01/10/2007 - 0:00
“Foram os cavalos que moldaram a nossa pátria. O imperador Gêngis Khan conquistou meio mundo apenas porque desenvolveu uma cavalaria vigorosa”, disse orgulhosamente Badrakh Choidogiin, acariciando a cabeça de um alazão negro. Por isso, respeitamos muito o cavalo na nossa cultura.” Desde que cheguei ao país, eu havia observado a importância do cavalo entre os mongóis. A figura central da bandeira de preces budistas é a do Cavalo de Vento. O instrumento musical nacional – o violino Morin Khuur – usa fios do rabo do animal para o arco e suas duas cordas, além de trazer uma talha da cabeça de um cavalo no cabo. Os nove estandartes nacionais, venerados na festa do Naadam e guardados no Palácio do Governo, são confeccionados com rabos de cavalos brancos.
Símbolos nacionais
Guarda de honra mongol sai do Palácio do Governo com nove estandartes tradicionais, símbolos nacionais desde Gêngis Khan. Eles são confeccionados com nove rabos de cavalo. À direita, acima, um músico toca o violino Morin Khuur, cujas cordas são feitas com fios do rabo do cavalo. No centro, o “Cavalo de Vento” é a figura central das bandeiras de prece do budismo tibetano; o acampamento que abrigou Choidog durante o Naadam de Bayan Onjuul. Abaixo, Choidog no interior de sua barraca mostra as medalhas que ganhou como treinador de cavalos.
O cavalo faz parte da alma da Mongólia. No deserto, nas estepes ou nas montanhas, as crianças aprendem a montar aos 4 anos. Dos três milhões de habitantes que vivem no país, quase um milhão de pessoas são nômades. Para elas, o cavalo é vital, pois permite vencer as grandes distâncias das estepes. É o principal meio de transporte para essa gente altiva que ainda troca de morada a cada dois ou três meses.
Badrakh continuou a caminhar entre os cavalos, alisando o pescoço de um e penteando a crina de outro. Um senhor vestido com uma bata elegante se aproximou. Era Choidog, pai de Badrakh e de outros dez filhos. Vive a 25 quilômetros de Bayan Onjuul – o vilarejo onde estávamos -, em sua tenda tradicional, cercado de 300 cavalos, 50 cabeças de gado e 250 carneiros e cabritos. A paixão de Choidog é treinar cavalos e ele já ganhou dois primeiros lugares em Naadams nacionais. Com 76 anos, é um dos patriarcas da região.
Choidog TROUXE para a competição provincial de Bayan Onjuul cerca de 40 animais e montou um acampamento com parentes e amigos. Bayan Onjuul está a 140 quilômetros da capital Ulan Bator. A população da província de Tuv, área de grandes planícies e pastagens, tem um fascínio por treinar cavalos. Por isso, o Naadam daqui está enfocado nas corridas – não existem provas de arco e flecha.
Durante a celebração na capital, o meu acesso aos cavalos e jóqueis foi extremamente limitado. Mas, em Bayan Onjuul, eu estava junto aos organizadores, vivendo o processo de cada prova. Durante os dois dias, pude seguir todas as seis competições.
O ritual de cada corrida demora mais de duas horas. Tudo começa no acampamento. O jóquei – meninos e meninas de 5 a 10 anos – monta no cavalo e dá voltas ao redor das barracas. “O cavalo precisa esquentar aos poucos”, explicou Badrakh. “Depois de caminhar, ele passa a trotar e galopar.” Sem aviso prévio, os jóqueis e seus treinadores saem em disparada em direção ao lugar da largada.
As provas são por idade dos cavalos. Por isso, antes de cada corrida, os juízes checam a dentadura dos animais. Badrakh me convidou a subir em uma das camionetas para acompanhar três provas – o que nunca poderia ter acontecido na capital. A distância variava de 12 a 22 quilômetros.
No trajeto de ida, os cavalos foram trotando. Os carros escoltavam o cortejo eqüino para não deixar ninguém perder o ritmo. Badrakh me avisou que o momento do retorno, quando realmente começa a corrida, é muito delicado. Os cavalos ficam nervosos, impacientes e relincham antes da largada. E quando um sai, todos vão atrás.
Foi o que aconteceu na quinta corrida de Bayan Onjuul. Alguns dos pequenos jóqueis não conseguiram travar seus animais e um grupo de cavalos indóceis não resistiu à vontade de sair em disparada. Badrakh correu para a camioneta, me chamou e partimos para alcançar os cavalos.
Só então entendi que um dos favoritos era um cavalo de seu pai. Mesmo sendo um dos organizadores do evento, Badrakh gritava pela janela do carro e passava instruções a Batbold, o jóquei de 9 anos. “Ele precisa dar voltas com o chicote perto da cabeça do cavalo, mas sem bater nele, para inspirá- lo a galopar mais rápido”, explicou.
O verão mongol sempre traz surpresas climáticas. Uma nuvem singela se transformou em uma espessa massa cinzenta escura, prestes a despejar uma tromba d’água na planície seca.
