País dilacerado pela guerra civil, comandado por um presidente – Omar al-Bashir – condenado pelo Tribunal Penal Internacional de Haia e eventual abrigo de militantes da rede terrorista islâmica Al-Qaeda, o Sudão não cativa muitos turistas para visitar suas atrações. Isso ajuda a fazer daqueles que conseguem assistir ao pôr do sol nas pirâmides de Meroe, a última capital do império Kush (a antiga Núbia), a 200 quilômetros a nordeste de Cartum, privilegiados espectadores de uma paisagem única e preciosa.

Guillemette Andreu, chefe de antiguidades do Museu do Louvre, na França, disse à agência de notícias AFP que o que diferencia as pirâmides egípcias das núbias é que, no Egito, boa parte da beleza desses monumentos é ofuscada pelas multidões de turistas. As tumbas no Sudão, por outro lado, não foram totalmente exploradas e ainda não ganharam muita atenção do público.

Uma das mais antigas civilizações do vale do Nilo, Kush tinha seu núcleo principal na confluência dos rios Nilo Azul, Nilo Branco e Atbara, mas se estendia por 1.200 quilômetros às margens do maior curso d’água da África. Inicialmente, a região era dominada pelos egípcios. Os kushitas conseguiram a independência e, no auge de seu poderio, conquistaram o Egito no século 8 d.C. Durante um século eles imperaram em todo o vale do Nilo, até serem obrigados a retroceder às terras do atual Sudão. A dinastia de Meroe foi a última numa linhagem de “faraós negros” que governou Kush por mais de um milênio, até 350 d.C., quando o império, já enfraquecido pelas guerras contra o Egito, então sob domínio romano, foi invadido e subjugado pelas tropas de Ezana, rei de Axum (a atual Etiópia).

As pirâmides núbias são mais baixas que as egípcias – a maior possui 30 metros de altura – e mais pontudas, com ângulos de aproximadamente 70 graus de inclinação. Em Meroe foram encontrados três cemitérios, com mais de 100 pirâmides. Embora essas edificações tivessem sido cuidadosamente escavadas, revelando diversos objetos que expandem o conhecimento sobre a cultura kushita, muitos aspectos dessa civilização permanecem envolvidos em mistério. Até mesmo a cronologia dos fatos ainda não é precisa, ressaltou à AFP Salah Mohammed Ahmed, diretor assistente de antiguidades do Sudão.

Vista parcial do Templo de Amon (antigo Templo de Naga), erguido pelo povo kush.

Os arqueólogos também descobriram na região um grande número de pilares de pedras com inscrições, denominados estelas. Seu conteúdo ainda não foi decifrado, pois os pesquisadores conhecem o significado de apenas 50 palavras meroítas e calcula-se que esse número precisa chegar a pelo menos mil para se conseguir uma tradução adequada. Julie Anderson, arqueóloga do Museu Britânico e co-diretora, com Ahmed, responsável pelas escavações em Dangeil, no norte do Sudão, afirmou à AFP: “Se conseguirmos decifrar essa linguagem, um novo mundo se abrirá para nós, como se os kushitas antigos estivessem conversando conosco.” Sua equipe descobriu no início deste ano uma estátua de uma tonelada do rei Taharqa, o mais famoso dos faraós negros, que governou por volta do ano 7 a.C.

 

Baixo-relevo do sítio arqueológico de Meroe, a 300 quilômetros da capital sudanesa, Cartum.

Meroe é apenas o reduto mais conhecido de um império que, pouco a pouco, começa a revelar outros segredos. Um sítio arqueológico a 300 quilômetros ao norte de Cartum abriga as ruínas de cerca de 50 pequenas pirâmides, datadas desde 250 a.C até 350 d.C., que serviram de tumbas para governantes de Kush. Assentadas no topo de duas cadeias de montanhas cobertas por dunas de areia a aproximadamente cinco quilômetros a leste do Rio Nilo, essas pirâmides compõem uma das vistas mais espetaculares do território sudanês. Alguns anos atrás, uma equipe do Louvre começou a trabalhar em Al-Muweis, um local intocado por muitos anos e localizado a 200 quilômetros ao norte de Cartum. Foram encontrados ali templos, palácios gigantescos e casas.

Localizadas a 300 quilômetros de cartum, cerca de 50 pirâmides serviram de tumbas para governantes de kush

A região pode guardar ainda muitas outras surpresas. Recentemente, o arqueólogo suíço Mattieu Honeggar descobriu em Wadi Al-Arab, um sítio no norte do Sudão, vestígios de que o local foi habitado mais ou menos 10 mil anos atrás, muitos milênios antes dos faraós negros. As escavações poderiam permitir um entendimento melhor da transição do homem para a vida sedentária.

