31/01/2024 - 13:44
Pelo menos 400 crianças e adolescentes foram levados ilegalmente da Ucrânia invadida e adotados por famílias russas. Ativistas denunciam lavagem cerebral.A aldeia ucraniana de Kozatske, na região de Kherson, foi ocupada no fim de fevereiro de 2022, logo após o início da invasão russa. Na época com 14 anos, Kostya vivia lá com as irmãs mais velhas e o pai necessitado de cuidados especiais.
Justamente numa hora em que ele saíra para buscar ajuda, seus familiares foram levados para Nova Kakhovka, também ocupada pelos russos, mas então livre de combates. “Quando voltei, minha família não estava mais. Não tinha mais lugar no ônibus, parece.” Ele viveu alguns meses sozinho: “Não sei por que eles não podiam mandar me pegar, fiquei um pouco desapontado.”
Por fim, funcionários da administração de ocupação ofereceram a Kostya a possibilidade de ir para um acampamento em Anapa, no litoral russo do Mar Negro, a partir de onde menores eram distribuídos para outros locais.
Segundo as autoridades da Ucrânia, cerca de 19.500 crianças e adolescentes foram deportados ilegalmente para territórios do país sob ocupação russa. A encarregada ucraniana de direitos humanos, Daria Herasimchuk, explica que esse número também inclui jovens cujas famílias foram forçadas pelas ofensivas militares a se deslocar para a Rússia.
Em março de 2023 o Tribunal Penal Internacional (TPI), sediado em Haia, expediu um mandado de prisão contra o presidente russo, Vladimir Putin, e sua encarregada de assuntos infantis, Maria Lvova-Belova, por presumíveis crimes de guerra na Ucrânia. Ambos são acusados de abduzir menores para a Rússia.
Sob tutela russa
Em Anapa, comunicou-se a Kostya que seria colocado num lar para menores, caso sua família não viesse buscá-lo. Ele conseguiu falar com uma das irmãs: “Eu disse a ela: façam alguma coisa, me tirem daqui.” Entretanto a jovem, ainda menor de idade, nada pôde fazer por ele.
Pouco depois, o departamento de tutelas e adoções informou que encontrara pais adotivos para ele numa localidade próxima a Anapa. Apesar de não estar procurando uma nova família, Kostya acabou por concordar. “Nunca vi um pai e uma mãe tão alegres”, recorda.
O casal que o acolheu é ucraniano de Donetsk. Depois que os russos ocuparam a região de Donbass, em 2014, ambos se mudaram para a Rússia e possivelmente se naturalizaram. Kostya era seu terceiro filho adotivo. “Eles dizem de si que são ucranianos. Em casa tinham a bandeira e o brasão da Ucrânia, mas também têm o brasão russo, porque, afinal de contas, estão na Rússia.”
Segundo o encarregado de direitos humanos do Parlamento ucraniano, Dmytro Lubinets, cerca de 400 menores já foram adotados por famílias russas. O caso mais notório é o de uma menina retirada de um orfanato de Kherson: jornalistas descobriram que ela fora adotada pelo deputado da Duma (parlamento da Rússia) Sergey Mironov e esposa.
A ONG Centro Regional de Direitos Humanos, de Kiev, já localizou 378 menores deportados. Ao contrário de um tutelado, uma criança adotada é considerada filha legítima, esclarece a especialista da organização Kateryna Rashevska, acrescentando: “Dentro de um prazo de seis meses, os pais podem mudar o nome e sobrenome, o local e data de nascimento. Aí não há mais como encontrar a criança.”
Ucranianos submetidos a lavagem cerebral
Até agora os ativistas da ONG descobriram os nomes de 69 casais adotivos. Quase todos estão criando várias crianças e são, na maioria, professores ou militares – inclusive ex-combatentes das duas guerras na Tchetchênia –, mas também profissionais da cultura e representantes da Igreja, ativistas e funcionários de fundações beneficentes, relata Rashevska.
Um dos pais tutores russos é Vladimir (nome fictício), da região de Moscou. Um dos menores sob seus cuidados é o ucraniano Maksym. Dois dias antes do início da guerra, em 24 de fevereiro de 2022, ele foi levado, junto com outros órfãos, da assim chamada “República Popular de Donetsk” para Kursk, na Rússia. Lá recebeu a cidadania russa, a fim de, segundo Vladimir, ter direito a cuidados médicos gratuitos.
Antes de ser acolhido por Vladimir e família, Maksym vivia num internato na Donetsk ocupada, sem nunca ter conhecido seus pais naturais. De início ele se manifestava negativamente contra a Ucrânia e os ucranianos, afirmando que retornará a Donetsk quando crescer, conta seu tutor.
Vladimir insistiu em esclarecer-lhe que foi a Rússia a atacar a Ucrânia, e não vice-versa: “Nós sempre enfatizamos a dignidade da nação ucraniana e seu direito à autonomia. Nossos filhos todos conhecem nossa posição, e ele também.” Sua família é contra a agressão russa, assegura.
