03/11/2014 - 11:15
André Comte-Sponville é um filósofo apaixonado pela vida. Nascido em Paris em 1952, foi professor na Sorbonne e escreveu vários livros sobre política, amor, felicidade, morte, sabedoria e religião.
Como membro do Comitê Nacional de Ética da França e social-democrata convicto, ganhou manchetes nos jornais ao declarar a propósito da crise financeira global de 2008: “A esquerda já entendeu que o Estado não é bom para gerar riqueza; só falta a direita entender que o mercado não serve para criar justiça”
A obra de Comte-Sponville tem como referências confessas o existencialismo de Jean Paul Sartre (segundo o qual “todos somos responsáveis por todos”) e a ética de Dostoiévsky (para quem “somos todos responsáveis por tudo, diante de todos”). Mas, nesta entrevista à PLANETA, o filósofo se declara liberal ao abordar questões cotidianas como o amor e a morte. Para ele, a eutanásia não é uma questão
de dignidade, mas de liberdade, e a morte consciente deveria ser um direito social. Em seu apartamento em Paris, o filósofo ressalta que o amor não dá nenhuma resposta e que a filosofia, sozinha, não chega para alcançar a felicidade. O que resta? Viver a vida com aceitação.
O filósofo grego Diógenes ficou famoso por procurar um homem verdadeiro pelas ruas de Atenas. Os filósofos estão sempre à procura de algo. O que o sr. procura na filosofia?
Procuro duas coisas: um pouco mais de verdade e um pouco mais de sabedoria. Em primeiro lugar, um pouco mais de verdade, mas, paradoxalmente, em domínios onde não a conhecemos ou não a podemos conhecer, apenas pensá-la, como dizia Kant. Ou seja, sem jamais ter a certeza da verdade daquilo que pensamos. A filosofi a não é nem uma ciência nem um saber. Ela é uma refl exão sobre os saberes disponíveis; logo, também sobre o alcance e as limitações desses saberes. Trata-se de habitar, na medida do possível, a verdade disponível. E em segundo lugar procuro um pouco mais de sabedoria, na medida das nossas capacidades. A sabedoria para mim é o máximo de felicidade possível com o máximo de lucidez possível. Não se trata de um valor absoluto (de sermos mais ou menos sábios), mas de uma maneira – obviamente relativa – de habitar o absoluto, que é o conjunto de todas as relações.
O sr. foi educado na religião católica, mas é ateu. Como é ser ateu hoje?
Nunca foi fácil. Sem dúvida é mais fácil hoje em dia do que em outros tempos. Primeiro por razões sociais: o ateísmo deixou de ser uma raridade em certas partes do mundo; ele não é mais motivo de discriminação nem de opressão. Não vamos reclamar disso! Em segundo lugar, por razões teóricas, que se explicam pelo desenvolvimento das ciências da natureza. Isso não signifi ca que a ciência explique tudo, muito pelo contrário, mas ela demonstra que não precisamos de Deus para explicar qual é a origem da vida ou da humanidade. Darwin foi um mestre do ateísmo! Mas resta uma questão mais complexa, que continua sem resposta. É a questão do ser: por que existe algo, ao invés de não existir nada? Porém, Deus também não responde a essa pergunta. Por que Deus ao invés de nada? O ser não pode ser explicado porque todas as explicações pressupõem a sua existência. Resta, portanto, nos resignarmos ao mistério, ou melhor, aceitá-lo com alegria. Não tem jeito. Nós somos seres finitos, abertos para o infinito e o acaso. Essa abertura é o espírito. Mas por que o absoluto tem que ser o espírito? A natureza, inconsciente dela mesma, me parece uma explicação mais simples, mais verossímil e bem mais aceitável, mesmo que continue, ela mesma, inexplicável, assim como Deus. Ele se parece demais conosco para não ser suspeito.
O sr. diz que a política e a filosofia o afastaram de Deus. Essas duas áreas podem ajudar as pessoas a encontrar a felicidade que as religiões prometem?
A política não existe para fazer as pessoas felizes, mas para combater as causas objetivas da infelicidade (como a miséria, o desemprego, a injustiça e a opressão…). Quanto à filosofia, apesar de ela visar a felicidade, acho problemática a sua eficiência. Para a minha felicidade, a saúde dos meus filhos é mais importante do que o pouco de sabedoria que posso ter. Mas a filosofia me ajuda a aceitar. Ela me ajuda a compreender que existe algo mais importante do que a felicidade: a lucidez, a coragem, a justiça, o amor, o trabalho, a ação. Temos que parar de sonhar com uma felicidade perfeita ou constante! Vamos, sim, combater a infelicidade no mundo (é a função da política) e em nós mesmos (é a função da filosofi a).
Hoje em dia, o amor é visto quase como uma religião. Será que o amor pode ter a resposta para todas as nossas questões existenciais?
