01/12/2008 - 0:00
Qual é a melhor época para visitar um país? O clima ajuda a pautar o viajante e pode evitar que a jornada seja um fiasco. Invernos rigorosos podem bloquear estradas e chuvas torrenciais molham até a alma. Uma vez resolvida a equação sazonal – que, em tempos de mudanças climáticas, não é sempre óbvia -, o próximo passo é identificar momentos em que a cultura do país esteja em seu ápice. Nada melhor do que participar de um festival para conhecer as tradições de uma nação. Esses festejos podem trazer alguns inconvenientes (vôos e hotéis cheios), mas também revelam a essência de um povo.
O desenho sagrado thongdrol pode ser visto apenas durante quatro horas por ano – das 4 às 8 horas no último dia do Tsechu. A figura central é a do guru Rimpoche.
No caso do Butão, marquei minha viagem para estar presente no Tsechu de Paro. As festas religiosas do Tsechu duram cinco dias. Como a palavra Tsechu significa “dia 10”, as festas têm inicio no décimo dia do mês lunar e culminam na lua cheia, o 15º dia. Os Tsechus acontecem nos dzongs (fortalezas onde coabitam o poder administrativo e o espiritual) das principais cidades e vilarejos. Todo mês, pelo menos um Tsechu é realizado no Butão. No caso do Tsechu de Paro (segunda cidade do país), o festival acontece numa esplanada ao lado do dzong. A fortaleza não possui espaço interno suficiente e o evento atrai milhares de pessoas de várias partes do país.
Não estava em Paro nos primeiros dois dias da festa e só assisti ao Tsechu a partir da terceira jornada. Segundo os butaneses, as danças nos quatro dias iniciais assemelham-se muito entre si. Apenas um estudioso budista poderia compreender as minúcias e diferenças entre elas.
Chegamos cedo e entramos no dzong, ponto de encontro dos dançarinos, monges e autoridades. A construção medieval e as máscaras ameaçadoras das divindades protetoras transportaram-me a outro mundo. Um som conclamou todos a formarem uma fila. O grupo saiu do dzong rumo à praça das danças. Na esplanada, diferentes bailes celebravam a vida do guru Rimpoche. Foi esse sábio que, a caminho do Tibete, trouxe o budismo da Índia para o Butão, no século 8. Reconhecido também como o Segundo Buda, o guru Rimpoche foi o fundador da escola budista Nyingma e é a figura mais venerada no panteão butanês.
A figura burlesca do palhaço faz um contraponto com a seriedade das danças religiosas. O atsara segue um importante sacerdote budista, sem que este perceba, e balança impetuosamente um símbolo fálico às suas costas.
Segundo os budistas, as danças com máscaras ajudam a aliviar o destino e o carma de um indivíduo. O simples fato de participar de um festival como o Tsechu faz com que os assistentes ganhem méritos enormes. Por isso, a população de Paro comparece à festa em peso. Todos vieram vestidos com suas roupas tradicionais: a khira para a mulher e o gho para o homem. A festa, além de seu aspecto religioso, também é a oportunidade para um encontro de família e entre amigos. Uma cesta de piquenique é um acessório indispensável, pois o evento só termina no final da tarde.
Um monge budista toca uma corneta durante a procissão que leva as autoridades à praça das danças.
O colorido era tão magnético que, na primeira hora, eu não sabia para onde olhar. Tudo ao redor chamava minha atenção: os dançarinos, os músicos, as construções, os monges, as mulheres elegantes e as crianças sorridentes.
As danças realizadas durante os Tsechus celebram a biografia do guru Rimpoche. Os dançarinos – monges ou laicos – encarnam personagens importantes da cosmogonia budista, como deuses sinistros, deusas com compaixão, heróis, demônios e animais míticos. Mais do que simples artistas, os dançarinos possuem o poder de distribuir bênçãos àqueles que assistem ao espetáculo, assim como protegê-los do mau agouro e até mesmo exorcizar influências maléficas.
As Divindades Aterrorizantes, vestidas com requintados trajes de seda, dançam para prender os maus espíritos e liberar os seres humanos do sofrimento.
A dança mais intensa foi a das Divindades Aterrorizantes, chamada de Tungam. Seu simbolismo é impetuoso: as divindades mascaradas prendem os maus espíritos e, com uma faca ritual, extinguem esses seres que trazem sofrimento aos humanos. O objetivo final é afastar as amarguras do cotidiano e disseminar a felicidade.
As divindades portando máscaras de cinco cores (vermelhas, azuis, verdes, amarelas e brancas) dançaram mais de uma hora. Ora rodopiavam, ora moviam suas cabeças para cima e para baixo. Em outros momentos, davam longos passos, como se estivessem perseguindo um demônio. Monges tocavam instrumentos musicais, os mesmos utilizados em rituais monásticos, como tambores, sinos e cornetas.
