Se as mulheres vivem mais, superam os homens em quantidade em vários países e conquistam um espaço cada vez maior no mercado de trabalho, a velha afirmação de que elas constituem o chamado “sexo frágil” soa no mínimo controvertida hoje em dia. Uma pesquisa divulgada em dezembro põe ainda mais lenha na fogueira: segundo seus autores, o gênero masculino de todos os animais vertebrados, de peixes a mamíferos – incluindo os humanos -, corre um risco significativo, e o agravamento dessa tendência trará consequências desastrosas em termos evolutivos. Entre as razões da mudança destacam-se substâncias químicas espalhadas pelo ambiente, que estão feminizando os machos dessas espécies.

“Uma ação urgente é necessária para controlar as substâncias químicas conversoras de gênero, e mais pesquisas são necessárias para o monitoramento da vida selvagem”, alerta Gwynne Lyons, autora do texto do estudo. “Substâncias químicas produzidas pelo homem estão claramente danificando o kit de ferramentas básico do sexo masculino. Se as populações de animais selvagens desaparecerem, será muito tarde. A menos que um número suficiente de machos contribua para a próxima geração, há uma ameaça real para as populações animais no longo prazo.”

Os danos ao kit de ferramentas básico do sexo masculino de aves, peixes, anfíbios, répteis e mamíferos são uma ameaça real para essas populações no longo prazo

Substâncias produzidas pelo homem e espalhadas na terra, na água e no ar (à direita) estão provocando alterações no gênero masculino dos pássaros (acima) e outros animais vertebrados.

Ex-conselheira do governo do Reino Unido sobre os efeitos de substâncias químicas na saúde, Gwynne é diretora da Chem Trust, organização beneficente britânica responsável pela publicação do trabalho, que está baseado em mais de 250 pesquisas realizadas ao redor do mundo. Concentrado na vida selvagem, o estudo ganhou o endosso de alguns dos principais cientistas do planeta, segundo os quais ele “agita uma bandeira vermelha” para a humanidade.

Nos últimos anos, vegetais, animais e seres humanos têm sido expostos a mais de 100 mil substâncias químicas. A Comissão Europeia admitiu que nada menos do que 99% delas não são adequadamente reguladas e 85% nem ao menos oferecem informações de segurança apropriadas. Vários deles são classificados como “perturbadores endócrinos” – ou conversores de gênero – por sua capacidade de interferir em hormônios. A lista abrange os ftalatos, cujas aplicações incluem as embalagens para alimentos, cosméticos e talcos destinados a bebês; retardadores de chamas em móveis e aparelhos elétricos; as bifenilas policloradas (PCBs), um grupo de substâncias banidas de vários países desde a década de 1970, mas ainda disseminadas no meio ambiente; e diversos pesticidas.

“Machos de espécies de cada uma das principais classes de animais vertebrados (incluindo peixes com ossos, anfíbios, répteis, pássaros e mamíferos) foram afetados pelas substâncias químicas no ambiente”, afirma Gwynne no estudo. “A feminização dos machos de numerosas espécies vertebradas agora é uma ocorrência disseminada. Todos os vertebrados têm receptores de hormônios sexuais similares, que foram conservados na evolução. Assim, observações em uma espécie podem servir para destacar casos de poluição que dizem respeito a outros vertebrados, incluindo os humanos.”

Por viverem imersos na água, os peixes são especialmente afetados quando ela está poluída: absorvem os poluentes não apenas via alimentos, mas também através das guelras e da pele. Isso faz com que os machos dessa classe estejam entre os primeiros a apresentar características de conversão de gênero. Um estudo revelou que metade dos peixes machos de rios em partes baixas da Grã-Bretanha estava desenvolvendo ovos em seus testículos. Efeitos feminizantes também foram encontrados em peixes de água doce do Japão e de Benin (África Ocidental), assim como em exemplares de áreas oceânicas mais fechadas, como o Mar do Norte, o Mediterrâneo, o Estreito de Puget (costa noroeste dos Estados Unidos) e a Baía de Osaka (Japão). Parte da culpa é atribuída aos hormônios femininos (originários principalmente de pílulas anticoncepcionais) que passam inalterados pelos sistemas de tratamento de esgoto, mas o relatório da Chem Trust lembra que mais de 75% das estações de tratamento britânicas também deixam passar substâncias químicas emasculadoras fabricadas pelo homem.

A INFLUÊNCIA DA POLUIÇÃO DO AR

Uma pesquisa pioneira realizada em São Paulo mostrou que a poluição atmosférica também faz parte da relação de conversores de gênero. Divulgada em 2008, “A Poluição em São Paulo e a Diminuição de Nascimento de Meninos” revela uma relação entre a queda na qualidade do sêmen e a sujeira na atmosfera entre roedores e seres humanos. Apenas em 2006, o cruzamento dos dados fornecidos pela Cetesb (órgão que controla a qualidade do ar na capital paulista) com informações obtidas nos cartórios da cidade mostrou a redução no nascimento de 1.180 bebês do sexo masculino. Segundo a pesquisa, quanto maior o número de partículas suspensas na atmosfera, menor o número de meninos concebidos, pois a sujeira do ar afeta o cromossomo Y. “Quando falamos em poluição nas grandes cidades, pensamos apenas nos problemas respiratórios ou de pele. Mas a poluição impacta de forma muito sutil e promove um desequilíbrio em diferentes campos quando o impacto a longo prazo e em populações inteiras é avaliado”, diz Jorge Hallack (foto ao lado), da USP, um dos autores do estudo.

