23/10/2024 - 11:18
Resultados municipais confirmam: a esquerda do Brasil perdeu a conexão com a periferia. Se não desenvolver novos modelos e desistir do paternalismo, estará entregando o campo ao “cada um por si” da direita.As eleições municipais no Brasil, no início de outubro, foram um desastre para a esquerda. A centro-direita saiu como grande vencedora, com o PSD de Gilberto Kassab à frente de todos, seguido pelo PL e os Republicanos, que a esquerda costuma classificar como extrema direita. Nomes como o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, encontram-se nessa ala.
O PT, por sua vez, aparece combalido, em nono lugar. Um resultado que faz pensar, ao mostrar que continua avançando a perda de significado do partido, iniciada nos anos 2010.
A previsível derrota de seu aliado Guilherme Boulos (Psol), em São Paulo – antigo bastião petista – no segundo turno, no próximo domingo (27/10), completa esse cenário desanimador para a esquerda. Aparentemente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou Boulos à própria sorte na campanha, ao notar que não havia chance de ganhar a disputa.
Enquanto na ala direitista vários candidatos se alinham para as presidenciais de 2026 – governadores como Freitas, Romeu Zema (MG) ou Ronaldo Caiado (GO) –, e novas personagens de projeção naciona l– como Pablo Marçal em São Paulo – despontam, na esquerda não se vê nenhuma nova figura de liderança. Embora o atual terceiro mandato devesse ser seu último, tudo aponta para uma nova candidatura de Lula, prestes a fazer 79 anos.
“Cada um por si” derrotando o coletivismo
Numa entrevista, poucos dias atrás, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, – que em 2018 perdeu de longe para Jair Bolsonaro – acusou a esquerda de não ter desenvolvido nenhum novo modelo de futuro. Desde a crise financeira mundial de 2008, ela não conseguiu, nem no Brasil, nem em nível global, esboçar um “horizonte utópico que guie as pessoas”. A esquerda brasileira precisa urgentemente de “oxigênio novo”, afirmou Haddad. Mas de onde é que ele vai vir?
Em declarações recentes, o filósofo Vladimir Safatle, da Universidade de São Paulo (USP), traçou um quadro igualmente sombrio: a esquerda “não tem nada a dizer para a periferia”, no Brasil ela estaria “morta” e, se nada mudar logo, em 2026 a direita vai estar de volta no poder. Com seu “cada um por si”, ela dominaria o atual espírito do tempo. Enquanto isso na esquerda, à sombra do dominante Lula, não pôde haver nenhuma renovação.
Esse “cada um por si” caracteriza sobretudo o universo das igrejas pentecostais, com sua promessa de prosperidade, em contraponto crasso ao discurso católico, para o qual é mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino de Deus, e em que o coletivo deveria estar acima dos egoísmos individuais. É desse contexto do operariado católico que emergiu, na época, o PT – assim como o social-democrata PSDB, que já está alguns passos adiante do PT no processo de autodissolução.
As promessas de prosperidade da social-democracia fracassaram. Diante da falta de perspectivas, a juventude da periferia agora toma seu destino nas próprias mãos, mesmo que isso signifique tentar a sorte como entregador de pizza, motorista de Uber ou influenciador. Ao que tudo indica, a esquerda não tem mais como fincar pé nesse universo.
Burros demais para saber o que querem?
Em seu livro mais recente, O pobre de direita, o sociólogo Jessé Souza tenta dar uma explicação para esse esvaziamento de sentido. Ele vê no racismo o motor da “virada moralista” no Brasil, que catapultou a centro-direita e a extrema direita para o poder.
Assim, os pobres, eternamente oprimidos, se deixaram manipular pelo discurso direitista a apoiar uma política que, no fim das contas, agrava a própria opressão que sofrem: é o pobre que elege seu próprio algoz, é a “barata” escolhendo o “chinelo”.
Por trás das conclusões de Souza está a tese de que, na realidade, os pobres são burros demais para perceber a manipulação pela direita. É uma tese paternalista não considerar a população pobre “maior de idade”, do momento que não vote do jeito que a intelligentsia esquerdista esperava. É o mesmo sentimento de superioridade moral por trás das reivindicações para impedir os beneficiários de participarem de apostas online com o dinheiro de sua Bolsa Família.
“A voz de Deus é a voz do povo”, dizia o jingle da campanha de Lula em 2006. Mas parece que o princípio só valeu enquanto “o povo” votava na esquerda. Esse paternalismo esquerdista, aliado à prepotência, contribuiu decisivamente para se afastar da realidade do cidadão comum. Enquanto não reconhecer isso, a esquerda estará entregando o campo à direita.
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Thomas Milz saiu da casa de seus pais protestantes há quase 20 anos e se mudou para o país mais católico do mundo. Tem mestrado em Ciências Políticas e História da América Latina e, há 15 anos, trabalha como jornalista e fotógrafo para veículos como a agência de notícias KNA e o jornal Neue Zürcher Zeitung. É pai de uma menina nascida em 2012 em Salvador. Depois de uma década em São Paulo, mora no Rio de Janeiro há quatro anos.
O texto reflete a opinião do autor, não necessariamente da DW.