13/03/2014 - 10:44
Uma substância é acrescida a outra em um tubo de ensaio. O material borbulha, muda de cor e solta fumaça. O processo é observado por um cientista de jaleco branco e óculos de vidro grosso, que sorri de satisfação com a descoberta de um novo elixir. Em outro sala, um sujeito mal-encarado trabalha em um local escuro, repleto de gaiolas, com animais de várias espécies submetidos a torturas e atrocidades dignas de uma insensibilidade perversa.
Os dois estereótipos opostos são tão infantis quanto fantasiosos. A pesquisa farmacêutica necessita de cobaias animais para testar substâncias que podem constituir medicamentos, mas a realidade é bem mais normativa, burocrática, repetitiva e demorada do que se pensa. Qualquer laboratório que faz testes de produtos em animais está sujeito a legislação, regulação, comitês, relatórios, projetos, aprovações e vistorias.
Apesar disso, entidades conservacionistas, vegetarianas, ambientalistas e também pesquisadores questionam essa prática. Muitos defendem que os testes com cobaias sejam banidos. Os cientistas contra-atacam, denunciam a de magogia e sugerem que quem defende essa visão, por coerência, não tome vacina nem use medicamento.
Em outubro, manifestantes invadiram (duas vezes) e depredaram o laboratório de pesquisa de fármacos Instituto Royal, em São Roque (SP), para libertar cachorros beagles usados como cobaias, acirrando a controvérsia. O instituto fechou as portas e declarou-se sem condição de prosseguir as pesquisas, reacendendo a pergunta: é possível fazer ciência sem cobaias? Os protestos induziram o governador Geraldo Alckmim, no dia 23 de janeiro, a sancionar o Projeto de Lei 777 que, embora não proíba testes em animais na indústria farmacêutica, veta o uso deles na produção de cosméticos, produtos de higiene pessoal e perfumes no Estado de São Paulo.
Necessidade
A descoberta de uma substância medicinal em uma planta capaz de ajudar no tratamento de uma enfermidade, é o início de um processo longo e custoso. Geralmente, os primeiros estudos e testes sobre a eficácia de um fármaco são feitos in vitro, ou seja, em tubos de ensaio, usando sangue ou tecidos dos animais. Na sequência, é preciso averiguar se a substância funciona em um organismo – e aí entram os testes em animais.
Na maioria dos casos utilizam-se camundongos ou ratos de linhagens criadas para pesquisas. É importante que tenham a mesma alimentação e vivam nas mesmas condições térmicas, para comparar os resultados obtidos entre dois grupos. Às vezes, testes precisam ser realizados também com cachorros, macacos e coelhos.
Alguns críticos afirmam que, por serem muito diferentes dos humanos, as cobaias animais não podem proporcionar resultados fidedignos. “Até mesmo nossos parentes mais próximos, os chimpanzés, são evolutivamente divergentes de nós por milhares de anos”, observa Kenneth Litwak, doutor em medicina veterinária e diretor do Comitê de Médicos para uma Medicina Responsável, em Washington, nos Estados Unidos.
Para Litwak, só o fato de os animais serem mantidos em cativeiro já os torna pouco parecidos com indivíduos da mesma espécie, e menos ainda com os humanos. “Um prisioneiro que vive numa cela é o mesmo que uma pessoa que vive no campo? Ambos são humanos, sim, mas o preso não tem o mesmo enriquecimento ambiental e social que a pessoa livre”, afirma.
Por que, então, não testar fármacos em pessoas? “O Código de Nuremberg, estabelecido em 1947 após o julgamento das experiências médicas nazistas, diz que nenhum produto pode ser testado em humanos sem antes ser provado com segurança em animais. Se não for assim, a ciência não caminha”, diz o professor João Batista Calixto, do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal de Santa Catarina e do Centro de Inovação e Ensaios Pré-Clínicos.
