15/11/2025 - 10:56
Problemas hormonais, micropênis, distúrbios psiquiátricos: novo documentário sobre Adolf Hitler tira conclusões sobre ditador a partir de análise de DNA. Por que essa abordagem é problemática?Um novo documentário sobre Adolf Hitler está causando polêmica. E não por expor fatos sobre a saúde do ditador nazista, mas por tentar explicar o comportamento dele a partir de uma análise do seu material genético.
Produzido pela emissora britânica Channel 4, Hitler’s DNA – Blueprint of a Dictator (“O DNA de Hitler – Projeto de um Ditador”, em tradução livre) estreia neste sábado (15/11) no Reino Unido.
Hitler tinha síndrome de Kallmann?
Segundo a análise de DNA que embasa a obra, Hitler era portador da síndrome de Kallmann, uma doença genética que leva à queda na produção de hormônios sexuais. As consequências são puberdade tardia ou precoce, baixos níveis de testosterona, um olfato subdesenvolvido, criptorquidia – quando um ou ambos os testículos não descem e ficam fora do saco escrotal – e uma maior probabilidade de ter um micropênis ou outras anomalias nos genitais.
As falhas anatômicas de Hitler já foram motivo de troça de soldados britânicos em 1939, com a canção Hitler Has Only Got One Ball (“Hitler só tem um testículo”, em tradução livre).
As conclusões da análise de DNA do documentário do Channel 4 coincidem com informações do prontuário médico de Hitler no presídio de Landsberg, onde ele foi preso em 1923 após uma tentativa fracassada de golpe. À época, o médico da prisão o diagnosticou com “criptorquidia no lado direito” – ou seja, um testículo que não havia “descido” para a posição correta.
Além disso, o ditador passou a receber, a partir de 1944, injeções regulares de testosterona, prescritas pelo seu médico de confiança, Theodor Morell – outro indicativo de que ele poderia sofrer com a síndrome de Kallmann.
Distúrbios psiquiátricos?
O documentário também afirma que o DNA de Hitler sugere alta probabilidade para uma série de condições psiquiátricas: Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), autismo, esquizofrenia e uma inclinação para comportamentos antissociais.
De fato, a possibilidade de que Hitler tivesse um transtorno psicológico ou “instabilidade mental” tem amparo em fontes comprovadas e observações de testemunhas.
Em seu livro A First-Rate Madness (“Loucura de primeira classe”, em tradução livre), o psiquiatra iraniano-americano Nassir Ghaemi, que leciona na Tufts University School of Medicine e na Harvard Medical School, analisou a “instabilidade mental” em grandes políticos da história – de Abraham Lincoln a Winston Churchill. Hitler foi o único exemplo negativo citado por Ghaemi.
À DW, o psiquiatra diz considerar as análises de DNA “cientificamente fundamentadas” e afirma estar convencido de que o líder nazista sofria de transtorno maníaco-depressivo.
“Traços maníacos aumentam a criatividade e a resistência; sintomas depressivos elevam a empatia e o realismo – todos pontos fortes para líderes. Essas qualidades de liderança podem ser usadas em qualquer orientação política, seja autocrática e tirânica, como no caso de Hitler, ou democrática, como em Churchill”, afirma Ghaeni, que não participou do documentário.
Segundo Ghaemi, a “instabilidade psicológica” de Hitler teria se agravado a partir de 1937 devido à administração diária de anfetaminas por via intravenosa para tratar suas depressões – avaliação também confirmada por fontes históricas.A possibilidade de Hitler ter sofrido da síndrome de Kallmann poderia, segundo Ghaemi, explicar “por que, ao contrário da maioria das pessoas com traços maníacos, ele aparentemente não tinha alta libido sexual, embora apresentasse muitos outros sinais maníacos, como loquacidade, grande energia física, pouca necessidade de sono e autoestima exagerada”. Mas esses são indícios, não provas.
Análise não permite conclusões seguras
Naturalmente, tais avaliações e os novos achados médicos podem ajudar a compreender melhor a mente de Hitler. Mas não é possível atribuir comportamentos individuais apenas com base em análises genéticas e nos chamados “Testes de Pontuação de Risco Poligênico” (PRS), que estimam o risco genético para determinada doença.