Os anfíbios também apresentaram exemplos de alterações. Um estudo realizado em 2008 na Universidade da Flórida revelou que 40% dos sapos- cururus machos (espécie tão resistente que virou praga na Austrália) se tornaram hermafroditas numa região rural desse Estado norte- americano. Cientistas canadenses flagraram a mesma relação entre fazendas e alterações sexuais nas rãsleopardo, e indicaram a presença de pesticidas como a provável causa do fenômeno.

Os exemplos de feminização entre os machos vertebrados incluem gaivotas que produzem a proteína feminina usada na feitura da gema do ovo, sapos e ursos hermafroditas, crocodilos e veados com anomalias genitais, focas e golfinhos com baixa reprodução.

>>>ENXURRADA DE PERTURBADORES ENDÓCRINOS

No âmbito da toxicologia ambiental, a problemática dos perturbadores endócrinos é a área de estudo que mais tem atraído as atenções nos últimos anos. A propagação global das perturbações endócrinas no meio ambiente não para de aumentar, enquanto as pesquisas a respeito do tema encontram-se apenas no início. A feminização de numerosas espécies – muitas das quais fazem parte da nossa cadeia alimentar – se desenvolveu sobretudo por causa da enxurrada de hormônios lançada a cada dia nas águas do globo. Agora, já não há dúvidas: essas perturbações endócrinas têm, entre suas origens, as mulheres consumidoras de pílulas anticoncepcionais orais. Através da sua urina, elas despejam quantidades monumentais de hormônios nas águas que depois serão recicladas e voltarão para o consumo das populações. Pesquisas mostram que estrógenos sintéticos e outros hormônios resistem ao processos de tratamento de águas.

A bióloga Karen Kidd, do Departamento de Pesca e Oceanos do Canadá, verificou claramente esses efeitos após introduzir hormônios sintéticos num lago de 34 hectares no noroeste de Ontário. A experiência mostrou que a introdução de uma baixa quantidade desses hormônios já bastava para provocar a aparição de ovas nos testículos de certos peixes machos. As fêmeas, por seu lado, estimuladas por esses hormônios, começavam a produzir ovas fora dos períodos normais de reprodução. A feminização dos peixes é essencialmente provocada por estrógenos sintéticos que resistem aos filtros e às bactérias de depuração.

Outro estudo, realizado pelo Instituto Armand Frappier, também no Canadá, revela que a bioacumulação de substâncias estrógenas pode se transferir de uma espécie para outra na cadeia alimentar. Ou seja, esses hormônios podem se transferir, por exemplo, de um peixe para um mamífero, de uma galinha para… um homem.

Para se ter uma idéia da emissão total de hormônios no meio ambiente, uma pesquisa feita pelo Instituto Nacional de Estatísticas (INS), da Bélgica, revelou em 1997 que a emissão total de estrógenos naturais no meio ambiente, como consequência da excreção humana, atingia cerca de 1,3 quilograma por dia. Considerando-se a emissão conjunta de estrógenos pelo homem e por bovinos, suínos e aves, chegava-se a cerca de 7,7 quilogramas por dia. Isso significa, portanto, em um ano, na Bélgica, uma emissão de estrógenos de quase 3 toneladas!

Os pesticidas também seriam os vilões em casos de crocodilos machos da Flórida que têm apresentado níveis mais baixos de testosterona e mais altos de estrógeno (hormônios masculino e feminino, respectivamente), pênis menores, testículos anormais e falhas reprodutivas. Tartarugas-mordedoras machos com características femininas têm sido observadas na Flórida e na região dos Grandes Lagos (entre Canadá e EUA). Essa última área, aliás, é um marco desolador em termos de poluição: mais de 400 substâncias químicas diferentes já contaminaram a vida selvagem por lá.

Entre os pássaros, os cientistas já encontraram exemplares machos de gaivotas-prateadas e falcões- peregrinos que produziam a proteína feminina usada para fazer a gema do ovo. Águias-carecas têm demonstrado dificuldades de se reproduzir em regiões altamente poluídas por substâncias químicas como aquela. Uma pesquisa da Universidade de Cardiff (Grã-Bretanha) revelou que os cérebros de estorninhos machos que comeram minhocas contaminadas por hormônios femininos numa estação de esgoto no sudoeste da Inglaterra apresentavamse alterados. As mudanças permitiam aos pássaros cantar numa extensão sonora maior do que a normal e com virtuosismo ampliado.