O amor não é Deus, porque ele não é nem imortal nem todo-poderoso. Ele não responde a nenhuma questão existencial. Mas todas as coisas têm o valor do amor que dedicamos a elas. A verdade? Ela só tem valor para quem a ama. A justiça, a liberdade? A mesma coisa: não têm valor para as pessoas que não as amam. Por isso o amor é um valor supremo, porque nada tem valor sem ele. Não podemos ainda reduzir o amor, de forma abusiva, à paixão amorosa, quase sempre prisioneira do narcisismo e das ilusões que temos de nós mesmos e em relação ao outro. Assim, todo casamento é a cena de uma aventura espiritual, porque permite passar do amor ilusório da ausência (a paixão amorosa; em grego, eros) ao amor verdadeiro de alegrarse com a existência do outro (a presença do amor; em grego, philia). No fundo, a verdadeira história de amor, num casal feliz, começa quando deixamos de lado a paixão amorosa e passamos a ver o outro como ele é, e não mais como sonhamos… É no fim do amor-paixão
que passamos ao amor-ação. E é muito melhor fazer amor do que sonhá-lo!
O pensamento de um filósofo muda com o tempo e com a experiência. O sr. acha que um filósofo busca, através do seu pensamento, uma maneira de ser eterno?
Tudo é eterno, a única coisa definitiva é a morte. A filosofia ajuda a compreender essas duas verdades, não a escapar delas. No meu caso, quando eu decidi escrever, foi, sem dúvida, para que uma parte de mim escapasse da morte. Mas era apenas uma fantasia absurda, da qual a filosofia me libertou. Prefiro viver no eterno presente – o devir ou o vir-a-ser – do que sonhar com outra eternidade, teoricamente constante, que possa vir, eventualmente, a existir. Os filósofos Heráclito e Parmênides também têm a mesma causa! Nós já estamos no Reino, a eternidade é agora.
A existência de Deus tenta prolongar a nossa experiência de vida, fazer com que nossa existência continue “em outro mundo”. O sr. não tem medo da morte?
Vamos ser francos, ninguém quer morrer! Mas morremos mesmo assim… É nisso que a vida é trágica. Porque ela não liga para as esperanças. Precisamos, então, inventar ou reinventar uma sabedoria trágica que não seja uma negação da morte, mas uma aceitação lúcida.
Mas a religião polui o discurso sobre o direito a uma morte digna e a eutanásia, colocando pecado e culpa no sofrimento desnecessário de um enfermo.
A eutanásia não é uma questão de dignidade, mas de liberdade. Um doente em fase terminal tem exatamente a mesma dignidade que todos nós. O direito ao suicídio faz parte dos direitos do homem.
As religiões são livres de ver nisso um pecado, mas um Estado laico não tem que ouvir as proibições religiosas. Nunca obrigaremos um cristão a recorrer à eutanásia, mas que direito têm os cristãos de me impedirem de o fazer, por minha própria vontade? Em nome de que eles querem impedir o meu médico, se estou em estado de sofrimento profundo, de me ajudar a morrer? Sou um liberal. Não aceito que o Estado venha limitar a minha liberdade, se ela não interferir com a liberdade alheia.
No Brasil, o “país do futuro”, a esperança sempre foi vista como uma qualidade, como uma crença quase cega no futuro. Por outro lado, o sr. é um crítico da esperança.
Temos esperança pelo que não conhecemos, pelo que não é, pelo que não depende de nós. Ter esperança é desejar sem saber, sem poder, sem proveito. Por isso digo que mais vale desejar o que é
(não mais esperança, mas amor), o que conhecemos (não mais esperança, mas confiança), ou o que fazemos (não mais esperança, mas vontade). Não digo que devemos renunciar ao futuro, mas que devemos pensar nele de maneira mais voluntária, ativa e responsável. Esperança de justiça? Qualquer um pode ter. Mas o que você faz, concretamente, para combater a injustiça? Em vez de falar, fazer. Não se trata de proibir a esperança, mas de esperar um pouco menos e, principalmente, de amar, de saber e de agir mais!
Na sua opinião, a sabedoria e a felicidade são inatingíveis ou somos nós que as colocamos nesse patamar, para termos algo a buscar eternamente?
A sabedoria e a felicidade são inatingíveis quando as colocamos como ideais, ou seja, como objetos de crença e esperança. Na verdade, os ideais não existem. Acreditamos na sabedoria e na felicidade e as perseguimos sem parar, e isso nos impede de atingi-las. É a formula de Woody Allen: “Como eu seria feliz se eu fosse feliz!” Mas como ele poderia ser feliz se só tem a vontade de um dia sê-lo? Temos que renunciar a esses grandes ideais peremptórios (uma felicidade total, uma sabedoria absoluta), que são apenas mentiras ou armadilhas. A verdadeira sabedoria não é amar a felicidade (não é preciso sabedoria para isso, qualquer idiota é capaz de amar a felicidade), nem mesmo é amar a sabedoria (qualquer filósofo pode fazê- lo). A verdadeira sabedoria é amar a vida como ela é, na forma em que ela se apresenta, feliz ou infeliz, sábia ou não. É claro, nenhuma vida é totalmente feliz ou sábia. Isso não existe, nunca existiu e não existirá. O segredo é: paremos de perseguir a felicidade ou a sabedoria, a única maneira de nos aproximarmos delas. Paremos de crer, de esperar, de sonhar. Temos que aprender a amar a vida como ela é e aceitá-la. A sabedoria não é outra vida: é a própria vida neste momento e neste mundo, vivida em ações e na verdade.