Formada em 1998 para fortalecer educação sobre o Holocausto, organização da qual o Brasil se retirou está no centro de polêmica que envolve definição de antissemitismo, que críticos apontam ser usada para blindar Israel.O Brasil deixou a Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA, na sigla em inglês), da qual participava como membro observador desde 2021. A informação foi divulgada na quinta-feira passada (24/07) pelo Ministério do Exterior de Israel após o Brasil ter anunciado, um dia antes, que estava prestes a aderir formalmente ao processo que a África do Sul move contra Israel na Corte Internacional de Justiça (CIJ) por acusação de genocídio.

O próprio governo Lula não se manifestou oficialmente sobre a retirada, mas diplomatas brasileiros disseram ao jornal Folha de S. Paulo que ela ocorreu porque a adesão teria sido feita de maneira “inadequada” durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro.

O que é a IHRA?

A IHRA foi lançada em 1998 pelo ex-primeiro-ministro sueco Göran Persson. Ela se descreve como uma uma organização intergovernamental que “une governos e especialistas para fortalecer, avançar e promover o ensino, a memória e a pesquisa sobre o Holocausto em todo o mundo”.

À época, Persson argumentou que a iniciativa era necessária porque pesquisas mostravam que muitos jovens europeus ignoravam ou mal tinham ideia sobre a escala do Holocausto, o genocídio de 6 milhões de judeus pelo regime nazista durante a Segunda Guerra Mundial.

No final de uma reunião de maio de 1998, delegações de vários países europeus e dos EUA concordaram colaborar para “fortalecer a cooperação internacional em atividades educacionais sobre o Holocausto, atividades públicas, testemunhos de sobreviventes e encontrar formas adequadas de alcançar os jovens”.

No mesmo ano, Alemanha, Israel e Polônia se juntaram à organização, que hoje conta com 35 países membros e oito observadores.

Reações à saída do Brasil

Após a saída, o Ministério do Exterior de Israel afirmou que a decisão do Brasil é uma demonstração de “profunda falha moral”. “Numa época em que Israel luta por sua própria existência, voltar-se contra o Estado judeu e abandonar o consenso global contra o antissemitismo é imprudente e vergonhoso”, declarou o ministério.

A saída do Brasil foi considerada um “equívoco” pelo comissário da Organização dos Estados Americanos (OEA) para o Monitoramento e o Combate ao Antissemitismo, o brasileiro Fernando Lottenberg, para quem o Brasil deveria continuar na IHRA apesar das divergências políticas atuais com Israel.

Presidência ocupada por israelense que foi pivô de atritos com Brasil

A presidência da IHRA é rotativa entre os países-membros, que são responsáveis por nomear um responsável para coordenar a aliança por períodos de um ano.

No momento, a presidência é ocupada por Israel, que designou para o posto o jurista Dani Dayan, que é também presidente do Museu do Holocausto Yad Vashem, em Jerusalém.

Dayan já foi pivô de atritos entre Israel e Brasil no passado. Em 2015, ele foi vetado pela então presidente Dilma Rousseff para ser o embaixador de Israel no Brasil. À época, o governo brasileiro ficou insatisfeito após os israelenses terem feito o anúncio da indicação em redes sociais antes de o Itamaraty ser informado.

Além disso, alguns setores do governo se opunham à indicação de Dayan porque ela já havia liderado um conselho de colonos israelenses em territórios palestinos ocupados.

Definição de antissemitismo da IHRA

No momento, a IHRA está no centro de uma polêmica mundial que opõe governos e organizações de esquerda e de direita por causa da sua definição de antissemitismo.

Em 2016, a IHRA adotou uma definição inicialmente elaborada nos anos 2000 pelo antigo Observatório Europeu do Racismo e da Xenofobia (EUMC), uma agência da União Europeia.

Essa “definição prática de antissemitismo”, elaborada com a participação de acadêmicos e historiadores e liderada pelo jurista Kenneth Stern, tinha o objetivo de preencher uma lacuna e criar uma definição comum para apoiar a coleta de dados sobre prevalência de antissemitismo no mundo à época.

O resultado foi um texto que sintetizou que “o antissemitismo é uma determinada percepção dos judeus, que se pode exprimir como ódio em relação aos judeus. Manifestações retóricas e físicas de antissemitismo são orientadas contra indivíduos judeus e não judeus e/ou contra os seus bens, contra as instituições comunitárias e as instalações religiosas judaicas”.

Além da definição, foram listados 11 exemplos de conduta antissemita. Alguns deles envolvem percepções ou opiniões sobre Israel. Entre eles estão aplicar padrões duplos de julgamento em relação a Israel, comparar as políticas do país ao nazismo ou descrever sua existência como um empreendimento racista.

Após 2016, vários países e instituições começaram a adotar a definição promovida pela IHRA. A aliança lista 45 países, entre eles a Alemanha, EUA e Argentina e Albânia (um país de maioria muçulmana).

Entidades judaicas também começaram a promover a adoção em nível local. Embora o Brasil não use a definição em nível federal, vários estados brasileiros e prefeituras aderiram, entre eles o Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro.

Críticas ao uso da definição de antissemitismo da IHRA

Críticos afirmam que a definição de antissemitismo da IHRA e especialmente alguns dos exemplos listados estão sendo usados indevidamente para proteger Israel de críticas legítimas e tentar silenciar opiniões sobre o país.

O exemplo de da IHRA que classifica como antissemita comparar as políticas de Israel ao nazismo foi invocado Alemanha em 2023 contra a jornalista judia russo-americana Masha Gessen após ela fazer uma analogia num texto entre a destruição de Gaza e guetos judaicos liquidados pelos nazistas na Segunda Guerra. Como resultado, a cidade de Bremen cancelou uma cerimônia na sede da prefeitura que envolvia uma homenagem a Gessen, conhecida por seu trabalho crítico ao regime de Vladimir Putin.