Os dançarinos possuem o poder de distribuir bênçãos àqueles que assistem ao espetáculo, assim como protegê-los do mau agouro e até mesmo exorcizar influências maléficas
Mesmo sendo o Tsechu uma das mais importantes manifestações religiosas do país, o conceito universal do palhaço está presente no festejo. Vestido de vermelho, com uma máscara lembrando o diabo, o atsara é um contraponto à seriedade das danças místicas. O brincalhão, com o seu enorme nariz vermelho, surge no inter valo entre as danças para descontrair o público. Ele também é responsável por manter as crianças bem comportadas e fora do palco.
atsara carrega um pedaço roliço de madeira de 50 centímetros, pintado de vermelho, que lembra um pênis. Ele tirou gargalhadas do público ao seguir um dos importantes sacerdotes budistas, sem que este percebesse, balançando impetuosamente o símbolo fálico às suas costas.
O último dia do Tsechu é o mais fascinante. Precisei acordar às 3h30 para assistir ao momento no qual uma enorme tangka – um desenho sagrado, também chamado de thongdrol – é mostrada ao público. Isso só acontece uma vez por ano e apenas durante um período de quatro horas – das 4 às 8 horas, antes que a luz do sol possa afetar o tecido. O thongdrol de Paro é um brocado que mede mais de 20 metros de altura e quase 30 metros de comprimento. Foi confeccionado no final do século 17 com aplicações de seda que vieram de Lhasa, capital do Tibete.
Aspirante a monge participa da cerimônia religiosa shugdrel, no alvorecer do último dia do Tsechu de Paro.
Sua origem está cercada de lendas e ouvi de Khenpo Phuntsok Tashi, diretor do museu nacional do Butão, duas das mais populares. A primeira conta que o governador de Paro teria enviado um funcionário a Lhasa com a instrução de adquirir tecidos que pudessem ser usados como aplicação na enorme tangka. O primeiro vendedor encontrado pelo butanês foi um chinês que acabara de chegar ao mercado com um enorme estoque de seda. O saco de arroz levado pelo butanês foi trocado pelos tecidos multicoloridos e a lenda diz que a quantidade de seda trazida foi exatamente a necessária. Não faltou nem sobrou nenhum pedacinho.
A segunda lenda conta que o próprio governador de Paro, disfarçado de mercador, teria ido a Lhasa para adquirir o material. No primeiro dia, ele encontrou o tesoureiro de Lhasa e os dois teriam discutido sobre a qualidade dos produtos do Butão e do Tibete. Os ânimos acirraram-se e o tesoureiro tibetano desafiou o governador butanês: aquele que tivesse o ouro mais puro ganharia a aposta. A competição foi marcada para o dia seguinte. Naquela noite, um místico teria aparecido diante do governador, presenteando-o com o mais puro dos ouros. Com essa ajuda mágica, o butanês teria vencido a aposta. Como recompensa, teria recebido a seda para confeccionar o brocado.
Jovem lama participa da cerimônia religiosa shugdrel, no alvorecer do último dia do Tsechu de Paro
Qualquer que tenha sido a origem do thongdrol, existem poucas dúvidas quanto à autoria do desenho do bordado, atribuído ao lama Ngawang Rabgye, um dos maiores mestres dessa arte. “Consideramos esse tecido um tesouro de nossa cultura. Não existe nenhuma outra peça semelhante no Butão”, afirma Phuntsok Tashi.
A figura central do thongdrol de Paro é o próprio guru Rimpoche, acompanhado de suas duas companheiras espirituais. À direita está Mandarava, que simboliza a sabedoria, e à esquerda, Yeshey Tshodgyel, a deusa do conhecimento. As oito manifestações do guru Rimpoche rodeiam as imagens principais.
O shugdrel é realizado pelo corpo monástico de Paro enquanto o tecido sagrado thongdrol está exposto.
O Butão é um dos 222 países e territórios do Teste de Viajologia Mundial
Haroldo Castro viaja como jornalista, fotógrafo e conservacionista. Ele é o fundador do Clube de Viajologia e já documentou 138 países.
Quem leva Yu-Druk Tours: www.yudruk.com
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O significado da palavra thongdrol – “liberação pela visão” – explica o objetivo mágico-espiritual da imensa tangka. Os butaneses acreditam que o mero fato de ver o tecido multicolorido traz benefícios a qualquer pessoa, seja ela budista ou não. “Quem assiste à cerimônia do thongdrol de Paro, mesmo que só uma vez na vida, salvará sua alma dos sofrimentos deste mundo”, diz o monge Pema Dorje. Ele ajuda a organizar a fila de fiéis que passa aos pés da imensa thangka. Todos querem tocar e beijar o tecido sagrado. Escolho um momento em que a fila está menor para receber as boas vibrações do pano mágico.
Quando o sol aparece, ordens são dadas para baixar o thongdrol. Autoridades locais colocam-se em fila para receber e enrolar o tecido. Tudo é feito com cuidado, pois o bordado tem mais de três séculos de idade. A face bordada do guru Rimpoche é protegida com um manto adicional de seda. Em poucos minutos, o thongdrol transformase em um longo rolo que é transportado nos ombros de monges e oficiais do governo até o dzong de Paro. O tecido é guardado para que possa voltar a ser exibido no ano seguinte, sempre no alvorecer do dia de lua cheia e apenas por quatro horas. É uma aparição rara, porém extremante auspiciosa.