01/05/2011 - 0:00
Banquete para o Sol a 3.000 metros de altitude.
A atmosfera é quase sombria quando se entra na estrada que vai de Quito ao norte do Equador, até o povoado de San Clemente, a 3.000 metros de altitude. Dá para duvidar se a névoa é uma densa cerração ou a fumaça expelida por um dos gigantescos vulcões que fervilham na região, como o Guagua Pichincha (4.790metros), o Cotacachi (4.950metros) e o Imbabura (4.630metros). As montanhas onipresentes podem ser vistas até por olhares desatentos.
O acaso é sempre um convidado especial nas viagens. Sobretudo quando se é convidado pelos indígenas caranquis, de San Clemente, para participar da Festa do Reflorescimento – Paucar Rayni, no idioma quéchua –, o ritual religioso que acontece no equinócio, nos dias 20 ou 21 de março, e marca o início do calendário agrícola na cultura andina.
Casas em San Clemente, que servem de alojamentos para os visitantes do Paucar Rayni.
As primeiras saudações ao Sol realizadas pelo xamã Juan Manuel.
A cerimônia prestigia a tendência, crescente nos povos latino-americanos, de buscar o resgate da herança pré-colombiana. Reivindica-se a repatriação de objetos históricos enviados a museus no Exterior, a oficialização das línguas quéchuas, faladas por 10 milhões de pessoas nos Andes da Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador e Peru, e a ambiciosa refundação política desses países de acordo com as tradições indígenas – como, se vê na Bolívia de Evo Morales e no Equador do presidente Rafael Correa. Sintonizada com o movimento, San Clemente busca recuperar o seu legado cultural nas festas dedicadas ao Sol.
Há poucos anos a festa passaria despercebida, mas o turismo solidário, que busca a inclusão social da comunidade, ajudou a colocar o povoado de San Clemente em destaque no mapa cultural do Equador
Há nove anos a festa passaria despercebida, mas tudo mudou graças à ideia do turismo solidário, ou turismo de base comunitária, em que predomina o objetivo da inclusão social e econômica da comunidade regional. Além de promoverem as belezas locais, os nativos recuperam suas tradições milenares e conquistam um lugar especial para o povoado no mapa cultural do país.
Acima, o círculo onde se realiza o ritual. Na foto seguinte, as pedras femininas aquecidas na fogueira. Na última, alimentos masculinos dispostos na cava da terra.
O vilarejo é despojado, sem a artificialidade que predomina em regiões notáveis por hotéis e resorts. San Clemente conserva a atmosfera de outros tempos. É difícil encontrar internet, não há bares nem restaurantes; o artesanato se encontra apenas em duas ou três casas e é vendido na sala mesmo. Há um campinho de futebol e uma igreja. Vinte famílias hospedam em casas confortáveis e modernas os viajantes que querem conhecer e participar das celebrações. São todas rodeadas por jardins e hortas de onde emanam aromas inesquecíveis. A região toda é verdejante.
Base História viva
Juan Guatemal, xamã e líder comunitário de San Clemente, conta que em 1950 nenhum caranqui era dono de terras. Trabalhava-se praticamente em regime de escravidão nas fazendas. “Meu pai acordava às três da manhã para tirar leite. Um dia me pediu para que fosse junto com ele. Eu tinha 7 anos. Fazia um frio de rachar e adormecemos no galpão. Meu pai acordou com as chibatas e os gritos do capataz: ‘Índio preguiçoso, da próxima vez você vai dormir para sempre!’ Quando a agressão acabou, ele me abraçou e disse: ‘Filho, prometa que vai estudar para nunca passar por isto’.”
Os mais velhos contam histórias de opressão e relembram que os fazendeiros agiam como senhores feudais, com poder de vida e morte sobre os índios que trabalhavam as terras. Guatemal cumpriu a promessa feita ao pai e virou líder da luta indígena pela recuperação das terras, nos anos 1960. A vitória veio com a reforma agrária de 1964, que, segundo os caranquis, não foi uma lei feita de maneira justa, pois o governo entregou as melhores terras para os latifundiários e deu o desolado páramo (o planalto dos Andes, entre 3.000 metros e 4.500 metros de altitude) aos camponeses.
Acima, abacaxi e repolho para o Sol. Ao lado, a dança descalça para aproximar os deuses.
