De Gaza partiram os terroristas do Hamas que cometeram atrocidades em Israel. Agora, território palestino superpopuloso e empobrecido vem sendo alvo de “cerco total” e intensos bombardeios retaliatórios.Grupos de direitos humanos descrevem o território como “a maior prisão a céu aberto do mundo”: forças militares de Israel afirmam tratar-se de um “ninho de terroristas”: a Faixa de Gaza está novamente no centro de tensões entre palestinos e israelenses.

Foi desse empobrecido e superpopuloso território, ligeiramente maior que a área da cidade brasileira de Fortaleza, que terroristas do grupo fundamentalista islâmico Hamas lançaram em 7 de outubro de 2023 uma ofensiva sem precedentes contra Israel, cometendo atrocidades contra a população civil, chacinando mais de mil, inclusive mulheres e crianças, e sequestrando mais de uma centena.

Desde então, Israel respondeu com uma intensa campanha de bombardeios retaliatórios. Foram mais de mil incursões aéreas contra alvos na Faixa de Gaza em quatro dias. Israel afirma que tem atingido instalações de operação do Hamas, mas os contra-ataques também têm cobrado um preço alto da população civil.

Segundo autoridades de saúde local, mais de mil palestinos morreram em decorrência dos bombardeios nos primeiros dias da campanha aérea. Israel também tem concentrado milhares de tropas na fronteira com Gaza, sinalizando uma potencial invasão por terra.

Espremido, superpopuloso e dependente

Uma faixa de apenas 41 quilômetros de comprimento e seis a 12 quilômetros de largura, Gaza está espremida entre Israel, Egito e o Mar Mediterrâneo. É lar de pouco mais de 2 milhões de palestinos.

Muitos vivem concentrados em áreas urbanas, como a Cidade de Gaza. Metade dessa população é registrada como refugiada por agências da ONU. Alguns vivem há gerações em campos de refugiados e são descendentes de palestinos expulsos do território que atualmente compõe Israel.

O território também é separado geograficamente da Cisjordânia, o outro território palestino, maior e mais populoso, mas com uma densidade urbana menor que a de Gaza, e que permanece sob ocupação militar direta de Israel. Já Gaza é cercada por barreiras de segurança desde que os israelenses deram por encerrada a ocupação militar da área em 2005.

Com uma alta de fertilidade, a população de Gaza viu sua população crescer em cerca de um quarto em pouco mais de dez anos. Quase metade tem menos de 18 anos, cerca de 99% é muçulmana.

Há poucos recursos naturais disponíveis na área: dois terços da eletricidade consumida no território é fornecida por Israel, o restante é produzido por uma termoelétrica, também dependente da passagem de combustível por território israelense. Situação parecida ocorre com a água, com Israel controlando a maior parte do fornecimento. Boa parte das fontes locais está poluída por causa da falta de infraestrutura de esgoto. Com todos esses problemas, na década de 2010 a ONU chegou a estimar que Gaza poderia se tornar “Inabitável” a partir dos anos 2020.

Por outro lado, alguns índices sociais são razoáveis. A alfabetização chega a 97%, graças em grande parte a escolas administradas pela ONU e ajuda humanitária fornecida por diversos países, também europeus, na forma de pacotes de cooperação e desenvolvimento que somam anualmente centenas de milhões de euros. A expectativa de vida é de 75,66 anos.

Terra de ocupações e violência

Parte do antigo Império Otomano desde 1917, a região passou para o domínio do Reino Unido, como parte de toda a Palestina Britânica, e permaneceu assim até 1947, quando as Nações Unidas aprovaram um plano de partilha de toda a Palestina entre judeus e palestinos. Mas as nações árabes vizinhas e os palestinos rejeitaram o plano, levando à eclosão da primeira guerra árabe-israelense, em 1948.

O novo Estado de Israel venceu o conflito e, além de ficar com o território alocado pelo plano estabelecido pela ONU, também capturou uma parte significativa daquele que seria reservado para os palestinos. Isso resultou na expulsão de centenas de milhares de árabes do atual território israelense. Muitos foram para Gaza, no que ficou conhecido entre os palestinos como “Al-Nakba”, ou “catástrofe”.

A Faixa de Gaza não estava entre os territórios capturados. A partir de 1949, a região passou para o controle do Egito, que passou a administrá-la militarmente. E assim permaneceu por quase duas décadas.

