10/08/2024 - 12:33
Criadas há cem anos, vilas olímpicas podem deixar legado urbanístico para as cidades-sede ou se transformar em “elefantes brancos”. Entre Rio, Londres, Atenas e Munique, veja o que aconteceu com algumas delas.Em 1924, quando Paris recebeu pela segunda vez uma edição dos Jogos Olímpicos, uma inovação foi introduzida na estrutura da competição: criou-se uma vila olímpica, um espaço comum em que os atletas poderiam se hospedar durante os dias de evento. Localizada no bairro de Colombes, nos subúrbios da capital francesa, a vila visava estabelecer um senso de comunidade e integração entre os atletas. Feita de cabanas de madeira, cada uma com três camas, foi desmontada após os jogos.
Em um século, muito mudou na história das vilas olímpicas, que agora são consideradas pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) um elemento fundamental para garantir a organização e o sucesso dos Jogos. Para as cidades-sede, tornaram-se também um sinônimo de legado pós-evento. Além de ser uma chance de promover econômica e turisticamente um local, podem transformar urbanisticamente regiões urbanas inteiras.
“Os Jogos foram crescendo em números de atletas, de esportes, e tudo isso foi gerando a necessidade de uma infraestrutura cada vez maior. Além disso, o evento passou a receber patrocinadores e viveu o efeito midiático”, diz a arquiteta Renata Latuf, que pesquisou o legado urbanístico dos jogos do Rio de Janeiro 2016 na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP).
Na era moderna, as cidades candidatas a acolher as competições estão descobrindo os megaeventos esportivos e seu potencial, e as estruturas pensadas para os Jogos Olímpicos permitem aos municípios promover sua imagem no mundo. “Os Jogos Olímpicos contribuem significativamente para deixar símbolos, monumentos e patrimônios nos locais que sediam o evento”, explica Valerio della Sala, pesquisador do Centro de Estudos Olímpicos da Universidade Autônoma de Barcelona.
De acordo com Della Sala, há três tipos de legado urbano que os Jogos Olímpicos podem deixar: renovação das áreas existentes, construção de novas zonas urbanas e melhoria das redes de infraestrutura, como a de transporte. “O objetivo do COI é incentivar a criação de um lugar mais atraente para se viver nas cidades, com melhor qualidade de vida, por meio da melhoria das condições espaciais.”
Ao longo da história, há projetos de vilas olímpicas considerados modelo de transformação urbana, caso de Barcelona, na Espanha, e Munique, na Alemanha. Por outro lado, podem resultar em estruturas abandonadas, como aconteceu com as dos Jogos de Berlim 1936, ou a processos de gentrificação, a expulsão de moradores para transformação de bairros periféricos em áreas nobres, destinadas à especulação imobiliária.
Pelo menos três das quatro sedes dos últimos eventos enfrentaram críticas sobre processos de gentrificação. Londres, em 2012, Rio de Janeiro, em 2016, e agora Paris, em 2024, colocam em questão a capacidade das cidades de usarem os Jogos e suas vilas para criar um legado habitacional.
Vilas viraram infraestrutura fundamental dos Jogos
Para participar dos Jogos Olímpicos na Grécia Antiga, os atletas viajavam até a cidade de Élida, onde permaneciam por um mês antes das competições, para concluir os treinamentos. De lá, subiam para o santuário de Olímpia, a cerca de 60 quilômetros, para competir. Essa reunião é considerada o princípio da ideia de comunidade, que em 1924 mobilizou o cofundador do COI Pierre de Coubertin (1863-1937) a instituir as vilas olímpicas modernas.
Nas primeiras edições dos Jogos Olímpicos modernos, entre 1896 e 1920, os atletas ficaram hospedados em hotéis, casas de famílias, barcos ou prédios militares. Paris 1924 deu o pontapé para uma nova concepção de vilas, mas elas só se transformaram em construções para serem utilizadas após os Jogos quase três décadas depois. Nos Jogos de Amsterdã, Holanda, a criação de uma vila temporária foi cogitada, mas não se concretizou. Em 1932, em Los Angeles, o conjunto de habitações tinha capacidade para 2 mil atletas, mas foi projetado para ser temporário.