A manifestação de transtornos psicológicos resulta sempre da complexa interação entre genética, ambiente, história de vida e experiências individuais. Testes genéticos não permitem diagnosticar doenças mentais; para isso, é necessária uma avaliação detalhada baseada em sintomas, contexto social e entrevistas com a pessoa afetada.
Os próprios geneticistas e psicólogos envolvidos no documentário reconhecem que não é possível tirar conclusões apenas com base em um risco elevado identificado por análises de DNA – mas, ainda assim, especulam sobre possíveis diagnósticos ou padrões de comportamento.
Essa atitude agora coloca a geneticista e arqueóloga canadense-britânica Turi King em uma posição delicada. Ela, que ficou famosa pela análise de DNA dos restos mortais de Ricardo 3º (1452-1485), é professora de Engajamento Público e Genética na Universidade de Leicester e foi convidada pela produção a participar do documentário.
Por pressão da produtora, King acabou concordando em expor suas conclusões sobre o DNA de Hitler sem submetê-las antes ao crivo de outros cientistas – o chamado processo de revisão por pares, padrão na ciência. Por causa disso, sua reputação acadêmica agora está em jogo.
Boato desmentido: Hitler não era judeu
O documentário britânico, ao menos, conseguiu desmentir um mito persistente sobre Hitler: o que o nazista supostamente teria ascendência judaica.
O boato foi reforçado em 2022 pelo ministro russo do Exterior, Serguei Lavrov, que alegou que Hitler teria um avô judeu.
De onde saiu a amostra de DNA de Hitler?
O material de DNA que embasou as análises veio, segundo a produção do documentário, de manchas de sangue no sofá em que Hitler se suicidou com um tiro, em 30 de abril de 1945, dentro de seu bunker.
Acredita-se que um pedaço do estofado do sofá teria sido recolhido como souvenir pelo coronel Roswell P. Rosengren, oficial de imprensa do exército americano. A relíquia está hoje exposta no museu militar de Gettysburg, no estado americano da Pensilvânia. (A história é plausível: há fotos de Hitler e do sofá, e de soldados russos e americanos cortando pedaços da mobília.)
O que é problemático, contudo, é como a equipe do documentário legitima suas amostras: a produção afirma que a autenticidade do DNA foi comprovada mediante comparação com amostras conhecidas de parentes de Hitler. Mas que parentes? Esta pergunta fica sem resposta, assim como a dúvida sobre se esses parentes ainda vivos autorizaram o procedimento.
Banalização de condições psiquiátricas
Os pesquisadores envolvidos na produção do documentário também estavam cientes de que associar autismo ou TDAH a Hitler, um ícone do mal, é altamente problemático. Pessoas com condições psiquiátricas podem acabar estigmatizadas e associadas a um genocida.
Além disso, se Hitler é patologizado como “louco”, há o risco de que seu comportamento desumano seja justificado por uma predisposição genética e, assim, minimizado.
Ghaemi reconhece que “essa é uma preocupação constante de alguns cientistas e ativistas alemães”, mas frisa que declarações sobre o estado de saúde de Hitler “não têm qualquer influência sobre sua responsabilidade moral por seus crimes”: do ponto de vista moral e legal, ele não era um “incapaz” e foi responsável por suas ações.
DNA de Hitler e o mito da ‘raça ariana’
Ironia da história: segundo as próprias leis nazistas, Hitler seria considerado “doente hereditário” e “indigno de viver”, tornando-se vítima dos programas de eutanásia que ele mesmo instituiu.
A “doutrina racial” nazista afirmava que o destino humano está no sangue. “A capacidade de tomar decisões positivas ou negativas é um traço de caráter determinado pelo sangue”, escreveu Hitler em seu livro Minha Luta.
Assim, a pureza do sangue permitiria ao indivíduo tomar decisões “corretas” e fortaleceria a coesão de uma nação. Em contrapartida, a mistura de sangue por meio da “miscigenação racial” levaria a ações “ilógicas” e levaria as civilizações à ruína – a mesma à qual, coincidência ou não, Hitler conduziu grande parte do mundo.