Ainda em 2023, o chefe da diplomacia da União Europeia (UE), Josep Borrell, invocou especificamente o exemplo listado pela IHRA que vê como antissemita “descrever a existência de Israel como um empreendimento racista” para criticar um relatório da ONG Anistia Internacional que acusava Israel de praticar a política racista de Apartheid contra palestinos.

Mais recentemente, polêmica ganhou força após a pressão feita pelo governo do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, sobre várias universidades americanas que foram palco de protestos contra as ações de Israel em Gaza para que elas incorporassem a definição da IHRA, muitas vezes sob a ameaça de cortes de verbas federais.

Antes de um acordo de 220 milhões de dólares com o governo Trump, anunciado na quarta-feira passada, a Universidade Columbia concordou em incorporar a definição da IHRA e seus exemplos em seu processo disciplinar.

Na Alemanha, também houve polêmica em 2024 após o Parlamento aprovar uma resolução que tornava o financiamento de projetos culturais e acadêmicos dependentes da adesão à definição de antissemitismo da IHRA, algo que gerou protestos entre grupos de esquerda e também vários intelectuais judeus.

Em 2023 mais de cem organizações da sociedade civil israelense e internacional já haviam solicitado às Nações Unidas para que a organização rejeitasse a definição.

“A adoção da definição por governos e instituições é frequentemente enquadrada como um passo essencial nos esforços para combater o antissemitismo. Na prática, no entanto, a definição da IHRA tem sido frequentemente usada para rotular erroneamente as críticas a Israel como antissemitas e, assim, coibir e, às vezes, suprimir protestos não violentos, ativismo e discursos críticos a Israel e/ou ao sionismo, inclusive nos EUA e na Europa”, afirmaram em carta ao secretário-geral da ONU, António Guterres.

E entre as pessoas que dizem que a definição da IHRA tem sido usada para censurar a liberdade de expressão e silenciar críticas legítimas está o principal redator da definição, o jurista e acadêmico Kenneth Stern.

Nos últimos anos, Stern tem se manifestado veementemente contra o que considera ser uma “armamentização” da definição contra ativistas pró-palestinos, incluindo judeus críticos a Israel. Ela conta que, duas décadas atrás, quando elaborou a definição de antissemitismo da IHRA, “nunca imaginou que um dia ela serviria como uma regra de conduta sobre discurso de ódio”.

Stern afirma que a definição da IHRA “não foi elaborada, e jamais foi essa a intenção, como uma ferramenta para atingir ou restringir a liberdade de expressão num campus universitário”. Segundo Stern, a definição e seus exemplos tinham como objetivo servir como uma estrutura ampla para ajudar os países europeus a rastrear o preconceito contra os judeus.

“Ela foi criada principalmente para que os coletores de dados europeus pudessem saber o que incluir e excluir. Dessa forma o antissemitismo poderia ser monitorado melhor ao longo do tempo e além das fronteiras”, explicou em artigo de opinião no jornal britânico The Guardian.

O que dizem os defensores da definição da IHRA?

O comissário alemão para o combate ao antissemitismo, Felix Klein, afirmou que a definição da IHRA é uma ferramenta valiosa contra o antissemitismo.

“Os oponentes da definição alegam que ela impede críticas ao Estado de Israel. Gostaria de deixar uma coisa bem clara sobre isso: na própria definição está dito que a crítica a Israel é totalmente permitida e não deve ser necessariamente condenada como antissemita”, declarou à imprensa alemã.

Em entrevista à DW, Klein acrescentou que se trata da definição mais usada em todo o mundo e que organizações judaicas e não judaicas contribuíram para a sua formulação.

Defensores também dizem que, ao listar os seus 11 exemplos, a IHRA ressalva que eles “podem” ser formas de antissemitismo, observando que é necessário levar em conta “o contexto geral”.

Já a Confederação Israelita do Brasil (Conib) afirma o “termo de adesão à Definição de Antissemitismo da IHRA é uma ferramenta fundamental para educar e informar sobre o Holocausto”. “A IHRA fornece diretrizes e recursos para garantir que a memória do Holocausto seja preservada e que suas lições continuem a ensinar as gerações futuras”.

Declaração de Jerusalém

Críticos da definição de antissemitismo da IHRA preferem a chamada Declaração de Jerusalém de 2021, redigida por acadêmicos como uma alternativa à da IHRA.

A Declaração de Jerusalém define antissemitismo como “discriminação, preconceito, hostilidade ou violência contra judeus como judeus (ou instituições judaicas como judaicas)”.

Os autores da Declaração de Jerusalém afirmam que a definição da IHRA é pouco clara em aspectos essenciais, é aberta a uma ampla variedade de interpretações e que a controvérsia causada por ela prejudica o combate ao antissemitismo.

Em maio, o partido político alemão A Esquerda foi criticado pelo Conselho Central dos Judeus na Alemanha por ter adotado a Declaração de Jerusalém. A decisão foi motivada por cobranças de filiados de que A Esquerda não estava condenando de forma veemente as ações do governo israelense na guerra de Gaza.

Em resposta à crítica, o copresidente do partido A Esquerda, Jan van Aken, declarou que o Conselho Central deve reconhecer que ambas as definições foram desenvolvidas e são defendidas também por judeus. “Um problema com a definição da IHRA é que ela torna praticamente impossível o debate crítico sobre o Estado de Israel e assim também sobre o seu governo. No entanto, esse debate precisa ser feito, especialmente nos tempos desta guerra brutal em Gaza”, disse.