30/06/2025 - 10:41
Programa Kuntari Katu prepara jovens indígenas para participarem das negociações da COP30, em Belém. Em entrevista à DW, eles contam o que esperam do futuro.Um grupo de jovens indígenas está sendo treinado pelo governo brasileiro para atuar diretamente nas decisões climáticas da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2025, a COP 30, em Belém. Por meio do programa Kuntari Katu – Líderes Indígenas na Política Global, esses jovens unem saberes ancestrais e formação diplomática com o objetivo de ocupar, pela primeira vez, as mesas formais de negociação da ONU.
“Kuntari Katu vem das línguas Nheengatu e Tupi, e significa aquele que fala bem”, explica a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara. “Por mais que a gente tenha aumentado a delegação indígena no âmbito das COPs, ela ainda se restringe a eventos paralelos. Isso me levou a pensar em uma formação para um grupo de indígenas que fosse focar somente nos espaços das negociações.”
Fruto de uma parceria entre o Ministério dos Povos Indígenas (MPI), o Itamaraty e o Instituto Rio Branco, o programa selecionou 31 jovens de todos os biomas brasileiros. Desde agosto de 2024, eles participam de uma rotina intensa de aulas online e presenciais em Brasília, mentorias individuais e cursos de inglês – idioma oficial das negociações climáticas.
Além da formação teórica, os jovens têm participado ativamente de eventos internacionais. Já estiveram na COP da Biodiversidade, em Cali, na Colômbia, naCOP29, em Baku, no Azerbaijão, e em junho acompanharam areunião preparatória da COP30 em Bonn, na Alemanha, onde se envolveram em debates sobre mitigação, adaptação, financiamento, transição justa, créditos de carbono, entre outros temas.
“O Acordo de Paris, em 2015, já reconheceu o saber indígena como um conhecimento científico”, diz a ministra. “Então, termos indígenas indígenas preparados nesses diversos temas, qualificados para fazer essa incidência é muito importante para que, de fato, essa participação seja efetiva e não somente apareça nos tratados.”
Para muitos participantes, ingressar no programa significou deixar a aldeia, a família e trabalho para mergulhar em uma rotina intensa de estudos e compromissos. Em entrevista à DW, eles compartilharam suas histórias e desejos para o futuro.
Um Brasil que reconheça a importância dos indígenas
Para Aylla Monteiro de Oliveira, do povo Kapinawá, o Brasil e o mundo precisam reconhecer a importância dos povos indígenas para caminhar não só na pauta ambiental, mas em tudo que está acontecendo nos espaços de decisão atualmente.
“Falta levar em consideração hoje que a gente já faz as nossas políticas internas, os nossos modos de cuidar e de cultivo”, afirma Aylla. “Nesses espaços de negociação, o maior desafio é justamente o sentimento de não pertencimento, porque realmente não foi nada construída para nós ou pensado em nós.”
Vinda do interior de Pernambuco, a trajetória de Aylla mostra importância de ocupar historicamente espaços negados aos povos indígenas. Aos 25 anos, além de ser primeira de seu povo a se graduar em direito, ela é a primeira indígena da Universidade de Pernambuco e a primeira indígena no mestrado que está cursando atualmente.
“A entrada no direito foi uma necessidade que o meu povo percebeu”, conta Aylla. “O meu território foi demarcado na década de 1980, mas não foi demarcado completo. Então, até hoje temos muitos conflitos nessa área que ficou de fora.”
Foi durante o primeiro ano da graduação que ela descobriu um projeto para instalação de 70 torres eólicas dentro do seu território – sem consulta prévia à comunidade.A partir daí, mergulhou na pauta da transição energética justa e travou uma batalha judicial de três anos, que resultou, no início de 2025, na suspensão das licenças para o empreendimento.
“Se eu não tivesse na universidade e se eu não tivesse na área de direito não sei como teríamos saído dessa”, conta Aylla. “A pauta da transição, a pauta ambiental não foi uma questão que eu escolhi, foi uma questão de necessidade, porque se não estamos lá, tem alguém que está decidindo pela gente.”
Um país preparado para a adaptação
Durante o programa, cada participante escolheu um tema das negociações para se aprofundar – entre eles, perdas e danos, mitigação, financiamento, gênero e transição justa. Para Bekwikako Paiakan Oliveira Kaiapó, de 21 anos, a escolha foi pela adaptação àsmudanças climáticas, com base nos impactos que já afetam diretamente seu povo.
