26/07/2024 - 14:23
Valorizando a música no seio familiar e nas atividades religiosas e associativas, imigrantes contribuíram para a musicalização de crianças e jovens, promovendo a multiplicação de corais e de música amadora pelo país.A cultura germânica cultiva um valor significativo: a importância da prática musical, não necessariamente para seguir uma carreira, mas para a formação como indivíduo. Além da apreciação do fazer musical em conjunto.
Diversos imigrantes contribuíram para a musicalização de crianças e jovens no contexto brasileiro, trazendo ou adaptando métodos de ensino e tornando a música parte da educação escolar. Tanto nas ondas de imigração impulsionadas pelo Estado a partir de 1824, como nas mais urbanas e recentes.
Os alemães chegaram ao Brasil com a Bíblia e o hinário. Pois Martinho Lutero, a figura central da Reforma Protestante no século 16, valorizava a música como meio de comunicação e participação ativa das pessoas nos cultos. Como explica o pesquisador Werner Ewald, especialista em etnomusicologia e professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel): “Os outros reformadores tiveram restrições bem sérias ao uso da música. Lutero resolveu fazer diferente: ele mesmo era músico, aparece tocando alaúde e flauta em gravuras.”
Ewald considera a Igreja Luterana sua primeira escola de música: “Desde muito pequeno eu participava cantando e ouvindo os instrumentos: formou meu ouvido, moldou o meu gosto, me deu repertório.” Um caminho que muitos músicos trilham: da Igreja Luterana avançam para outras instâncias, como cantores, instrumentistas e professores.
As atividades associativas se desenvolveram cedo nas comunidades de língua alemã, como uma forma de fortalecer o senso comunitário e o pertencimento: clubes desportivos, de tiro, recreativos e de canto. Uma das maiores heranças musicais da imigração de povos germânicos é, sem dúvidas, o canto coral.
Essa tradição tem lastros fortes até hoje, e regiões de imigração alemã possuem um número expressivo de corais e rede de encontros de canto. Teutônia, no Rio Grande do Sul, por exemplo, tem a maior densidade de corais por habitantes do Brasil. Em 2017, a cidade de cerca de 27 mil habitantes contava com mais de 50 grupos corais, e se estima que o município tenha um coralista para cada 27 habitantes.
Os imigrantes reinventaram suas tradições no Novo Mundo, a partir das novas necessidades, condições e grupos com os quais interagiam. “Eu gosto de pensar que não era tanto uma questão do que a tradição fazia deles, mas o que eles faziam com essa tradição”, aponta Ewald.
Música amadora e musicalização infanto-juvenil
A música amadora é uma tradição muito forte na Alemanha e na Europa em geral. “O pessoal continua praticando os instrumentos que aprendeu na infância e reúne-se simplesmente pelo prazer de tocar juntos, sem necessidade de se apresentar”, conta a violinista teuto-brasileira e professora de música da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Hella Frank, que participou por anos do Quarteto Sinos, tradicional grupo amador de São Leopoldo.
Ingo Schreiner, de Lajeado, RS, é descendente da primeira leva de imigrantes alemães que aportaram no Brasil. O professor de matemática da Universidade do Vale do Taquari (Univates), hoje aposentado, é um exemplo dessa prática constante da música amadora.
Ele dirigiu o coro da Comunidade Evangélica de Confissão Luterana em Lajeado por mais de 30 anos e sempre reuniu-se em grupos para tocar violoncelo, instrumento que aprendeu na juventude. “Com a família e amigos, costumamos cantar em casamentos de familiares ou em festas de bodas de ouro, coisas assim. A gente se reúne, prepara alguma coisa e canta em mais vozes.”
Hella Frank aponta que muitos dos que influenciaram a educação musical no Brasil são alemães ou descendentes de alemães. “Muitos ensinavam a partir do método alemão Orff”, destaca. Pedagogo musical engajado e inovador, Carl Orff (1895-1982) é conhecido sobretudo como o compositor da “cantata cênica” Carmina Burana.
Uma dessas figuras influentes é Isolde Mohr Frank, a mãe de Hella, que desempenhou um papel importante na divulgação da flauta doce nas escolas. “Ela viu que não tinha por aqui métodos para iniciantes. Inclusive publicou um livro, que ficou bem conhecido, Pedrinho toca flauta.” Além disso, Isolde fundou a orquestra juvenil e infantil da UFRGS e compôs arranjos simplificados de hinos luteranos.
O violinista Walter Schlupp, por sua vez, adaptou o primeiro volume do método de violino de Erich Doflein para o Brasil: “Peguei as 120 melodias e selecionei 120 músicas folclóricas brasileiras que se encaixassem tecnicamente, didaticamente, musicalmente, no que o método original alemão propunha.”
Isabel Winke aprendeu a tocar violino ao cursar a educação básica no Instituto Ivoti, na cidade gaúcha de mesmo nome, e mais tarde se tornou professora de música da instituição, O Instituto Ivoti foi fundado como Seminário Evangélico Alemão de Professores em 1909, expandindo-se depois para ensino fundamental, médio e técnico, mantendo sempre a música como essência institucional.