A aceitação do Código de Nuremberg inspirou, em 1964, a 18ª Assembleia Médica Mundial a redigir a Declaração de Helsinque, que rege a ética entre paciente e médico. Esta, por sua vez, induziu às atuais Diretrizes Internacionais de Pesquisa Biomédica Envolvendo Seres Humanos, adotada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 1982.
Vantagens
A adoção mundial de camundongos como cobaias tem uma explicação simples. A espécie chega à idade adulta com apenas dois meses e possui um código genético parecido com o humano. “É verdade que nem tudo que se observa em animal se vê em uma pessoa, mas o genoma do camundongo é 95% próximo ao nosso. Há uma semelhança grande quanto às proteínas das duas espécies. Além disso, costuma-se usar animais transgênicos, com induções genéticas humanizadas”, acrescenta Calixto.
Obviamente, há grandes diferenças entre organismos, como o sistema neurológico, que envolve sentimento, raciocínio, efeito placebo e um grau de consciência diferente entre homens e animais. “Mas no nosso sistema cardiovascular, por exemplo, também há bastante correlação com outros animais”, pondera Calixto.
Litwak, entretanto, acha que os resultados dos testes em animais não são confiáveis e atrapalham a pesquisa, em vez de ajudar. “A prática atrasa e desinforma as descobertas científicas. Os animais são usados como muletas, fazendo a ciência mancar junto”, opina. O cientista americano é defensor convicto de investimentos em métodos alternativos de pesquisa.
Calixto, que já participou do desenvolvimento de três medicamentos (o anti-inflamatório Acheflan, o creme antirrugas Flavonoide de Passiflora e o fitomedicamento Sintocalmy para tratamento de insônia e ansiedade), contra-argumenta citando os benefícios que as pesquisas médicas já trouxeram. “Todas as vacinas foram desenvolvidas com base em animais. Os medicamentos contra a diabetes, que permitem viver com a doença, foram testados em cães”, diz.
O avanço da ciência, a pesquisa biomédica, os fármacos e os antibióticos contribuíram para uma notável elevação na expectativa de vida mundial nos últimos 50 anos. Calixto cobra coerência dos críticos: “Quem é contrário deveria ir a um cartório e fazer uma declaração prometendo não usar remédio nem vacina” , provoca.
Estatuto legal
No Brasil, a prática é regulada pela Lei 11.794, de 8 de outubro de 2008, conhecida como Lei Arouca (criada pelo sanitarista carioca Sérgio Arouca, falecido em 2003). A legislação estabelece procedimentos para o uso científico de animais e legitima o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea), ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, como responsável pelas normas de utilização humanitária de animais, e as Comissões de Ética no Uso de Animais (Ceuas), que devem ser constituídas em todas as entidades que realizam esse tipo de pesquisa.
A lei prevê penas financeiras e sanções às instituições que não cumprirem o regulamento. “Os comitês de ética seguem recomendações aceitas internacionalmente. Cabe às Ceuas verificar se os quesitos éticos são observados, orientar e treinar os pesquisadores. Para isso, precisam estar atualizadas, pois a toda hora surge uma nova forma para você sangrar um animal ou submetê-lo à eutanásia, por exemplo”, diz Octavio Presgrave, membro da Fiocruz e coordenador do Centro Brasileiro de Validação de Métodos Alternativos (Bracvam), ligado ao Instituto Nacional de Controle de Qualidade em Saúde (INCQS-Fiocruz) e à Rede Nacional de Métodos Alternativos (Renama).
Todo ano, as comissões avaliam protocolos, emitem ou reprovam licenças e enviam relatórios completos para o Concea, sempre procurando seguir os “três Rs”: substituição, redução e refinamento (replacement, reduction e refinement, em inglês). “A legislação atende aos quesitos de ética e estimula a pesquisa por métodos alternativos”, acrescenta Presgrave.
