Parar de tomar refrigerante economiza muito mais água do que deixar de tomar banho. Você já tinha pensado nisso? A provocação feita pelo geógrafo Arpad Spalding pode parecer controversa, num primeiro instante. Ainda mais por vir de um “hippie”, como gostam de rotular o estilo de vida de Spalding, que mora em uma ecovila. Mas ela é muito sensata (sem ter a intenção de estimular, com isso, a substituição de um costume pelo outro), principalmente no Brasil, um dos cinco maiores consumidores de refrigerantes do mundo.

Dez minutos de uma boa ducha consomem 162 litros de água, enquanto a produção de meio litro de refrigerante demanda 170 a 310 litros de água, segundo a metodologia da “pegada hídrica”, disseminada mundialmente com a criação, em 2008, da Water Foot­print Network (WFN), baseada na Holanda. Essa matemática não se baseia apenas no líquido da bebida. A questão principal da comparação é a quantidade de “água invisível” ou “água virtual”. Ou seja, aquela água que não se vê, mas indiretamente está em cada item fabricado, porque é necessária no processo de confecção.

Os cálculos de pegada hídrica (PH) envolvem a soma de três etapas: desde o cultivo (“água verde”, que vem da chuva), passando pela modelagem de matérias-primas e ingredientes (“água azul”, geralmente retirada de rios e reservatórios pela indústria e agricultura), até chegar ao volume de água necessário para diluir poluentes do processo produtivo do modelo fabril e agropecuário (“água cinza”). E, no caso dos refrigerantes, pode englobar a água usada também na fabricação da sua embalagem.

Água não nasce em cano

“Não devemos usar esses números para chocar as pessoas, mas sim para ajudá-las a repensar seu consumo”, afirma Alessandro Azzoni, economista e advogado especializado em direito ambiental. “A grande vantagem de viver a crise hídrica que algumas regiões do Brasil enfrentam hoje deveria ser a oportunidade de mudança cultural.” Afinal, considera ele, não se deve deixar de consumir laranja porque a fruta precisa de água para se formar. Mas pode-se escolher um produtor que utilize sistema de gotejamento ou por vaporização na irrigação, já que essas técnicas reduzem a 30% e a 20%, respectivamente, o gasto de água em relação ao método intensivo (a jato).


Mais da metade da água virtual do refrigerante vem da produção de açúcar

O exemplo de algo tão comum, apreciado e, ao mesmo tempo, desnecessário, do dia a dia, como o refrigerante, pode se tornar um soco pedagógico de como o consumismo compromete mais recursos hídricos do que se vê a olho nu. “Na média, 94% da água que se consome no mundo é indireta. Acho muito injusto chegar ao ponto de pedir às pessoas para diminuir seu tempo de banho. Não é aí que se combate a escassez de água, embora no contexto atual de São Paulo cada gota faça diferença”, afirma a portuguesa Alexandra Freitas, gerente de projeto da WFN.

Quando abrem a torneira, tomam banho ou lavam a roupa, as pessoas definem o valor da conta no fim do mês, mas ao comprarem itens de necessidade básica, ou não, estão tomando decisões ainda mais importantes sobre seu consumo de água. O sistema produtivo ainda se alimenta da obsolescência programada – quanto menos durar o produto, melhor para aumentar o volume de vendas –, como se os recursos naturais, principalmente a água, fossem infinitos.

O papel do consumidor

“Quando consumimos qualquer coisa, estamos legitimando toda a cadeia de produção daquela fabricante, mesmo que não seja conscientemente”, enfatiza Renata de Souza Leão, pesquisadora do Centro de Estudos e Acompanhamento em Governança Socioambiental do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (GovAmb/IEE/USP).

Em estudos feitos para sua tese de doutorado, Renata diagnosticou que a água é o tema da vez. “As empresas já entenderam a questão do carbono e agora transferiram o interesse para a água. Hoje o recurso já não é mais visto como um simples insumo”, afirma. Mas a pesquisadora alerta que não há altruísmo nisso. As empresas querem evitar riscos a que se consideram cada vez mais expostas: físicos (de restrição ou desabastecimento de água), regulatórios (alteração/restrição de outorga), financeiros (multas) e de reputação (ter a marca associada à contaminação ou grande consumo de água).

Por meio da pegada hídrica e de outros estudos, como o de serviços sistêmicos (em que a natureza é entendida como fornecedora de serviços essenciais ao funcionamento das empresas), o mundo corporativo está descobrindo os custos de produção associados à água – assim como o valor de adotar estratégias e tecnologia para produzir mais com menos recursos hídricos. “Como a água é um bem público, as empresas estão lucrando a partir dela sem prestar contas à sociedade. Mas já vemos iniciativas, que vão além da legislação entre bancos de investimento, que começam a exigir mais engajamento em relação aos recursos hídricos”, diz Renata.