Ali a vegetação é rasteira, castigada por chuvas de granizo e permanentemente envolta pela neblina o ano todo. Movidos pela sobrevivência e baseados nos conhecimentos agrícolas tradicionais, os indígenas transformaram o ecossistema em ricas plantações de batatas (3.800 variedades), de outros tubérculos e de cereais como a quinoa, de alto poder nutritivo. As encostas dos morros foram cobertas de lavouras. Uma vez retomada a posse da terra, as comunidades partiram para recuperar a identidade e resgatar a cultura abafada pela colonização espanhola. “Paucar Rayni é resultado de um processo de descobertas”, explica Samir Caranqui, também líder comunitário em San Clemente. “O ritmo agrícola andino é diferente do mundo ocidental. O Sol representa para nós o elemento central, em função do qual tudo se organiza. Cada aurora equivale a um renascimento.”
A festa de Paucar Rayni prestigia a tendência crescente dos povos latino-americanos de buscar o resgate da herança pré-colombiana, abafada por séculos de colonização espanhola
Juan Manoel, outro xamã de San Clemente, ressalta que a celebração é a mais importante das Festas do Sol. São quatro, ao todo, definindo o calendário agrícola andino, uma para cada estação. Paucar Rayni marca, em março, o início da primeira colheita. Nesse dia, o Sol atinge seu ponto mais alto em relação à Terra e seus raios caem perpendicularmente, dando origem ao fenômeno denominado “homem sem sombra”, ou o dia em que o “Sol descansa”. Por isso há uma cadeira no centro do círculo cerimonial, na vila. É para o Sol se sentar.
Convite à dança
Para retomar a Festa do Equinócio, os caranquis tiveram, primeiro, de reencontrar sua vocação agrícola, unindo o que o cotidiano moderno tendia a separar da tradição, para descobrir um sentido original e autêntico no cultivo do solo. Sob o Sol sagrado, o ritual inicia-se às 10 horas da manhã. Homens e mulheres vestem-se com trajes tradicionais. As mulheres usam saias longas plissadas, blusas com exuberantes bordados florais e muitos colares. Sob o chapéu, os cabelos estão cuidadosamente trançados com fitas. Tudo é muito colorido. Todas se concentram em selecionar uma impressionante variedade de alimentos que serão cozidos: abacaxi, vários tipos de batata, milho, fava, repolho e carnes.
Acima, Juan Guatemal oferece à Mãe Terra os alimentos cozidos na cerimônia.
Envoltos em ponchos e de chapéu, alguns homens cavam um buraco com um metro de diâmetro e um metro de profundidade, enquanto outros acendem uma fogueira. Em seguida, pedras com a superfície porosa (classificadas como “femininas”) são aquecidas numa fogueira e abençoadas com ramos da planta sagrada chilka.Os alimentos (tidos como “masculinos”) são dispostos harmoniosamente dentro do buraco na terra e cozidos por uma hora e meia. O ato, segundo Guatemal, significa que as pedras aquecidas junto com os alimentos realizam o que os andinos consideram um amor cósmico.
O forno primitivo é recoberto com folhas de bananeira, tecido úmido e terra, sobre a qual se colocam flores. Nesse momento surgem músicos, tocando flautas, violinos, tambores, e todos, nativos e viajantes, são convidados a dançar descalços sobre o local do cozimento. “A dança é o veículo que nos aproxima dos deuses”, explica Samir Caranqui. Durante horas os alimentos são cozidos e todos participam do cerimonial.
Finalmente a cava da terra é aberta, os alimentos são retirados e postos sobre toalhas longas feitas em tear manual. Antes de iniciar o banquete, Guatemal prepara um prato com cada alimento, eleva todos em oferenda, saúda o Sol e os coloca de volta na vala, novamente fechada. Então, proclama solenemente: “Os primeiros alimentos preparados voltam à terra como oferenda e agradecimento para a nova colheita que se iniciará amanhã. Devemos sempre compartilhar nossas alegrias e nossas festas com a natureza.”
A paisagem dos Andes, as cores e o calor humano da festa, os sons e aromas genuínos compõem a essência arrebatadora do Paucar Rayni equatoriano.
Serviço
Quem leva: Taca Cia Aérea, www.taca.com.br
Quem organiza: Chakana Tour Operator, www.chakana.com.ec
Sugestão: Para entender mais sobre o resgate da identidade dos movimentos indígenas andinos vale assistir ao documentário Pachamama (Brasil, 2008), do diretor Eryk Rocha.