Em 1967, foi a vez de Gaza ser capturada por Israel na Guerra dos Seis Dias, junto com a Cisjordânia e Jerusalém Oriental (administradas pela Jordânia), a península do Sinai (parte do Egito) e as colinas do Golã (Síria).

Após a eclosão da Guerra do Yom Kippur, em 1973, quando Israel foi surpreendida por um ataque militar sírio-egípcio, o Egito conseguiu recuperar o Sinai por meio de negociações diplomáticas, mas Gaza permaneceu sob controle israelense, e os egípcios não fizeram questão de voltar a administrar a área habitada por palestinos

Nessas décadas de ocupação militar direta, Israel construiu assentamentos em Gaza e transferiu milhares de colonos para a área já habitada por mais de 1 milhão de palestinos, mas em escala menor do que a observada na Cisjordânia ocupada.

Nesse período, Gaza também passou por uma espécie de boom econômico, ao ser integrada economicamente a Israel, país mais desenvolvido que o Egito, e com muitos palestinos passando a trabalhar em território israelense e mandando divisas para casa.

Mas a ocupação também era intolerável para os palestinos. Em 1987, no 20º aniversário da ocupação, eclodiu em Gaza e na Cisjordânia a Primeira Intifada, uma série de protestos que incluíram greves, boicotes e ataques às forças israelenses. O primeiro motim teve início justamente num campo de refugiados em Gaza, em dezembro de 1987. A revolta só acabou em 1991, após mais de 2 mil mortes, a maioria entre palestinos.

Entra em cena o Hamas

Mas o período da intifada também solidificou mudanças que já estavam em curso na postura de vários líderes israelenses e palestinos. O palestino Yasser Arafat, líder da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) começou a moderar seus objetivos e táticas, aceitando a existência de Israel e procurando recuperar a antiga solução dos dois Estados esboçada pela ONU décadas antes.

Em Israel, o premiê Yitzhak Rabin chegou a afirmar em 1992 que desejava que Gaza “afundasse no mar”. “Tente devolver [a Faixa de Gaza] aos egípcios, e eles dirão: 'Você está aprisionado a ela.' Eu gostaria que a Faixa de Gaza afundasse no mar, mas isso não vai acontecer, então é preciso encontrar uma solução.”

Rabin e Arafat passaram então a procurar um entendimento, que resultou nos Acordos de Oslo, em 1993. A partir de então, os israelenses se retiraram de várias urbanas de Gaza, delegando a administração para o grupo político de Arafat, sob o nome de Autoridade Nacional Palestina, numa primeira fase que muitos esperavam abrisse caminho para a formação de um Estado palestino.

Mas nem todos os palestinos e israelenses aceitaram esse acordo. Rabin acabou sendo assassinado por um extremista judeu em 1995. No lado palestino, um novo grupo, inicialmente fundado em 1987 em Gaza, mas que só começaria a ganhar proeminência anos depois, rejeitou o caminho adotado por Arafat e seus colaboradores políticos: o grupo se chamava Hamas. Seu objetivo: destruir Israel e formar uma Palestina unida em todo território sob regime fundamentalista islâmico.

Domínio do Hamas sobre Gaza

Em 2000, sob mediação dos Estados Unidos, os palestinos sob Arafat e os israelenses não conseguiram chegar a um novo acordo decisivo para encerrar o conflito que se arrastava há décadas. As divergências envolveram o status de Jerusalém, delimitação de território e o futuro dos assentamentos judaicos e dos refugiados palestinos.

Pouco depois, eclodiu a Segunda Intifada palestina, que teve como pretexto uma visita provocativa do ex-general e político linha-dura israelense Ariel Sharon ao complexo de mesquitas de Al-Aqsa (Monte do Templo), em Jerusalém.

Nessa Segunda intifada, o Hamas teria um papel proeminente, executando dezenas de atentados terroristas contra Israel. Devido à frustração com o fracasso das últimas conversações de paz, vários membros do grupo de Arafat também passaram a apoiar a estratégia do Hamas.

Originalmente um braço da Irmandade Muçulmana – movimento fundamentalista que surgiu no Egito nos anos 1920, e que também influenciou vários grupos terroristas no mundo, como a rede Al-Qaeda –, o Hamas acabaria por tomar o lugar de antigos grupos palestinos seculares, nacionalistas e marxistas que por décadas figuraram como os principais executores de ações terroristas contra Israel.