Foi a partir da edição de Helsinque, na Finlândia, em 1952, que as vilas passaram a ser estruturas permanentes. Foram construídos 13 prédios com 545 apartamentos, que se transformaram em área residencial. Desde então, pelo menos 13 cidades-sede utilizaram as infraestruturas das vilas para transformar em moradia, pública ou privada, de acordo com um levantamento feito pela DW nos documentos do Centro de Estudos Olímpicos do Comitê Olímpico Internacional (COI).
A arquiteta Renata Latuf explica que foi o exemplo de Barcelona, em 1992, que projetou o desejo das cidades e países de usarem as vilas olímpicas como legado urbanístico para as cidades. Na metrópole catalã, os Jogos se transformaram num catalisador de uma renovação urbana da orla marítima, tendo a vila como eixo central das mudanças.
“As diferentes experiências de vilas olímpicas na edição de verão dos Jogos assumiram uma forma que foi incluída nas estratégias centrais das metrópoles anfitriãs”, destaca Della Sala.
Em parceria com incorporadoras privadas e arquitetos, o Comitê Organizador de Barcelona criou uma nova área residencial perto do centro e também da praia, que se converteu em moradia e também hotéis, bares, restaurantes, parques e outras áreas públicas.
“Até então, o COI estava enfrentando alguns problemas em termos de cidades interessadas em receber os Jogos. Depois de Barcelona, o número explode”, conta Latuf. Segundo ela, entretanto, Barcelona foi exitosa porque incorporou a vila num planejamento urbano que durou duas décadas e considerou o período pós-olímpico.
“A consideração do legado urbano deve ser adicionada ao planejamento contínuo das cidades-sede, reduzindo o risco de projetos efêmeros e a produção de estruturas obsoletas na fase pós-olímpica”, complementa Della Sala.
A vila olímpica assumiu diferentes funções urbanas ao longo da história e teve uso temporário ou permanente. Nas edições de verão dos Jogos, com exceção das primeiras e das realizadas nos Estados Unidos, o modelo de acomodação permanente foi o mais utilizado. Já nas edições de inverno, as acomodações temporárias foram preferidas. No pós-jogos de verão, a maioria das vilas passou a ser utilizada como espaços de moradia, enquanto nos Jogos de Inverno se converteram em hotéis e complexos turísticos.
“Em Oslo, Roma, México, Grenoble, Munique, Barcelona, Sydney, Turim, Vancouver e Londres, vimos como as vilas olímpicas permanecem como um patrimônio ativo e dinâmico que continua a ser transformado pelas estruturas da cidade”, afirma Della Sala.
Para que isso aconteça, explica, é preciso que o projeto seja feito considerando o futuro das cidades e não apenas as necessidades imediatas dos Comitê Olímpico. “Somente levando em conta as necessidades reais dos cidadãos é que o projeto permanente poderá atender às expectativas da comunidade anfitriã.”
Exemplos de vila que deram certo no pós-jogos
Munique, 1972
Construída no distrito de Milbertshofen-Am Hart entre setembro de 1969 e julho de 1972, a vila olímpica tinha capacidade para 12 mil atletas e contava com 1940 apartamentos e 2.780 estúdios. Desde o princípio, a ideia era que o espaço fosse destinado a vendas após os jogos. Ela era dividida em três zonas principais: dos homens, das mulheres e uma central, onde ficavam os serviços, incluindo lojas, corte e costura, sapateiro, farmácia e banco.
Apesar de ter sido palco de um atentado, em 5 de setembro, que resultou em 17 mortes, a vila, junto às demais estruturas construídas para os Jogos, são utilizadas até hoje pela população. A vila está circundada por um parque com área verde, pista de patinação, ciclismo e anfiteatro, além de uma torre com 290 metros de altura que oferece uma vista panorâmica de Munique. A parte dos estúdios se converteu em acomodação estudantil.
