21/07/2025 - 10:34
Relatos indicam que pacientes psiquiátricos estão sendo convocados para o Exército ucraniano a despeito de seu diagnóstico médico. Forças Armadas dizem que seguem padrões internacionais.Lapsos de memória, desorientação, confusão com números e cores: esses são apenas alguns dos problemas que Vasyl, um ucraniano de 28 anos, enfrenta diariamente. Apesar de receber tratamento psiquiátrico para um transtorno de personalidade desde 2015, o jovem foi considerado apto para o serviço militar e convocado para o Exército da Ucrânia.
Segundo sua companheira Olena, Vasyl – cujo nome real foi preservado pela reportagem – nunca reconheceu de fato seus problemas e provavelmente também não os mencionou durante o exame físico realizado para ingressar nas Forças Armadas.
Olena tentou explicar a situação do namorado ao novo comandante do jovem. Ela conta que, no começo, o militar pareceu compreender o problema, mas depois desconsiderou o laudo psiquiátrico de Vasyl, emitido em 2015, dizendo que estava desatualizado.
“Mas como isso não pode ser motivo para dispensa, se a condição dele é incurável?”, questiona Olena. Segundo ela, quando Vasyl está sob estresse seus sintomas pioram, o que pode ser um risco não apenas para si mesmo em uma situação de batalha, mas também para as pessoas ao seu redor. Isso não impediu o ucraniano de ser enviado ao sul da Ucrânia para realizar o treinamento militar.
Como pessoas com transtornos mentais podem ser convocadas?
Na Ucrânia, médicos militares recorrem a um banco de dados chamado Helsi para verificar se possíveis recrutas têm algum problema de saúde. Mas o diagnóstico psiquiátrico de Vasyl não aparece nesse sistema, explica o advogado ucraniano Yevhen Tsekhmister, porque dados sobre doenças psiquiátricas só podem ser registrados com autorização do paciente.
Se o diagnóstico constasse no banco de dados, segundo a Ordem nº 402 do Ministério da Defesa, Vasyl seria considerado inapto para o serviço militar. Essa ordem define o que deve ser verificado no exame médico militar e como avaliar a aptidão do soldado.
Tsekhmister explica que os médicos militares só confiam em documentação oficial, porque muitos homens fingem transtornos mentais para escapar da convocação.
“Se um advogado tivesse sido procurado mais cedo e provas mais recentes tivessem sido apresentadas, Vasyl não teria sido convocado”, disse o advogado.
Milhares de reclamações sobre a mobilização
No fim de 2024, a ativista de direitos humanos ucraniana Olha Reshetylova foi nomeada como ouvidora militar pelo presidente Volodimir Zelenski para que soldados e suas famílias tivessem como denunciar violações de direitos.
Reshetylova recomenda que cada cidadão atualize seu próprio histórico médico no sistema Helsi e junto ao Exército, pontuando que a saúde mental dos recrutas pode piorar durante o treinamento básico. Ela disse à DW que, de modo geral, oficiais superiores não aceitam pessoas com transtornos mentais em suas unidades e, por isso, costumam encaminhá-las para tratamento quando necessário.
No entanto, desde o início deste ano, houve mais de 2 mil denúncias de violações de direitos humanos durante a convocação de civis ao serviço militar, segundo Dmytro Lubinets, comissário de direitos humanos do Parlamento ucraniano. Em 2024, foram 3,5 mil no total.
Embora nem todas as reclamações sejam justificadas, a ouvidoria sempre responde aos denunciantes, afirmou Lubinets. “Há casos em que meus representantes locais vão até a junta militar para ajudar os cidadãos a defender seus direitos. Graças às nossas intervenções, pessoas doentes foram dispensadas do Exército”, defende.
Ele reconhece, porém, que muitas vezes funcionários militares ignoram documentos médicos e recrutam pessoas com histórico de transtornos mentais.
Exame médico é “formalidade”
À DW, um comandante de brigada ucraniano contou que há casos de recrutas com outros problemas de saúde que são apontados ao serviço militar.
“Eu até tive o privilégio de escolher meus próprios homens”, relatou. “Mas alguns chegaram sem dentes ou tinham tuberculose, até mesmo no centro de treinamento”, disse.
Kyrylo, que também preferiu não revelar o nome real, é outro recruta convocado no início deste ano. Ele conta que, na junta militar, viu pessoas em situação de rua com as pernas inchadas, usuários de drogas e alcoólatras. O exame médico costuma ser apenas uma formalidade e, em alguns lugares, nem chega a acontecer, contou ele. Só no centro de treinamento é feito um exame mais detalhado.
Outro soldado que também preferiu permanecer anônimo disse ter visto até pessoas com epilepsia sendo convocadas. Esse tipo de recrutamento fez com que, em 2024, um homem com esquizofrenia fosse designado a uma brigada de fuzileiros navais, conta. Mas a condição do recruta ficou clara rapidamente. “Não deram armas para ele e o mandaram embora depois de alguns dias”, disse o soldado.
Problema se repete
O advogado Yevhen Tsekhmister aponta que este não é um caso isolado.
“Um soldado de 1,75 metro de altura, pesando 38 quilos, com visão fraca, deficiência de desenvolvimento e deformidade no tórax não consegue nem andar nem respirar com um colete à prova de balas”, conta o advogado sobre outro caso. “Mas ele está no Exército desde 2022. Vive sendo transferido de uma unidade para outra ou para hospitais, recebendo cuidados básicos.”
Como nenhum desses problemas isoladamente o torna inapto, ele não pode ser dispensado por motivo de saúde. Na prática, os comandantes não podem dar “tarefas reais” a esses soldados, nem podem liberá-los.
O problema afeta principalmente as tropas terrestres e serviços de logística, que se tornaram uma espécie de “depósito” para pessoas com problemas de saúde, explica Tsekhmister.
Um perigo para si mesmos e para os outros?
O Comando Médico das Forças Armadas da Ucrânia, responsável pelo suporte médico aos soldados, garante que os procedimentos estão sendo feitos da maneira correta.
“As avaliações médicas militares são baseadas nos diagnósticos feitos por especialistas”, afirmou Yuriy Podolyan, coronel e vice-comandante do Comando Médico, em resposta à DW.
Podolyan também disse que a Ordem nº 402 do Ministério da Defesa está de acordo com a lei local e os padrões internacionais. Contudo, ele reconhece que o regulamento militar não contempla declarar alguém inapto somando ou considerando diversos problemas de saúde em conjunto.
A ouvidora militar Reshetylova pensa diferente. Ela acredita que o fato de não ser possível uma avaliação combinada mostra que algo precisa ser revisto.
Quanto a Vasyl, seu treinamento básico está quase no fim e logo ele será designado para uma unidade. O advogado Tsekhmister está tentando conseguir uma nova avaliação psiquiátrica feita por médicos militares para o jovem. De acordo com sua companheira Olena, o soldado hoje tem acesso a armas.
“Se ele acabar na linha de frente, será um perigo para toda a unidade”, alerta Tsekhmister. “Não há como prever quando a saúde mental dele vai falhar ou quem pode ser alvo disso.”