Em 2005, com Sharon ocupando o posto de primeiro-ministro de Israel, as últimas forças de ocupação resolveram deixar completamente Gaza e desmantelar seus assentamentos na área, evitando assim a continuidade de uma custosa e desgastante ocupação da área superpopulosa e passando a concentrar esforços de manutenção de partes da Cisjordânia e Jerusalém Oriental.

Ainda assim, Israel continua a controlar a costa e o espaço aéreo de Gaza, assim como a entrada de produtos, o que para organizações de direitos humanos é uma prova de que ocupação da faixa nunca terminou.

Histórico de bloqueios e guerras

Em 2006, assim como a Cisjordânia, Gaza foi palco de eleições legislativas, as primeiras desde a morte de Arafat. Em ambos os territórios palestinos, o pleito foi vencido pelo braço político do Hamas, popular entre eleitores fartos da corrupção e ineficiência da Autoridade Palestina, a essa altura chefiada por Mahmoud Abbas.

As duas facções rapidamente entraram em conflito, e os políticos do Hamas foram boicotados por diversos doadores internacionais. Mais de 600 palestinos morreram em Gaza nessa pequena guerra civil.

Em 2007, o Hamas tomou o poder sozinho em Gaza através de uma espécie de golpe de Estado, expulsando o grupo de Abbas. Desde então, o Hamas estendeu seu domínio sobre a faixa. Embora sem a declarar um califado ou Estado fundamentalista no papel, na prática impôs várias medidas nesse sentido, perseguindo minorias religiosas e a impondo códigos de vestimenta para as mulheres.

Desde que assumiu o controle total da faixa, o Hamas também se envolveu em três grandes guerras contra Israel, em 2008, 2014 e 2021. Em boa parte elas seguiram o mesmo padrão, com o Hamas lançando mísseis ou pequenas incursões em território israelense, que foram respondidas com pesados ataques aéreos.

Economia devastada por bloqueio egípcio-israelense desde 2007

A tomada do poder pelo Hamas também teve consequências econômicas devastadoras para Gaza. Em 2007, Israel e Egito – que também se opõe ao Hamas – instituíram um bloqueio econômico e de circulação ao redor de Gaza, praticamente fechando o enclave para o mundo.

É por isso que algumas organizações de direitos humanos, como a Human Rights Watch, já se referiram a Gaza como a “maior prisão a céu aberto do mundo”. Desde sua retirada unilateral de Gaza em 2005, Israel também mudou suas táticas, aprimorando a cerca e as barreiras que separam a área de Israel e lançando ataques aéreos retaliatórios a cada ação do Hamas. A última invasão por terra ocorreu em 2014, com um saldo de mais de 2 mil palestinos mortos, mas também resultou em que Israel evitasse esse tipo de estratégia.

Com o bloqueio egípcio-israelense, o setor manufatureiro de Gaza encolheu em 60%. O setor de exportações praticamente desapareceu, e a faixa começou a depender ainda mais de ajuda internacional. Quase metade população está abaixo da linha da pobreza. Entre os mais jovens, a taxa de desemprego chega a 40%. Em 2021, a renda per capita de Gaza não passava de 1.257 dólares, segundo o Banco Mundial, um quarto da observada na Cisjordânia, que, embora sob ocupação, não sofre o mesmo tipo de bloqueio.

Futuro nebuloso

Após a última ofensiva terrorista do Hamas, em 7 de outubro de 2023, Israel foi além do tradicional bloqueio e ordenou um “cerco total” a Gaza, cortando o fornecimento de eletricidade, água, combustível e comida para o enclave. A última termoelétrica ficou sem combustível em 11 de outubro.

Há temor de que o corte total de eletricidade afete duramente os hospitais locais, já superlotados de ficaram feridas dos ataques aéreos. Falando à rede Al Jazeera, o repórter Nedal Samir Hamdouna, baseado em Gaza, comparou a um inferno as condições do enclave sitiado desde o início da nova campanha aérea israelense em reposta às atrocidades do Hamas. “Não tenho palavras para descrever como é terrível a situação aqui”, comentou.

Regiões inteiras da Cidade de Gaza, principal área urbana do enclave, foram reduzidas a ruínas durante as incursões aéreas. Segundo as Nações Unidas, cerca de 200 mil habitantes da Faixa de Gaza fugiram de suas casas. Nesta terça-feira, o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, disse a soldados concentrados perto de Gaza: “O Hamas queria promover uma mudança e terá uma. O que existia em Gaza não existirá mais.”