Londres, 2012
A transformação da vila, com 69 prédios habitacionais, numa nova área residencial no leste de Londres é considerada um dos principais legados dos Jogos de 2012 para a cidade. Rebatizada de East Village, a região tem lojas, cafés e restaurantes, áreas de lazer e uma escola. O prédio usado como policlínica durante os Jogos, por sua vez, é um centro de saúde usado pela comunidade local, que também conta com uma infraestrutura de um parque público, o Parque Olímpico Rainha Elizabeth, e a estação de trem e metrô de Stratford, que se conecta às quatro áreas da cidade.
A organização não governamental London Legacy Development Corporation foi criada para gerir o legado dos Jogos. Desde 2012, ela estima que mais de 37 milhões de visitas e 100 eventos esportivos já foram realizados no local. O projeto, porém, foi questionado por transformar uma área industrial historicamente pobre e dominada por habitações sociais, onde viviam comunidades migrantes e negras, em bairro com aluguéis altos. O preço médio mensal de um apartamento de dois quartos na região atualmente é de cerca de 2.500 libras esterlinas (R$ 17 mil).
Exemplos de vilas que deram errado no pós-Jogos
Atenas, 2004
Construída com o objetivo de criar moradias sociais para mais de 10 mil moradores após o término dos Jogos, a vila tinha 2.292 apartamentos e ficava num município vizinho, 23 quilômetros distante de Atenas. Sob responsabilidade da Associação Grega de Habitação Social (OEK, sigla em inglês), ela foi emprestada ao Comitê Organizador para abrigar os atletas durante os Jogos, depois devolvida à associação.
Para criar variedade entre as centenas de edifícios que compunham a Vila, os arquitetos desenvolveram 19 tipos diferentes de habitações. Além dos serviços habituais, como correios, banco e cabeleireiro, a vila também tinha um achados e perdidos, três cibercafés, um anfiteatro e um salão de eventos.
Muitas famílias participaram de um sorteio para obter um dos apartamentos nesse novo bairro. Contudo, os planos de construção de infraestrutura de serviços, como escolas e um hospital no local, não foram implementados. Muitas lojas da área fecharam. Atualmente, a antiga vila está subocupada e não atingiu os objetivos estabelecidos de desenvolvimento urbano da região.
Rio de Janeiro, 2016
A vila olímpica do Rio de Janeiro 2016 foi construída pela iniciativa privada, numa parceria da construtora Carvalho Hosken e a Odebrecht, e era composta por 31 edifícios divididos em sete setores e 3.604 apartamentos, com capacidade para 18 mil atletas.
Em entrevista ao jornal The Guardian, em agosto de 2015, o então único acionista do projeto, Carlos Carvalho, afirmou que a Barra da Tijuca, onde está construída a vila, deveria ser “uma cidade da elite, de bom gosto”, dando o tom do que se almejava com as habitações ao fim dos jogos.
Conhecido como Vila dos Atletas durante os jogos, o empreendimento faz parte do complexo imobiliário Ilha Pura, classificado pela própria construtora como um condomínio de alto padrão.
Como conta Renata Latuf em sua tese de doutorado, os habitacionais já foram construídos sob polêmica, com flexibilização da legislação urbanística para permitir torres mais altas e a ausência de um plano que destinasse parte dos imóveis à habitação social, para cidadãos de baixa renda. Na construção do Parque Olímpico inteiro, houve ainda a desapropriação e remoção de moradores da favela de Vila Autódromo.
Os apartamentos começaram a ser vendidos logo após os Jogos, a cerca de R$ 2 mil acima da média do metro quadrado na região. Após três anos, só 15% dos apartamentos haviam sido vendidos. Atualmente, 1.100 imóveis vendidos e ocupados, ou seja, 30% do total.
Apenas três dos sete prédios previstos no projeto, ao fim, foram construídos. Em maio, anúncios vendiam apartamentos de quatro suítes por R$ 1,3 milhão. “A vila funcionou bem na época dos Jogos, mas em termos de legado é zero, pois repete um modelo de edificação que não contribui para integração com a cidade. É mais um condomínio fechado, segregado e excludente”, afirma Renata Latuf.
Em junho de 2024, o banco BTG Pactual comprou o empreendimento. A expectativa é que as vendas sejam retomadas no fim de setembro. Há negociações em curso para a construção de uma escola e um supermercado, que se somariam à estrutura de um shopping para trazer o comércio à região.