24/11/2025 - 17:29
Garantir saúde e segurança é obrigação de cidades, estados e governo federal. Mas coordenação entre diferentes autoridades na área de saúde costuma ser mais eficiente do que no combate ao crime.Está na Constituição: garantir saúde e segurança é um dever compartilhado entre cidades, estados e governo federal. Mas se na saúde o Brasil tem um bom grau de coordenação entre esses três níveis, na segurança o cenário é o inverso: falta clareza sobre quem faz o quê e há pouca articulação entre autoridades – algo que acaba beneficiando o crime organizado, que não obedece a fronteiras.
Esse contraste ficou mais evidente após a operação policial no Rio de Janeiro contra o Comando Vermelho. Sete governadores da oposição lançaram uma aliança sobre o tema sem a participação do Palácio do Planalto, e a Câmara encaminhou de forma atribulada o PL Antifacção.
O texto aprovado pelos deputados em 18 de novembro fala muito sobre aumento de penas e novos instrumentos de repressão ao crime, mas pouco sobre como prefeitos, governadores e ministros podem unir esforços para oferecer mais segurança aos cidadãos – como já fazem com a saúde por meio do Sistema Único da Saúde (SUS).
Em tese, o Brasil deveria ter também um Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), previsto desde 2018 em lei sancionada no governo Michel Temer, que ainda não saiu do papel. O atual governo Luiz Inácio Lula da Silva quer incluí-lo na Constituição, mas apenas isso não é garantia de que irá funcionar.
Entenda como funciona a coordenação entre diferentes níveis de governo no SUS, se esse modelo poderia ser aplicado à segurança e algumas das limitações.
Como funciona o SUS
A gestão dos serviços de atendimento de saúde é compartilhada entre:
governo federal, que define as políticas nacionais, fiscaliza e monitora sua aplicação e coordena programas, como o de vacinação.
governos estaduais, que participam da formulação das políticas e da prestação do serviço, como em hospitais estaduais.
governos municipais, que participam da formulação das políticas e são a principal porta de entrada para o SUS, por meio de postos de saúde e hospitais municipais.
É claro que há conflitos nesse sistema, mas suas regras e sua operação são discutidas de forma conjunta.
As regras são debatidas pelos conselhos de saúde, nos níveis municipal, estadual e federal. Eles são compostos por representantes dos governos, dos prestadores de serviço e dos usuários, têm caráter deliberativo e definem como o atendimento deve ser prestado.
Para discutir e resolver problemas práticos do dia a dia, como falta de especialistas em uma região ou problemas com a transferências de pacientes de uma cidade para o outra, há órgãos nos quais os gestores da saúde se reúnem, em geral uma vez por mês. São a comissão tripartite, formada por gestores dos níveis federal, estadual e municipal, e as comissões bipartites de cada unidade da federação, com gestores estaduais e municipais.
As estratégias são alinhadas em nível federal, como por exemplo a atuação dos agentes de saúde da família ou a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. E os dados do SUS, como atendimentos, doenças e exames, são integrados em um mesmo sistema, o DataSUS.
No quesito dinheiro, os três níveis são obrigados a gastar um patamar mínimo: municípios, 15% das receitas; estados, 12%; e União, o mesmo valor do ano anterior adicionado da variação nominal do Produto Interno Bruto (PIB).
O elo mais forte do SUS são os municípios. Em 2023, eles foram responsáveis por 42% das despesas em saúde, seguidos pelo governo federal, com 30%, e os estados, com 28%.
Como é na segurança pública
Em linhas gerais, cabe à:
Polícia Federal investigar e reprimir crimes com repercussões interestaduais e internacionais, tráfico de drogas e envolvendo as fronteiras.
Polícia Militar prevenir e reprimir crimes e à Polícia Civil investigar.
Guardas municipais participar do policiamento comunitário e proteger o patrimônio municipal.
Mas não há um sistema único no qual a responsabilidade de cada ente federativo seja discutida e definida. Também não há conselhos deliberativos para definir a política nacional – apenas dois conselhos consultivos –, nem comissões de gestores que se reúnam periodicamente para resolver problemas práticos.
Às vezes, polícias militares e civis de diferentes estados e a Polícia Federal agem de forma conjunta para apurar e reprimir o crime organizado, com o apoio de outros órgãos como a Receita Federal, o Coaf e o Ministério Público. Mas essa cooperação é estabelecida caso a caso. Foi o que ocorreu na Carbono Oculto, que desvendou esquemas de lavagem de dinheiro e ocultação de patrimônio do Primeiro Comando da Capital (PCC) envolvendo inclusive fintechs sediadas na Faria Lima, em São Paulo.
Também não há um sistema de informações integrado. Cada estado pode adotar seu sistema próprio e sua terminologia para o registro de ocorrências – o que pode fazer com que a mesma conduta seja registrada de forma diversa a depender do local. Em 2012, o governo federal criou o Sistema Nacional de Informações e Estatísticas de Segurança Pública (Sinesp), mas a adesão é voluntária e até o momento há apenas 14 estados totalmente integrados ao sistema.
