Levado para Europa como escravizado, Friedrich-Wilhelm-Marcellino conseguiu a liberdade em Berlim e inspirou mudança na legislação prussiana.Na Berlim dos anos 1860, um brasileiro negro chamava atenção por trabalhar como intérprete de alemão para portugueses, espanhóis e italianos. Bem-vestido, elegante e conhecedor de cerveja, ele ostentava até um nome germânico: Friedrich-Wilhelm-Marcellino. Os jornais da época destacavam, sobretudo, seu protagonismo em um caso que mudou a história prussiana no século 19.

Marcellino chegou ao então Reino da Prússia, Estado alemão que impulsionou a unificação da Alemanha , na condição de escravizado. Lá, ele conseguiu apoio para mover um processo civil contra seu proprietário e conseguir sua liberdade. A repercussão de seu caso contribuiu para a abolição definitiva da escravidão na Prússia em 1857.

Relativamente bem documentada em alemão, a trajetória de Marcellino ainda é praticamente desconhecida no Brasil, conta o antropólogo Gerhard Seibert, que escreveu recentemente um artigo sobre o brasileiro e sua importância para a história da Prússia.

Marcellino nasceu escravizado no Rio de Janeiro por volta de 1830. Em março de 1852, um médico chamado Ludwig Ritter comprou-o de uma viúva. Ritter era natural de Dresden e já morava há pelo menos três décadas no Brasil com sua esposa e filhos. Jornais da época destacavam que o médico trabalhou em diversos hospitais pelo mundo e na Fazenda Imperial de Santa Cruz, onde os monarcas brasileiros passavam suas férias. No início de 1854, Ritter embarcou em uma viagem à Prússia, acompanhado de Marcellino.

Embora a Prússia tivesse proibido a escravidão desde 1794, havia uma exceção para estrangeiros que permanecessem nos estados reais temporariamente. Estes poderiam neste período possuir escravizados. Já os escravizados trazidos do exterior por quem fosse ficar na região recebiam a liberdade, mas precisariam trabalhar para o antigo senhor para pagar as supostas despesas da compra.

Primeiramente, Ritter foi para Dresden, onde Marcellino começou a se recusar a obedecer ao médico. Na parada seguinte, em Berlim, Marcellino resolveu se desvencilhar de vez do proprietário. Ele chegou até mesmo a fugir por alguns dias. O médico então decidiu voltar com Marcellino ao Brasil, pois não poderia mantê-lo escravizado legalmente na Prússia.

Em Berlim, Marcellino conheceu um jornalista prussiano que o aconselhou entrar na justiça por sua liberdade. Em fevereiro de 1854, Marcellino abriu um processo de difamação contra seu ex-proprietário. “Isso foi uma estratégia jurídica para contestar seu status de escravo”, afirmou Seibert.

Na primeira instância, Marcellino conseguiu uma sentença favorável que reconheceu sua liberdade enquanto Ritter não reivindicasse a propriedade. O brasileiro, no entanto, perdeu nos recursos nas instâncias superiores, que não consideraram o caso como uma difamação. Entretanto, nenhuma autoridade se dispôs a entregar Marcellino de volta a Ritter. O médico acabou voltando para o Brasil sozinho, conforme a pesquisa de Seibert.

A repercussão do caso

O caso de Marcellino escancarou uma brecha legal que, na prática, ainda permitia a escravidão na Prússia. O historiador Marcus Dezemone, professor adjunto na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), destaca que o movimento antiescravista na época era fortemente impulsionado por discussões sobre o direito à liberdade e à propriedade, bem como o direito à igualdade jurídica na Europa.

O caso teve repercussão até mesmo nos Estados Unidos, onde os escravistas passaram a usar a Prússia como exemplo de legislação pró-escravidão vigente. Com efeito, essa repercussão não foi bem recebida na região e demandou mudanças na legislação.

Na época, um dos principais abolicionistas da Prússia, o naturalista Alexander von Humboldt (1769-1859), que participou de uma expedição científica para vários países da América Latina, se empenhou para mudar a legislação. Em 1856, foi estabelecido uma comissão para redigir um projeto de lei para acabar com a brecha legal que permitia estrangeiros manterem escravizados no país.

A mudança, que determinou que escravizado se tornariam livres a partir do momento da entrada no território prussiano, foi aprovada em 1857.

A vida de Marcellino após o processo

Após o processo contra Ritter, Marcellino permaneceu na Prússia, como um homem livre, e conseguiu se estabelecer graças ao apoio de diversos abolicionistas locais. Em 1855, ele recebeu um financiamento estatal para estudar no país. Ele se tornou marceneiro e pretendia a princípio voltar ao Brasil para comprar a liberdade de sua mãe e irmãos. Como acabou conseguindo um emprego de garçom em um movimentado salão de festas em Berlim, resolveu ficar de vez.

Em 1861, Marcellino pediu a mão de uma jovem alemã em casamento, mas precisava de um sobrenome para se casar. Ele pediu então autorização ao rei Friedrich Wilhelm 4° para adotar seu nome e manter Marcellino como sobrenome. Assim, passou a se chamar Friedrich-Wilhelm-Marcellino. O casamento aconteceu na Catedral de Berlim no mesmo ano.

À época, Marcellino era dos poucos negros residentes em Berlim . Já fluente em alemão e versado na legislação prussiana, ele era participante ativo na comunidade negra da cidade, além de ajudar outras pessoas em situações análogas à escravidão. Um caso emblemático foi quando Marcellino mobilizou um grupo para ajudar dois criados negros supostamente escravizados por um comerciante árabe. Investigações posteriores concluíram que as acusações eram falsas, mas a mobilização da comunidade negra berlinense demonstra sua força já naquela época, destacou Seibert.

Pouco se sabe o que aconteceu com Marcellino após esse episódio. Ele começou a trabalhar como intérprete, chegou a ser acusado de roubo de dois copos em um bar, deixou Berlim e teria participado regularmente do Carnaval de Colônia.

Em 1872, Marcellino voltou para Berlim, onde trabalhou como porteiro no zoológico da cidade. Naquela época, o local realizava exibições de povos não europeus. “A presença de um negro na entrada foi considerada uma publicidade eficaz”, indica o artigo de Seibert.

Em 1875, ele foi demitido por motivos desconhecidos e voltou a trabalhar como garçom. Faleceu em março do mesmo ano depois de participar de uma aposta com a ingestão de bebidas alcoólicas. Embora fosse uma personagem ilustre de Berlim, não existem registros como fotografias ou retratos de Marcellino.

Para historiadora e educadora no Museu Afro-Brasil, Julia Aquino, histórias como a de Marcellino ajudam a demonstrar que pessoas negras e escravizadas foram também agentes políticos que se mobilizaram e reivindicaram seus direitos e seu lugar na história do Brasil e do mundo. “Precisamos criar imaginários de liberdade, e entender que houve sim pessoas africanas trabalhando nas cortes, que pessoas negras escravizadas conseguiram a liberdade por meio de processos, para que a gente não ache que foram exceções.”