Diversos casos foram detectados entre mamíferos. No Ártico, os ursos-polares lutam não apenas contra o aquecimento global, mas contra substâncias conversoras de gênero que levaram alguns exemplares a apresentar simultaneamente pênis e vagina, característica do hermafroditismo. Nos machos restantes, obser vou-se redução na contagem de esperma e pênis menores. Ainda no norte do planeta, mais de 65% dos veados-mulas da região de Sitka (Alasca) exibiam um crescimento deformado dos chifres e testículos dentro do abdômen. Mais ao sul, uma proporção parecida de veados-galheiros do Estado de Montana (EUA) revelou anomalias genitais. Na Flórida, o esperma de muitos dos exemplares das pequenas e ameaçadas populações de panteras mostrou-se anormal.

As baleias belugas do estuário do rio São Lourenço, no Canadá, e orcas na costa noroeste canadense – duas das espécies mais contaminadas por PCBs – estão se reproduzindo pouco, assim como tartarugas, focas e golfinhos que habitam as mesmas águas. Na Grã-Bretanha, descobriu-se em 2007 que lontras com níveis mais altos de organoclorados tinham seu báculo (osso do pênis) menor e testículos dentro do abdômen. Os minkes expostos a PCBs apresentaram pênis mais curtos. A população de focas no litoral leste do país não cresce desde a eclosão de uma epidemia de raiva em 2002, e os cientistas acreditam que a explicação para isso reside na saúde reprodutiva dos animais.

Na África do Sul, o elande (tipo de antílope), exposto à contaminação por altos níveis de substâncias químicas conversoras de gênero, exibe testículos lesionados. Camundongos listrados que habitavam uma reserva natural poluída não produziam espermatozóides, descobriram os cientistas.

O professor Lou Gillette, da Universidade da Flórida, um dos mais respeitados estudiosos da área, alerta que o relatório agita “uma grande bandeira vermelha” para a humanidade. Ele adverte: “Se estamos vendo problemas na natureza, podemos depreender que algo similar está acontecendo para uma proporção de seres humanos masculinos.”

Belugas que habitam as costas canadenses estão se reproduzindo pouco. Entre os ursos-polares (abaixo) já foram encontrados exemplares que apresentam simultaneamente pênis e vagina.

Indícios disso não têm faltado. Um estudo recente da Universidade de Rochester (EUA) mostrou que os meninos cujas mães estiveram submetidas a elevados níveis de ftalatos apresentaram tendência maior de possuir pênis menores e testículos dentro do abdômen. Eles também exibiam uma distância menor entre seu ânus e a genitália, um sinal clássico de feminização. Uma pesquisa da Universidade Erasmus, de Roterdã (Holanda), revelou que garotos cujas mães haviam sido expostas a PCBs cresceram querendo brincar com bonecas e aparelhos de chá, em vez dos tradicionais brinquedos masculinos.

A COLABORAÇÃO DO AQUECIMENTO GLOBAL

Os poluentes químicos não são os únicos vilões no processo de feminização dos vertebrados. Pelo menos entre os répteis, o aquecimento global já faz estragos consideráveis. Além do DNA, a temperatura tem papel importante na definição do sexo desses animais – quanto mais elevada ela estiver durante a incubação dos ovos, maior a probabilidade de nascimento de fêmeas. O fenômeno é comum, por exemplo, nas tartarugas marinhas. Numa pesquisa publicada em 2007 na revista Global Change Biology, que acompanhou 26 anos na reprodução de tartarugascabeçudas (uma das sete espécies de tartarugas marinhas) no litoral da Flórida, verificou-se que os nascimentos de fêmeas já representam 90% do total, e o aumento de 1 grau Celsius na temperatura da água pode reduzir a praticamente zero o número de novos machos.

Comunidades poluídas pesadamente com substâncias químicas conversoras de gênero no Canadá, na Rússia, na Itália e no Brasil assistiram a um número de nascimento de meninas duas vezes maior que o de meninos, o que pode oferecer uma pista da mudança a favor das mulheres nas razões de sexo em certos pontos do mundo. (Aqui, os casos mais bem documentados estão no norte do Paraná, onde inseticidas à base de cloro foram largamente usados nas lavouras nos anos 1980.) Calcula-se que, apenas nos EUA e no Japão, 250 mil crianças que teriam sido meninos nasceram meninas.

Além disso, as contagens de esperma estão decrescendo significativamente. Estudos em mais de 20 países mostraram que elas caíram de 150 milhões de espermatozóides por mililitro para 60 milhões ao longo de 50 anos. (Como exemplo, os hamsters produzem quase três vezes mais: 160 milhões.)

“Temos despejado 100 mil substâncias químicas contra um sistema hormonal primorosamente equilibrado e, assim, não é surpresa que estejamos observando alguns resultados sérios”, afirma o doutor Peter Myers, cientistachefe da Environmental Health Sciences e uma das mais importantes autoridades mundiais em substâncias químicas conversoras de gênero. “(Essa poluição) está levando ao mais rápido ritmo de evolução na história do mundo.”