03/11/2024 - 14:43
Acesso aos serviços médicos na Alemanha costuma ser frustrante para quem não fala o idioma local. Outros países europeus já possuem mecanismos para contornar o problema.A estudante sueca de linguística Hedvig Skirgard, que se mudou para Leipzig para realizar seus estudos de pós-doutorado, estava na Alemanha há apenas alguns meses quando precisou ir ao médico. Depois de vários anos morando e trabalhando no país, essa primeira experiência em um consultório médico alemão ainda lhe causa preocupação.
“Meu médico recomendou alguns especialistas”, disse ela. “Entrei em contato com eles usando o tradutor do Google e o pouco alemão que eu tinha aprendido. Perguntei se eles podiam falar inglês comigo, mas nenhum deles podia. Perguntei se havia algum serviço de interpretação disponível, mas não havia. Um especialista sugeriu que eu trouxesse um amigo ou um membro da família para traduzir para mim, mas não tenho família aqui e nenhum amigo que eu me sentisse confortável em levar para uma discussão médica íntima.”
Ela diz que o mais estranho foi a impressão de que os médicos pareciam não saber o que fazer quando não compartilham uma língua com seus pacientes. “Será que eu poderia ser a primeira imigrante na minha cidade a passar por um procedimento médico sem ter capacidade avançada de falar alemão? Certamente não?”
Skirgard muito provavelmente não era. O Departamento Federal de Estatísticas da Alemanha (Destatis) descobriu em 2023 que cerca de 15% das pessoas que vivem na Alemanha não falam alemão como idioma princial em casa.
A sueca ficou um perplexa ao descobrir que há poucos sistemas disponíveis nos quais as operadoras de saúde atendem pacientes não alemães, sendo que muitos médicos não sabem quais sistemas existem. Depois de muito procurar, Skirgard encontrou um banco de dados útil de médicos que falam línguas diferentes que seu próprio médico não conhecia.
“Foi estressante e assustador, espero que isso não aconteça com mais ninguém. Conheço outros casos que não terminaram tão bem”, disse. “Os médicos se sentem incomodados e pressionados a fornecer cuidados fora de sua zona de conforto e capacidades.”
Mecanismos de tradução funcionam em outros países
A maioria dos médicos alemães provavelmente concordaria: em maio, a conferência de médicos da Associação Médica Alemã votou a favor de duas resoluções exigindo serviços de interpretação profissional gratuitos, sob o argumento de que a falta desses serviços estava dificultando o trabalho.
“Todos os dias, nós, médicos, tratamos pacientes cuja língua materna não é o alemão”, dizia uma das resoluções. “Muitas vezes, a comunicação só é possível com a ajuda de familiares ou colegas da profissão médica, equipe de enfermagem ou pessoal de serviço. Essa mediação de linguagem não profissional não é apenas um fardo para o tradutor, mas também para a equipe médica e os pacientes, e complica o diagnóstico ou o tratamento apropriado.”
Esses serviços não são uma ideia nova. Em outros países europeus, cabe ao sistema de saúde, e não ao paciente, encontrar uma linguagem comum. Na Suécia, terra natal de Skirgard, há um sistema centralizado que permite que os médicos agendem uma teleconferência com um intérprete se tiverem uma consulta com um paciente que não fale sueco. Na Noruega, os pacientes têm o direito legal de receber informações sobre sua saúde e tratamento médico em um idioma que eles entendam, enquanto o serviço de saúde irlandês emitiu diretrizes sobre como os médicos devem encontrar intérpretes.
Na Alemanha, enquanto isso, médicos e pacientes são frequentemente deixados para se virarem da melhor maneira possível, às vezes contando com instituições de caridade e voluntários como a ONG Comunicação em Ambientes Médicos, um grupo universitário sediado em Leipzig que organiza interpretações para consultas médicas, principalmente para refugiados e requerentes de asilo.