No Brasil, as empresas ainda estão tomando contato com esse tema. Nem mesmo os governos, de todas as esferas do país, incorporaram a importância de uma boa gestão da água. Um dos exemplos mais emblemáticos disso é que quatro dutos transportam minérios extraídos em Minas Gerais até portos brasileiros utilizando água suficiente para suprir uma cidade de 1,6 milhão de habitantes, por ano, segundo apuração do jornal O Tempo, de Belo Horizonte.

Três são da empresa Samarco e o outro, o maior de todos, da Anglo-American. Alguns desses minerodutos descartam o recurso hídrico contaminado no mar sem fazer seu tratamento ou reaproveitamento, causando até mortandade de peixes.

Mesmo em ano de escassez, como este, ainda podem ser aprovados dois novos projeto, da Sul Americana de Metais (SAM) e da Ferrous. O duto da SAM passará por 21 cidades para chegar à Bahia e demandará 50 milhões de m³ de água para conduzir 25 milhões de toneladas de minério por ano, o suficiente para suprir uma cidade de 400 mil habitantes. Ao lado do desmatamento da Amazônia e da poluição em grandes cidades, o uso na mineração compõe o trio das principais causas da escassez de água no Brasil. Essa situação ocorre apesar de o país reunir a maior parcela de água doce do mundo (5%), já informava o relatório de 2012 do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). E a essas questões ainda se somou um aumento de 70% no consumo de água pela produção agrícola, de 2000 a 2012.

“O que é saqueado da natureza não custa nada. Se forem internalizados os custos ambientais, ficará evidente que não vale a pena exportar a soja para engordar os porcos na Ásia. Com nossos grãos, nosso minério e nosso petróleo mandamos também nossa água para o exterior, cada vez mais”, ressalta Arpad Spalding. De fato, segundo dados da WFN, 21% da pegada hídrica (PH) da América Latina é exportada. E a maior parte disso vem do Brasil, o país com a maior PH da América Latina e Caribe: 2,029 milhões de litros por ano per capita.

Custos absorvidos

Para o geógrafo, que gosta de contas, a agricultura orgânica é muito mais barata do que parece, pois já internaliza todos os custos ambientais. O cultivo orgânico tem um manejo sustentável, que não lesa o meio ambiente, e a agricultura tradicional afeta não só o ambiente local (solo), como a água, deixando mais caro seu tratamento, aumentando o assorea­mento dos rios e contaminando os aquíferos.

“Se você incluir no preço que chega ao consumidor todos esses custos, um pé de alface convencional vai custar R$ 5, enquanto o orgânico, R$ 3. Mas ninguém faz essa conta. O dia em que os custos ambientais entrarem na conta, vamos repensar nossos padrões de consumo”, garante.

Por essas e outras, Spalding defende que a água, como um bem comum, não deveria ser tratada como mercadoria. Mas como é vendida por empresas, como a Sabesp (empresa estadual que faz o abastecimento de água e a coleta de esgotos em 364 dos 645 municípios de São Paulo), toda a cadeia produtiva deveria ser mercantilizada até a nascente.

“Afinal, a Sabesp distribui dividendos na Bolsa de Nova York. O dinheiro que ela distribuiu no ano passado é a mesma quantia que pegou de empréstimo neste ano para investir.” Em vez de remunerar os acionistas, a empresa deveria remunerar quem não desmatou e alimentou essa cadeia natural, como agricultores que não usam veneno na plantação. Como não se pode fazer muita coisa em áreas protegidas, ele acredita ser fundamental haver o pagamento por serviços ambientais. Pela sua experiência, quando não é assim, o terreno acaba sendo desmatado e loteado.


A soja cultivada à base de sequeiro, fertilizantes e agrotóxicos beneficia poucos à custa de todos

Renato Tagnin, arquiteto urbanista e professor do Centro Universitário Senac, engrossa o coro contra a prática de beneficiar poucos à custa de todos, seja por meio de minerodutos com água limpa, cultivos de soja à base de sequeiro, fertilizantes e agrotóxicos, para exportar para a China ou qualquer coisa do tipo.

“A água se renova por meio da biodiversidade se não interferimos, mas, se estamos destruindo a base biogeofísica do planeta para obter lucro para poucos no curto prazo, a água não vai conseguir se renovar. Fazemos parte do ciclo hidrológico”, alerta. Tagnin sugere que se pense a água como a corrente sanguínea da Terra: se ela estiver contaminada, não há o que não vá ser afetado. Mas ele ressalta que, embora a água tenha importância fundamental, o recurso mais precioso agora é o tempo. É preciso agir rapidamente.