Em relação aos recursos, não há um gasto mínimo legal com segurança pública, cada ente decide quanto quer investir. Os estados têm, disparado, o maior peso na área, respondendo por cerca de 80% dos gastos – mas comparações entre os estados são difíceis, pois cada um também adota uma metodologia própria. O governo federal gasta cerca de 13% dos recursos, incluindo de fundos nacionais de segurança e penitenciário, e os municípios respondem pelos demais 7%.
Sem coordenar, mais difícil resolver
As ações contra o crime organizado variam de acordo com as autoridades envolvidas. A operação do Rio de Janeiro contra o Comando Vermelho, por exemplo, não teve a participação de órgãos federais, apesar de a facção estar presente em vários estados do país.
Ursula Dias Peres, professora de gestão de políticas públicas da EACH-USP e pesquisadora do Centro de Estudos da Metrópole (CEM), afirma que a ausência de uma política nacional de segurança pública efetiva dificulta que os governos federal e estaduais atuem de forma coordenada para combater o crime organizado. “Não há uma pactuação entre as três esferas, e muitas vezes não tem uma pactuação dentro do próprio estado”, afirma.
A falta de um sistema de informações unificado também é um problema. “Se não tem integração de informações, não tem sistematização de protocolos, programas e ações, até para que a gente possa ter uma sistematização de qual recurso está financiando o quê, como é que a gente compara o que está sendo feito?”, questiona.
O sociólogo Luis Flávio Sapori, professor da PUC Minas e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) aponta que, na prática, o país não tem hoje uma política nacional de segurança pública. “Existe uma lei, mas uma política concreta, com projetos visíveis, não. O governo federal tem seus planos, mas muitas vezes são iniciativas isoladas, de órgãos distintos que não conversam entre si, sem organicidade dessas ações, porque não tem o plano estratégico definido.”
Colocar na Constituição ajuda?
A PEC da Segurança Pública, proposta pelo Palácio do Planalto, inscreve o SUSP na Constituição e atribui ao governo federal a competência para definir a política nacional de segurança pública, ouvindo os secretários de segurança estaduais.
A proposta também amplia a competência da Polícia Federal e estabelece que recursos dos fundos de segurança pública não poderiam ser bloqueados durante cortes orçamentários.
Após governadores de oposição criticarem o texto, afirmando que ele iria interferir na autonomia sobre suas polícias, a proposta foi alterada para estabelecer expressamente que isso não irá ocorrer.
Mas seguem os questionamentos sobre a competência do governo federal para definir a política nacional. Um entrave que, para Sapori, poderia ser superado definindo que a política nacional será feita de forma conjunta com estados e municípios.
Mesmo assim, estar na Constituição não resolve, por si só, o problema, diz Peres. “Há avanços em você constitucionalizar o SUSP, mas isso não quer dizer que isso vai ser suficiente para garantir essa coordenação [entre as autoridades].”
Quais são as limitações
A ideia de que o SUS poderia servir de exemplo para a segurança pública é defendida por Sapori, que gostaria que o modelo de governança fosse ainda mais ambicioso do que o previsto na PEC em discussão.
Ele defende que o SUSP, como o SUS, tenha conselhos deliberativos compostos por representantes do governo federal, estados e municípios – no modelo atual, eles seriam apenas consultivos. E também comissões para que os gestores se reúnam periodicamente para discutir problemas práticos e soluções na aplicação da política nacional de segurança.
Sem a adesão dos governadores e de um consenso mínimo entre governo e oposição, no entanto, essa cooperação não irá para a frente, alerta Peres. “Há uma dimensão da disputa do protagonismo, e acho que nunca tivemos tantos governadores pré-candidatos à Presidência”, afirma.
“A ideia do SUS de ter essas câmaras de pactuação significa que os os atores do sistema estão disponíveis para pactuar. Se não há essa disposição, tudo fica muito difícil, porque parte dos governos estaduais se fecha dizendo que não vai seguir a coordenação da União.”
Outra dificuldade para ampliar a coordenação é o fato de o governo federal ter pouca participação no total de recursos destinados à segurança pública. No SUS, onde essa parcela é muito maior, o Ministério da Saúde condiciona a transferência de recursos à adesão e cumprimento de certas políticas. “O governo federal tem menos dinheiro para influenciar e coordenar”, diz Peres.
O professor Carlos Henrique Assunção Paiva, coordenador do Observatório da História e Saúde da Fiocruz, pontua que o sistema de governança do SUS está longe da perfeição e é sujeito a altos e baixos, mas avalia que faz sentido olhá-lo como uma referência para a segurança, observando as particularidades e não como um “corta e cola”.
Ele defende o modelo de conselhos deliberativos, no qual os três níveis da federação participam de definição das regras, mas pontua que o peso dado pelo SUS aos municípios torna a coordenação mais difícil, e defende maior protagonismo dos estados – em especial no caso da segurança, já que as polícias militar e civil são controladas pelos governadores.
“O SUS foi uma construção de décadas, no qual aos poucos os entes federados foram se ajustando nas ações, superando resistências e corporativismos. Acredito que o mesmo vá acontecer na área da segurança pública, com mais dificuldade porque o corporativismo das organizações policiais é muito intenso”, afirma Sapori. “Mas o Brasil precisa de alguma inovação institucional – do jeito que está, não dá.”