“Todas as crianças fazem musicalização como parte obrigatória do currículo, e têm a possibilidade de fazer aulas especializadas de instrumentos. Nas turmas de violino, tenho alunos desde os quatro anos. Trago canções folclóricas para eles, em alemão e em português. A musicalização auxilia desenvolvimento integral da criança e ajuda na concentração e foco dentro da sala de aula”, explica a professora.
Muitos descendentes dessa cultura de valorização da música no seio familiar tornaram-se multiplicadores da prática musical, ensinando ou participando de orquestras, coros ou grupos de música amadora. Um verdadeiro ecossistema musical originário, em grande parte, da imigração alemã.
Do ensino profissional de música ao papel da Igreja Luterana
No âmbito da música erudita profissional, vale destacar dois nomes: Hans-Joachim Koellreutter (1915-2005) e Ernst Mahle (1929). O primeiro foi um influente músico, compositor e educador alemão que emigrou para o Brasil em 1937. Sua atuação foi fundamental na formação de novos músicos e na popularização da música erudita no país, além de ser um dos fundadores do movimento Música Viva, que introduziu técnicas como o dodecafonismo no cenário musical brasileiro.
Já Ernst Mahle, natural de Stuttgart e instalado no Brasil em 1951, é compositor, regente, educador e fundador da Escola de Música de Piracicaba, fundamental na formação de gerações de músicos brasileiros. Sua produção inclui cinco óperas baseadas em clássicos da literatura brasileira.
A música serviu de suporte à ideia de participação comunitária propalada pela reforma de Martinho Lutero. Os cantos luteranos são também uma forma de marcar rituais de passagem de uma comunidade: canta-se em funerais, casamentos, batismos, “Lutero valorizou que você não apenas para e escuta, você faz”, explica Ewald. Todos os músicos que conversaram com a DW para a atual reportagem se iniciaram na prática musical por meio dessa instância religiosa.
Essa perspectiva do fazer musical em conjunto ultrapassa os muros da igreja. Coros surgiram em praticamente todas as localidades de colonização alemã no país, rurais e urbanas. Num primeiro momento, a maioria dos coros eram masculinos, mas logo surgiram os grupos femininos e mistos. A prática incentivou o movimento coral de entidades brasileiras e contribuiu para o surgimento de obras corais de autores brasileiros. “Temos corais com mais de 100 anos de existência ininterrupta”, registra Ewald.
Associações de canto se formaram com o objetivo de integrar as ações corais espalhadas pelo território e aproximar imigrantes que vinham de regiões e dialetos distintos, e de confissões religiosas diferentes.
O cancioneiro folclórico Lieder aus dem Palmenland (Canções da terra das palmeiras) foi uma coletânea de 46 canções publicada em 1906 para a comunidade teuto-brasileira. Seu título expressa a nova realidade e nova identidade da comunidade germânica, além de evocar um sentido paradisíaco do novo mundo. O canto tinha também a função de ensino e manutenção da língua: possibilitava o desenvolvimento do letramento, além da alfabetização básica, e um contato com a poesia.
Outra modalidade importada pelos imigrantes germânicos foram os coros de metais, compostos por trompetes, trombones, tubas e trompas. “Na Alemanha, são chamados de ‘posaunenchöre’ [coros de trombones] e desempenharam um papel importante nas comunidades alemãs, especialmente no Espírito Santo, onde são particularmente proeminentes”, aponta o mestre em música Walter Schlupp.
Novos contornos e trocas de influência
O principal instrumento musical legado pelos imigrantes germânicos no Brasil foi o acordeão, que se mesclou com outros tons e é largamente utilizado tanto na música tradicional sulista quanto na música nordestina. “Ele se adaptou perfeitamente às condições regionais locais, funcionando como instrumento solista ou grupal para a dança de gêneros musicais tão característicos como o chamamé, no Sul e Centro-Oeste, e o baião, do Nordeste”, explica Ewald.
Além disso, a imigração europeia trouxe danças como as polcas e as valsas, que, no mundo novo, foram tocadas de um novo modo e com os instrumentos que estavam à disposição. Essa mescla de elementos fez surgir o choro. “Esses ritmos foram tocados no Brasil de um modo mais gingado, colocando o acento rítmico em outros pontos. Essa é a raiz do choro, que depois acabou virando um gênero próprio brasileiro.”
Nas bandas de sopro é onde mais se encontra o diálogo com outros estilos. Populares nas Oktoberfests, as famosas “bandinhas” tocam músicas típicas do folclore germânico, mas também ritmos como vanerão, samba e sertanejo. Um exemplo é a banda Os Três Xirus, que mistura canções e ritmos gauchescos com bandinha e canções em alemão e português.
As Oktoberfests são palco para a mistura de germanidade com diversas outras tradições. “Essa liberdade de mistura é uma coisa que caracteriza a imigração alemã no Brasil”, observa Ewald. “Não vai dar em nada procurar a pureza da tradição. Ela nunca foi pura, ela sempre foi mesclada. Isso não a invalida: mostra que forças da contemporaneidade pressionam por esse caminho para que continue viva.”
Para o professor, é o que se chama de tradição inventada: não é uma tradição mentirosa, mas é a junção de coisas que talvez historicamente e geograficamente estejam distantes e acabam juntas.