26/04/2022 - 15:27
Foi conhecida na tarde desta terça-feira (26/4) a escola de samba campeã do Carnaval 2022 no Rio de Janeiro. Neste ano, a festa proporcionou o reencontro das agremiações com a avenida e o público após dois anos sem desfiles devido à pandemia. O retorno à Marquês de Sapucaí foi marcado por um festival de reverência à ancestralidade afro-brasileira e luta antirracista.
A escolha de enredos que versam sobre esse universo não representa, em si, uma novidade. Afinal, as escolas de samba são fruto da herança cultural diaspórica no Brasil. Porém, há muito não se via uma presença tão forte de enredos “empretecidos”. Das 12 escolas de samba do Grupo Especial, oito escolheram homenagear orixás e personalidades pretas emblemáticas de suas histórias.
O destaque da primeira noite de desfiles ficou por conta da Beija-Flor de Nilópolis, que apresentou o enredo Empretecer o Pensamento é Ouvir a Voz da Beija-Flor. Em baixa nos últimos anos, a escola de Nilópolis fez um desfile de forte impacto técnico e visual, em cima de um enredo que buscou mostrar a presença do racismo e exaltar a contribuição do pensamento negro na sociedade brasileira.
“Foi-se o açoite, a chibata sucumbiu/ Mas você não reconhece/ O que o negro construiu/ Foi-se o açoite, a chibata sucumbiu/ E o meu povo ainda chora/ Pelas balas de fuzil/ Quem é sempre revistado/ É refém da acusação/ O racismo mascarado pela falsa abolição/ Por um novo nascimento, um levante/ Um compromisso/ Retirando o pensamento/ Da entrada de serviço”, dizem versos do samba-enredo.
O desfile histórico da Grande Rio
O “renascimento” da Beija-Flor criou um ar de favoritismo, pelo histórico vencedor da escola. Porém, o desfile da Grande Rio na segunda noite da festa arrebatou público e crítica. A escola de Duque de Caxias se tornou favorita a um título inédito após abrir os caminhos para Exu na Marquês de Sapucaí, pelo enredo Fala, Majeté! Sete Chaves de Exu.
Com exuberância estética, a Grande Rio buscou desmistificar o orixá regente do movimento e da comunicação, demonizado pela cultura de intolerância religiosa vigente na sociedade brasileira.
Voz ativa contra o preconceito religioso no Brasil, a jornalista Flávia Oliveira foi convidada a desfilar com a Grande Rio e viveu a emoção da homenagem a Exu de dentro da avenida. Embora torça pela Beija-Flor de Nilópolis, Flávia diz esperar que os jurados reconheçam o Carnaval maiúsculo da escola de Duque de Caxias.
“O que aconteceu ali está em linha com a agenda de nosso tempo. A escola fez política e arte. A concepção visual carregada de cores, saturada, é Exu. No último carro, o lixo revisitado, não como descarte, sujeira, feiura, miséria, é reapresentado como matéria-prima da sustentabilidade, beleza, potência. Um luxo! A comissão de frente, com o mito de Exu como a boca que tudo come e o rito dele oriundo foi das representações mais bonitas, impactantes e sofisticadas que já passaram pela Sapucaí”, diz a jornalista.
Entre analistas, o desfile da Grande Rio em 2022 já é tratado como histórico. Para Flávia Oliveira, a apresentação trouxe uma revolução estética e conceitual do Carnaval do Rio, pelas mãos dos carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora. Na formulação do enredo, a dupla contou com a consultoria do antropólogo Vinicius Natal.
“Eles revolucionaram a festa. As últimas vezes em que isso aconteceu foram com Joãosinho Trinta, em Ratos e Urubus, desfile da Beija-Flor de 1989 – reverenciado, inclusive, no desfile sobre Exu) – e Paulo Barros, com DNA, pela Unidos da Tijuca em 2004. João fez revolução estética e conceitual; Barros, só estética. Até hoje, ele tem dificuldade para contar histórias. Nos dois casos, as escolas não ganharam o carnaval. Mas foram e são lembradas”, recorda.
