07/06/2022 - 14:43
Empunhando um lança-chamas, Margaret Atwood mira um livro, de sua própria autoria. A chama jorra do cano, o volume permanece intato. Com esse vídeo, a editora Random House faz publicidade para a edição limitada, à prova de fogo, de uma de suas publicações mais famosas.
O Conto da Aia (título original: A Handmaid’s Tale) é uma distopia na tradição do Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Ao lançá-la em 1985, a escritora canadense criou um mundo em que fanáticos religiosos assumem o controle dos Estados Unidos através de um golpe, fundando um Estado crente, Gilead, em que o sexo feminino não tem mais qualquer direito.
Uma catástrofe ambiental impede a maior parte das mulheres de ter filhos. As poucas que ainda são férteis são capturadas, perdem seus nomes, são escravizadas e mantidas como criadas nas casas ricas. Lá, os patrões as violentam repetidamente, até que engravidem. Quando isso ocorre, têm de gestar a criança, para depois entregá-la à senhora da casa. Abortos são punidos com a morte, assim como relações amorosas secretas, mesmo as homossexuais.
Depois de ser filmada em 1990 por Volker Schlöndorff, com roteiro de Harold Pinter (no Brasil sob o título A Decadência de uma Espécie), em 2017 a história virou uma premiada série de TV (no Brasil: O Conto da Aia), tendo Elisabeth Moss no papel principal.
Letras banidas, uma história secular
Com seu final aberto, o núcleo da narrativa fascinou e abalou numerosas/os leitoras/es, mesmo quem preferiria que um romance assim nunca tivesse sido escrito. Pois ele coloca os fanáticos religiosos diante do espelho, mostrando quão retrógrada, alienada e perigosa é a visão de mundo que propagam para um grande público.
Segundo a American Library Association, A Handmaid’s Tale é uma das publicações proibidas com mais frequência nas escolas dos EUA, sob a alegação, por exemplo, de conteúdo “vulgar” e “excessivamente sexualizado”, assim como de “ofensa ao cristianismo”.
A autora canadense tem rechaçado repetidamente tais acusações, especialmente esta última. Em carta aberta a uma jurisdição escolar que pretendia proibir seu livro, ela argumentou, em 2006: “Em nenhum momento o regime é identificado como cristão. Quanto à explicitude sexual, A Handmaid’s Tale é bem menos interessada em sexo do que grande parte da Bíblia.”
O banimento e destruição de livros incômodos está intimamente ligado à história humana: o que está escrito é mais duradouro do que o que se conta, assim, há séculos, há quem veja nos textos não apenas uma fonte de saber, mas também de ameaça – até hoje.
Já no século 3º o imperador romano Diocleciano ordenou que se queimassem todos os escritos dos cristãos. Mas também estes também estiveram ativos nas atividades incineradoras: no Novo Testamento, em sua viagem missionária a Éfeso o apóstolo Paulo converte os magos locais, que voluntariamente lançam seus livros à fogueira.
Queimas de livros pelo mundo afora
Para os déspotas, a queima de livros é uma forma extremamente eficaz de mostrar ao público como lidar com os dissidentes. Um dos exemplos mais dramáticos foi o procedimento dos nacional-socialistas da Alemanha após a tomada de poder por Adolf Hitler.
Em maio e junho de 1933, numa “Ação Contra o Espírito Antigermânico”, iniciada pelo grêmio estudantil nazista, destruíram-se dezenas de milhares de obras, tendo como fim exterminar a vida intelectual judaico-alemã.
A prática se perpetuou para além da Segunda Guerra Mundial: nos anos 50 e 60 o alvo foram livros de bolso populares e “literatura baixo nível”, indo até a revista juvenil Bravo, que proporcionava cauteloso esclarecimento sexual aos adolescentes da pudica Alemanha do pós-guerra.
Na China, após a tomada de poder pelo Partido Comunista, livros anticomunistas e críticos ao regime acabaram na pira. No Chile do ditador Augusto Pinochet, o mesmo ocorreu com as obras de Gabriel García Marquez; nos países islâmicos, Os Versos Satânicos de Salman Rushdie foi eliminado como “sacrilégio”.
Nos EUA, em 1966, queimaram-se publicamente discos dos Beatles; e em 2000, fanáticos cristãos de diversos estados fizeram fogo com os volumes da saga Harry Potter, de J.K. Rowling, tachando-os de “bruxaria, obra satânica e instruções para magia”. Agora mesmo, no contexto da guerra na Ucrânia, livros são queimados pela Rússia, como parte de uma campanha de aniquilação da identidade ucraniana.
Sinal contra proibição e censura
Desde seu lançamento, em 1985, o romance já foi vendido milhões de vezes, e a série televisiva multiplicou seu alcance: por todo o mundo, ativistas dos direitos femininos trajam as características túnicas vermelhas e chapéus brancos exageradamente grandes para manifestar-se pelo direito ao aborto e à autodeterminação. Os protestos mais recentes se dirigiram ao Supremo Tribunal americano, que está prestes a anular a lei que garante o aborto ilegal.
Em entrevista à rádio americana NPR, Margaret Atwood disse não saber se sua A Handmaid’s Tale já foi queimada em público. Ainda assim, com o exemplar incombustível, ela e sua editora querem emitir um sinal na luta contra proibições e censura.
A edição emprega materiais como folha de alumínio, aço e costuras com filho de níquel. Ela será leiloada pela casa Sotheby’s: o lucro, calculado em mais de 100 milhões de dólares, irá para a associação de escritoras/es PEN America, em reconhecimento a seu empenho em prol da liberdade de expressão.
Na gala anual do PEN, em Nova York, a apresentadora da noite, escritora e atriz Faith Salie, comentou: “O livro à prova de fogo foi feito para resistir, não só aos censores cuspidores de fogo e fanáticos flamejantes, mas também às chamas reais com que eles querem incinerar a nossa democracia..”
Em 2019, Margaret Atwood publicou com The Testaments uma espécie de sequência de seu best-seller. Para os fãs da série de TV, após o fim em aberto da quarta temporada, a boa notícia é que a quinta está em produção, devendo ser lançada ainda em 2022.