Cerca de 50 pequenas pirâmides estão distribuídas no sítio de Meroe. Elas foram construídas durante um intervalo de tempo de 600 anos, entre 250 a.C. e 350 d.C., quando o império kushita foi subjugado pelos etíopes do reino de Axum.

Em 2007, pesquisadores do Instituto de Estudos Orientais da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos, descobriram 55 pedras que seriam usadas para moer minério com ouro, a fim de extrair o metal, na região de Hosh el-Geruf, a 350 quilômetros de Cartum, perto da quarta catarata do Nilo. As escavações mostram que Kush era um rico centro de minérios. Segundo GeoffEmberling, do Instituto de Estudos Orientais da Universidade de Chicago, a Núbia era conhecida por seus depósitos de ouro. O Egito dominou a região entre 1539 a.C e 1075 a.C. e retirou de lá muito ouro.

No entanto, boa parte das riquezas arqueológicas a serem descobertas nessa região corre o risco de permanecer em segredo por causa da construção da hidrelétrica de Meroe, que inclui um lago de mais ou menos 160 quilômetros de comprimento. Infelizmente para arqueólogos e historiadores, o progresso industrial e os conflitos armados no Sudão podem enterrar para sempre muitos tesouros do país.

 

Vista parcial das pirâmides que serviram de sepultura para governantes kushitas.

 

Herança egípcia

Muito antes de os faraós negros governarem o Egito, os soberanos da 18ª dinastia egípcia (1539-1292 a.C.) conseguiram dominar a Núbia, que era conhecida por sua riqueza em recursos minerais. Submetida aos egípcios, a elite núbia começou a adotar seus costumes culturais e espirituais, como a veneração a deuses, a língua, os ritos de funeral e enterro e, mais tarde, as pirâmides.

Durante esse período de dominação egípcia, os núbios forneciam ao ocupante outros materiais de valor, como peles de animais, marfim, ébano, gado e cavalos. Com isso, muitos egípcios foram morar na região de Kush e muitos kushitas se mudaram para o norte. Os egípcios também construíram grandes templos e monumentos no local. Um dos centros religiosos de Kush, próximo à terceira catarata do Nilo, era dedicado à estátua do deus egípcio Amon. Outra herança cultural notável foram as pirâmides. O primeiro a querer ser enterrado em uma foi o segundo faraó núbio, Piye. Porém, as pirâmides das duas nacionalidades são diferentes. As dos kushitas são mais baixas e mais pontudas.

 

Império poderoso

Estabelecido por volta de 2500 a.C., o império de Kush era reconhecido pelo antigo Egito e pelos textos bíblicos. Acredita-se que os kushitas vieram de civilizações africanas que habitavam o sul do Nilo. Os moradores de Kush desenvolveram reinos poderosos. O primeiro foi centrado em Kerma (2000-1650 a.C). As últimas capitais foram Napata (800- 270 a.C) e Meroe (270 a.C.-370 d.C).

Por quase um século, os kushitas governaram seu vizinho do norte, o Egito. Conhecidos também como “faraós negros”, os soberanos da Núbia contribuíram muito para a civilização egípcia. Arqueólogos encontraram evidências de que os faraós de Kush, que representam a 25ª dinastia no poder do Egito, mandaram construir e restaurar muitos monumentos dos dois reinos. Algumas representações, principalmente as dos faraós, mostram novas formas originadas da mistura da cultura dos dois povos.

Numerosas representações faraônicas têm características faciais de kushitas, bem como alguns dos artefatos usados pelos soberanos. Os faraós kushitas conseguiram reunificar um Egito desgastado, criando um império que se estendia da fronteira sul, onde hoje é Cartum, até o Mar Mediterrâneo.

 

Solução polêmica

A represa hidrelétrica de Meroe, inaugurada em maio deste ano, tem causado muita discussão: as obras levaram ao desaparecimento de alguns artefatos antigos que ainda podiam ser encontrados na região. Mas, segundo os mentores do projeto, a hidrelétrica foi um grande passo para o desenvolvimento econômico e social do Sudão, pois traz benefícios como energia elétrica mais barata para melhorar a agricultura irrigada, indústria pesqueira no lago da hidrelétrica e proteção contra a enchente destrutiva em áreas vizinhas.