Tal atitude parece ser antes a exceção entre os tutores russos. Lubinets vê o perigo de as crianças deportadas estarem sendo submetidas a uma reeducação: “Dizem para elas: 'Você é russo e fala russo. Esqueça tudo o que foi antes e comece vida nova. Você vai à escola e recebe documentos russos. É criado como verdadeiro russo e devia estar grato de a gente ter salvado você.'” Para o ombudsman, os direitos dos menores ucranianos estão sendo violados, inclusive à livre circulação e o emprego da língua materna.
O tutor Vladimir afirma que não tem medo de ser responsabilizado: “Se um tribunal internacional me declarasse culpado, eu acataria. Mas a minha consciência está limpa, porque não persigo motivos bélicos, agressivos. Queremos simplesmente ajudar o menino na sua situação.”
Contudo, a especialista do Centro Regional de Direitos Humanos afirma que a acomodação de menores em famílias russas é crime. As Nações Unidas proíbem a adoção por uma das partes de conflito, e a educação deve ser confiada a um representante do mesmo grupo cultural e étnico que o da criança, frisa Rashevska. “A adoção, em si, provavelmente é qualificável como genocídio.”
Por outro lado, ela não insiste que os tutores arquem com a culpa: responsáveis seriam as autoridades e governadores das regiões russas, os quais criaram um sistema de recompensas para as famílias que acolham crianças ucranianas. A responsabilidade caberia ainda, segundo Rashevska, aos encarregados de assuntos infantis das regiões ocupadas, assim como ao presidente Putin e sua funcionária Lvova-Belova.
Reencontro difícil com a família
Kostya, de Kherson, estava há menos de um mês com a família das cercanias de Anapa, quando a irmã, agora maior de idade, o contatou, perguntando se queria retornar a seu país. De início ele recusou, alegando que já se adaptara ao novo lar. No entanto, mudou várias vezes de opinião: “Hesitei porque estávamos intimidados. Achava que não ia ter nada para comer na Ucrânia, e na Rússia me prometiam tudo.”
Por fim teve uma conversa com seus pais adotivos: “Eles disseram que a decisão cabia a mim, mas me aconselharam a ficar. Até sugeriram que a minha família toda viesse para a Rússia.” Por fim Kostya decidiu voltar para a Ucrânia, pois queria ver sua família, que nesse meio tempo se mudara para Chernihiv.
“Quando vi na fronteira a bandeira e o brasão ucraniano, tive logo a sensação de ter voltado para o meu país.” Em Kiev, primeiramente ele foi alojado num centro de acolhimento da ONG Save Ukraine, que se encarrega de menores deportados que retornam. Em seguida passou vários meses com os familiares.
No entanto, nem suas irmãs nem o pai doente podiam se ocupar dele, o que ele compreende. Assim, voltou para o abrigo da Save Ukraine. Recentemente encontrou-se uma família para ele na cidade de Poltava, onde já se aclimatou. Apesar de todos os altos e baixos e do fato de não poder viver com a própria família, Kostya não se arrepende de ter retornado à Ucrânia.
“Muitos maiores de idade vão querer voltar para a Ucrânia”
Segundo dados ucranianos, até o momento quase 390 menores foram trazidos de volta ao país sob invasão, num processo que envolve diversas partes e é mantido em sigilo. Nem todas as crianças se encontravam com famílias russas: sabe-se oficialmente que houve pelo menos três casos – os quais, segundo funcionários e ativistas, foram extremamente complicados. Porém o mais difícil de tudo é trazer de volta órfãos de pai e mãe sem parentes que possam ir apanhá-los.
O pai tutelar Vladimir condena que se tenha levado para a Rússia crianças ucranianas que tinham família em país natal. Por outro lado, um retorno de Maksym ao território controlado por Kiev é “uma questão muito difícil”: ele se preocupa com a psique do jovem, que no internato da Donetsk ocupada “foi submetido a uma lavagem cerebral, segundo a qual a Ucrânia é o inimigo”.
Na opinião do diretor da ONG Save Ukraine, Mykola Kuleba, se deveria tomar todas as crianças de volta das famílias russas e dizer-lhes a verdade, que foram levadas embora através de ardis e enganos. Ao mesmo tempo, porém, admite tratar-se de uma questão controvertida.
Nesse contexto, o ombudsman Dmytro Lubinets enfatiza: “Para nós, enquanto Estado, não há dúvida de que se trata de crianças ucranianas.” A decisão sobre onde deverão viver cabe então às famílias ou, caso não mais existam, às autoridades nacionais. Por outro lado: “Se um indivíduo já tem 18 anos, para nós basta ouvir dele que está feliz em ser considerado cidadão da Rússia e lá quer permanecer. Mas eu sei que muitos maiores de idade vão dizer que querem retornar à Ucrânia.”