causa da arenização de algumas regiões do cerrado, sobretudo em Goiás.