Por um lado, isso assentaria a poeira. Mas a chuva poderia dificultar a visão dos pequenos. Quando eu pensava na eventual segurança dos pimpolhos, vi um cavalo deslizar e cair de lado. A menina que o conduzia – talvez por ser tão leve – conseguiu escapar ilesa e, em segundos, já estava de pé. Um veículo parou imediatamente para socorrê-la.
Para Batbold, tudo estava indo bem. Portando o jaleco número 143, ele estava em segundo lugar. Galopava com vontade, seguindo uma pista rudimentar. Porém, minutos mais tarde, três outros jóqueis encostaram nele. Um a um, ultrapassaram Batbold. Badrakh, com um olho na estepe e outro no cavalo do pai, aumentou seus gritos. “Agora usa o chicote, usa o chicote.”
O pequeno BATBOLD não poderia decepcionar seus parentes. Na reta final, ele atacou seu adversário e conseguiu um honroso quarto lugar. Como apenas os cinco primeiros são celebrados, ele pôde participar da entrega do prêmio. Mas Badrakh estava ainda um pouco decepcionado. “Se tivesse chicoteado mais no final, teria conseguido a terceira colocação.” Choidog, com sete décadas de experiência em corridas de cavalos – foi jóquei aos 6 anos -, sabia o quanto era difícil ganhar uma corrida e estava feliz por seu cavalo receber uma medalha.
MENINOS que não chegam entre os cinco primeiros são relegados a segundo PLANO
O alvoroço na chegada era intenso. À medida que um cavalo cruzava a linha final, seu treinador e um ajudante corriam para recebê-lo. A primeira providência era passar uma espátula de bambu rente ao corpo molhado do animal, retirando o suor. “É preciso secar o cavalo para que ele não adoeça”, ensinou Choidog.
Os alazões eram o foco de todo o mimo. De fato, depois de trotar 20 quicavalos está entranhada na índole mongol, um sentimento tão forte que até as crianças eram esquecidas.
… Lenço sagrado
manÀ esquerda, mulheres mongóis, com suas vestimentas tradicionais, assistem à chegada dos cavalos. Ao lado, Chivaandulam, com o jaleco 108, leva nas mãos o bastão de ganhadora da quinta prova, no qual está amarrado um lenço sagrado azul. A menina de seis anos também venceu a primeira competição do Naadam de Bayan Onjuul. Abaixo, Zevge dentro de sua barraca, com os principais ingredientes de uma festa mongol: duas garrafas de vodca, vasilhas com airaq e uma bandeja de pães e bombons.
A pequena multidão que estava reunida para ver a chegada foi se dispersando e a maioria regressou a seus acampamentos. Para esse Naadam em Bayan Onjuul, muitas tendas haviam crianças a seu lado. Um microfone surgiu e ele entoou uma melodia tradicional. Os treinadores vitoriosos estavam sentados dentro da arena. Ao terminar o canto, os cinco se levantaram e foram em direção a seus cavalos, levando nas mãos um lenço budista, um cálice e uma vasilha cheia de leite.
O lenço azul foi amarrado no pescoço do animal e o cálice com vodca foi entregue ao ginete para que molhasse seus lábios. O resto da bebida foi oferecido como agradecimento e jogado ao ar. O líquido branco era airaq, leite fermentado de égua. Não existe ritual na Mongólia sem airaq. Cada treinador entregou a vasilha na mão de seu jóquei, que sorveu um bom gole. Em seguida, o treinador regou a crina, a traseira e a testa do cavalo com o leite de égua. Os organizadores da corrida colocaram uma medalha no cavalo e entregaram outra aos meninos.
Dentre as cinco crianças havia uma menina. Ela segurava o bastão com o número 1. Tinha apenas seis anos e seu nome era Chivaandulam. Reconheci suas trancinhas e o bonezinho laranja.
No dia anterior, ela também esteve no picadeiro dos vencedores, montando outro cavalo. Perguntei a seu treinador e ele confirmou que esta era a segunda vez, nesse mesmo Naadam, que Chivaandulam ganhava o primeiro prêmio.
Eu estava mais eufórico que a vencedora: uma menina de seis anos venceu toda a garotada, duas vezes! Mas ela, por cansaço ou por timidez, se mantinha impassível. Notei o número de seu jaleco: 108. Teria sido uma mera coincidência o fato de que 108 é o número mais abençoado no budismo?
Seu treinador sorriu quando indiquei, de forma inquisitiva, o número. Ele apenas acariciou a face do cavalo, como se agradecesse o esforço dele.
A Mongólia é um dos 222 países e territórios do Teste de Viajologia Mundial
Haroldo Castro, jornalista, conservacionista e fundador do Centro de Viajologia, visitou o interior da Mongólia com o apoio da operadora sueca Nomadic Journeys (www.nomadicjourneys.com) e em parceria com a Sociedade Internacional de Ecoturismo (www.ecotourism.org).