Exu como a “rua encarnada”
A avaliação da jornalista sobre o desfile é endossada pelo historiador Luiz Antônio Simas, autor de diversos livros sobre Carnaval e samba. Inclusive, algumas de suas obras constam nas referências utilizadas pelos carnavalescos para formular o enredo. Para o escritor, a escola se destacou não apenas por levar um tema tabu à avenida, mas também por abarcar toda a sua complexidade.
“A escola trouxe a presença de Exu na encruzilhada, no botequim, no Carnaval. É um enredo exusíaco, em que Exu não é uma metáfora da rua, ele é a própria rua, a força da rua encarnada. Gostei muito, porque trabalha na comissão de frente com o Exu africano, o orixá primordial, da criação, mas traz um Exu diaspórico que se manifesta na força das ruas do Brasil. Isso foi muito bonito”, comenta.
O historiador também chama atenção para o desfile da Unidos da Tijuca, que apresentou em seu enredo a lenda do guaraná na cosmovisão do povo indígena Sateré-Mawé.
“O tratamento que o carnavalesco Jack Vasconcelos deu ao desfile foi de uma originalidade absoluta, porque o enredo foi apresentado como se uma criança estivesse tendo contato com o mito dos Sateré-Mawé. É absolutamente fora do padrão. Ele trouxe uma explosão de cores que poucas vezes vi e me deixou especialmente impactado”, analisa Simas.
Neste ano, os desfiles aconteceram fora de época, dois meses após o Carnaval. A decisão de adiar a festa partiu da Prefeitura, justificada pelo receio de uma nova onda de contágio da Covid-19. A edição deste ano marcou o retorno da cerimônia oficial de entrega das chaves da cidade ao Rei Momo, que marca o início da festa, após seis anos. A tradição havia sido abandonada pelo ex-prefeito Marcelo Crivella, que nunca esteve no Sambódromo para acompanhar os desfiles nos quatro anos de seu mandato.
A hostilidade de Crivella contra o Carnaval foi o ponto de partida para um reencontro das escolas com suas raízes. Em um contexto de crise econômica no país, o ex-prefeito cortou o apoio oficial às escolas. Sem a subvenção oficial e enredos patrocinados, que trouxeram para a avenida homenagens ao agronegócio e a uma ditadura africana, as escolas perderam verbas, mas ganharam liberdade criativa.
Volta às raízes pode não ser definitiva
Na avaliação do jornalista Fábio Fabato, autor de diversos livros sobre o Carnaval e as escolas de samba, o retorno à ancestralidade foi impulsionado pelo conservadorismo que ganhou força na sociedade brasileira nos últimos anos.
“Toda bateria de escola de samba toca para um orixá: a Mocidade falou de Oxóssi, porque quando ela bate no couro do seu tambor, está tocando para Oxóssi. A Mangueira, para Oyá. É um tipo de linguagem, uma gramática, que a formação cristã brasileira dominante não gosta. As escolas foram beber na sua fonte de origem para sobreviver”, comenta.
Para o jornalista, este é o pano de fundo do processo que culminou em um Carnaval com uma múltipla forma de enredos “empretecidos” na avenida. Além da exaltação da Beija-Flor à intelectualidade preta, destacaram-se os desfiles do Salgueiro, com o enredo “Resistência”, e da Vila Isabel, que homenageou o compositor Martinho da Vila.
Apesar do frisson provocado pelo predomínio de temáticas negras no Carnaval deste ano, Fabato alerta que o retorno à ancestralidade representa um movimento pendular das escolas de samba. Sendo assim, não deve ser entendido como um processo irreversível a partir de agora.
“Historicamente, as escolas de samba dialogam com o entorno. Se a economia melhorar, se a vida melhorar, é natural que elas não mordam tanto na carne. Elas dialogam com um contexto indo e vindo. Não se trata de uma arte final, mas no atual momento foi este modo que elas encontraram para dialogar com o que está aí”, explica.