A Lei Arouca também trata de outra questão. Boa parte dos críticos condena procedimentos realizados sem anestesia. De acordo com o Parágrafo 5º do artigo 14, “experimentos que possam causar dor ou angústia desenvolver-se-ão sob sedação, analgesia ou anestesia adequadas”. Muitos testes, entretanto, têm como objetivo observar se determinada substância provoca dor ou angústia nos animais. Nesses casos, de acordo com o parágrafo 6º, é necessária autorização específica da Ceua, em obediência às normas estabelecidas pelo Concea. De acordo com o Artigo 15, o órgão pode rá proibir experimentos nos quais o nível de sofrimento para o animal não esteja de acordo com os resultados práticos que o estudo pretende ter. Ou seja, há, sim, sofrimento.
Outra questão controversa é o teste de cosméticos. É correto usar animais para atender a caprichos estéticos? Denunciada no mundo todo por grupos conservacionistas como o PETA (People for the Ethical Treatment of Animals), a proibição de testes com animais na indústria de cosméticos está em pauta, mas a interdição não existe no Brasil.
Em seu site, o Concea afirma que “cosméticos podem ser considerados produtos não essenciais, porém deve-se avaliar cuidadosamente a proposta de banimento, uma vez que é fundamental considerar a questão da segurança da população” – atentando para a eventual toxicidade dos produtos consumidos.
Busca de alternativas
Em meio à controvérsia, há um consenso se firmando. Muitos pesquisadores que trabalham com cobaias consideram a prática um “mal necessário” e são favoráveis ao desenvolvimento, à validação e à viabilidade de métodos substitutivos de pesquisa. Mas, infelizmente, a verdade é que, hoje, mesmo com avanços, os métodos alternativos substituem testes com animais só numa pequena quantidade de casos. Além disso, geralmente, são muitos mais caros.
“Devido à quantidade e à variedade de pesquisas com animais, é quase impossível dizer quão próximos ou distantes estamos de eliminar a necessidade dessa prática”, afirma Kevin Coll, assistente de pesquisa científica do Fundo para a Substituição de Animais em Pesquisas Científicas, entidade britânica dedicada ao desenvolvimento de técnicas alternativas. Para Coll, o mundo está avançando nessa área, mas é preciso mais vontade política e participação da sociedade. “Quando as políticas de proteção aos animais foram implantadas, os resultados foram imediatos e efetivos. Um exemplo é a recente proibição do uso de animais em testes para cosméticos em países da Europa”, relembra.
O cientista lista alguns métodos já validados de pesquisa sem testes com animais, como cultura de célula, estudos baseados em tecidos humanos, imagiologia médica, modelagem computacional, cultura de células-tronco e engenharia genética. “Os avanços em engenharia biomédica podem potencialmente eliminar a necessidade de modelos animais nos experimentos”, conclui. Uma das técnicas promissoras é o conceito humanon-a-chip, sistema que simula o funcionamento de órgãos humanos utilizando chips 3D de cultura celular.
O problema é que, por enquanto, tanto no mundo quanto no Brasil os métodos alternativos são incipientes. A Bracvam brasileira foi fundada em 2012 e ainda não há técnicas validadas de testes alternativos. Atualmente, os laboratórios públicos e privados da Renama encaminham e recomendam a aceitação dos métodos, a Bracvam organiza os estudos e o Concea oficializa e regulamenta as práticas.
“Lançamos o primeiro edital de financiamento para pesquisa por métodos alternativos em 2012”, conta Octavio Presgrave. Um dos seus objetivos é implantar métodos já validados de pesquisa no exterior, como o desenvolvimento da pele humana reconstituída. Mas há problemas alfandegários e de importação a superar.
Reduzir a necessidade de cobaias nas pesquisas é um caminho consensual, apoiado por muitos cientistas, desde que se garanta a efetiva segurança dos medicamentos. Eventualmente, os métodos alternativos poderão trazer resultados até mais confiáveis. Mas, enquanto a ciência ainda depender dos animais, é com mais informação que deve haver diálogo entre a sociedade, o poder público e os laboratórios.