“Nós nos vemos como preenchedores de lacunas para traduções que devem ser feitas e pagas profissionalmente”, disse Paulina, da Comunicação em Ambientes Médicos, à DW, que preferiu não dar seu sobrenome. “Mas, vemos que a lacuna existe, porque nem o Estado, nem as seguradoras de saúde, nem os consultórios médicos, nem os hospitais se responsabilizam por arcar com os custos.”
Bom ou necessário?
O governo de coalizão do chanceler Olaf Scholz está ciente do problema e prometeu em seu contrato de coalizão de 2021 fazer com que as seguradoras de saúde nacionais e estaduais cobrissem o custo dos serviços de tradução. Um porta-voz do Ministério da Saúde alemão confirmou à DW que isso ainda faz parte do plano e recomendou que os partidos da coalizão incluíssem esses serviços na Lei de Fortalecimento da Assistência Médica.
Mas, isso ainda não aconteceu e parece ter sido bloqueado pelos desentendimentos na coalizão de governo. Bernd Meyer, professor de comunicação intercultural na Universidade de Mainz, estudou questões de linguagem, integração e cultura por muitos anos e é coautor de um livro de recomendações sobre a linguagem nas instituições públicas. Ele foi convidado ao Bundestag (Parlamento alemão) no ano passado para explicar por que a medida é tão necessária.
“Todos dizem que isso é um problema e que precisa ser resolvido”, disse Meyer à DW. “Mas, há um problema na implementação política.” Embora ele afirme que fornecer tais serviços seria relativamente barato, dado o custo do sistema de saúde em geral, seu entendimento era que a coalizão tinha decidido que serviços de tradução eram considerados como algo que seria “bom ter”, em vez de ser visto como algo necessário.
“Basicamente, o tema foi bloqueado em toda as discussões sobre o orçamento e o ‘freio da dívida'”, disse o professor, se referindo ao mecanismo que obriga o governo a equilibrar as suas contas e coloca limites rígidos em novos empréstimos.
Alemanha é uma sociedade multilíngue
Como Skirgard e outros já perceberam, a Alemanha está tentando atrair mão de obra qualificada. De acordo com o Instituto da Economia Alemã (IW), cerca de 570.000 empregos não puderam ser preenchidos em 2023 o que gerou dificuldades para as empresas. Em setembro, o chanceler federal, Olaf Scholz, assinou um acordo de mão de obra qualificada com o Quênia para ajudar a preencher essa lacuna.
É claro que alguns dirão que o alemão é o idioma oficial e que qualquer um que more no país precisa aprendê-lo. “Eu concordo, isso é 100% verdade”, disse Skirgard. “Mas, quando alguém chega, no primeiro mês, do Quênia, e tem uma fratura, não deveria receber cuidados até fazer um curso intensivo de alemão? Acho que se a Alemanha quer ser um país que atrai imigrantes qualificados, então a tradução pode ser uma ‘necessidade’ e não uma ‘coisa boa de se ter’.”
Pesquisadores como Meyer frequentemente apontam que a Alemanha é, na realidade, uma sociedade multilíngue. Muitas pessoas passam a vida raramente falando alemão: durante sua pesquisa em um hospital, Meyer conheceu um paciente português de 60 anos que sofreu um ataque cardíaco e quase não tinha conhecimento de alemão, mesmo tendo passado mais de 30 anos trabalhando em um matadouro na Alemanha.
“Ele basicamente carregava porcos cortados ao meio o dia todo e, à noite, ia a um clube social português e assistia futebol”, disse ele. “Nunca teve muito contato com alemães. Por que deveria? Sua vida era boa. Ele nunca teve um motivo para aprender alemão.”
Embora – sendo uma linguista – Skirgard tenha aprendido alemão em seus quatro anos no país, ela também raramente o usa em sua vida profissional na universidade onde trabalha. “Você pode dizer que isso é ruim e não deveria ser assim, e eu posso entender completamente essa perspectiva”, ela disse. “Mas, essa é a realidade, então você tem que lidar com o que está acontecendo, em vez de o que você desejaria que acontecesse.”