“Eu achava que o que era discutido nesses eventos era muito distante, mas não. São coisas que a gente realmente sofre todo o ano”, afirma Bekwikako, do povo Kayapó, no Pará. “A cada temporada de verão no meu território, o rio seca absurdamente, todos os peixes morrem e isso afeta todo nosso meio de vida.”
Vinda de uma família de lideranças, ela sempre esteve engajada nas questões de seu território e consequentemente nas discussões climáticas. A jovem vê o curso como uma oportunidade de se especializar e ajudar o seu território, assim como outros povos, a enfrentar as crises climáticas.
“A adaptação é uma pauta totalmente necessária hoje no Brasil”, diz Bekwikako. “A gente sabe que o mundo vai continuar esquentando, então precisamos nos adaptar da melhor forma para enfrentar essa crise climática.”
Estudante de gestões de políticas públicas em Brasília, ela conta que está sendo um desafio conciliar a graduação com as aulas do curso. Já nas atividades práticas, como em Bonn, a principal dificuldade é a barreia linguística, pois nem todos os paneis dispõem de tradução simultânea. “O idioma é o principal desafio para nós”, diz a jovem. “Eu pessoalmente consigo ter um entendimento muito bom, mas às vezes os diplomatas falam de uma forma muito técnica e um pouco distante.”
Financiamento para quem protege o meio ambiente
Quando Lucas Ycard Marubo, do povo Marubo, no Vale do Javari, decidiu se candidatar para o processo seletivo do Kuntari Katu, ele já atuava ativamente com as questões indígenas no âmbito nacional, trabalhando como assessor indígena no Congresso Nacional.
“Entrei no Congresso Nacional na época do governo Bolsonaro, e minha função era fiscalizar a Funai através da liderança do Psol”, conta Lucas. “Com a mudança de governo, a atuação muda e ao invés de só reagir, a gente começa a propor. Então o que é ruim a gente fiscaliza e o que é bom a gente luta a favor para tentar aprovar dentro do Congresso.”
Agora, aos 25 anos, seu objetivo no curso é levar seu conhecimento na política nacionalpara o cenário internacional – e vice-versa. Nesse processo, ele percebeu que um dos principais avanços necessários é garantir financiamento climático direto para as organizações indígenas. “Se conseguirmos esse financiamento direto, permitiremos que quem sempre cuidou das florestas continue a cuidar com mais qualidade, e com mais responsabilidade”, diz Lucas.
Segundo a ONU, os indígenas representam 6% da população mundial e são responsáveis por proteger 80% da biodiversidade do planeta. Ainda assim, eles recebem menos de 1% do financiamento internacional para o clima.
“Não há como fazer uma proteção efetiva dos territórios do meio ambiente se não temos recursos para fazer esse trabalho”, afirma Sonia Guajajara. “Todo esse trabalho já é feito gratuitamente, mas é importante reconhecer o que os povos indígenas fazem.”
De lideranças locais a negociadores globais
Já atuando como lideranças em seus territórios, esses jovens agora entram na reta final para se tornarem negociadores indígenas no âmbito internacional. Até a COP30 a expectativa é que eles estejam preparados para participar ativamente das conversas em Belém.
“Na COP 30 realmente é onde a gente vai estar nas negociações, ali com os diplomatas, auxiliando, achando o que é melhor, tanto para nós como indígenas, como para outras pessoas, de outros povos, de outras regiões”, diz Bekwikako.
Com duração de 18 meses, o programa concluiu em maio os quatro módulos presenciais realizados no Instituto Rio Branco. A formação segue com aprofundamento individual nos temas escolhidos, apoio de mentores, e um quinto módulo virtual como preparação final para COP30. Há ainda a possibilidade de um módulo de avaliação após a conferência.
“Estamos em uma formação, mas que vai continuar”, afirma a participantes Maisangela da Silva Oliveira, do povo Sateré-Mawé. “A primeira turma do programa Kontari Katu vai abrir portas para futuras lideranças, futuros jovens que vão estar nesses espaços também. Que futuramente possamos ser também jovens diplomatas, comandando as discussões, as negociações.”