22/08/2025 - 14:23
Prefeitura determinou despejo da Companhia Mungunzá de Teatro de terreno público antes abandonado, em ação que gerou protestos. Justiça garantiu a permanência do coletivo até, no mínimo, fevereiro.No coração da Santa Ifigênia, região central de São Paulo marcada por contrastes sociais e urbanísticos, está erguida uma estrutura nada convencional: 11 contêineres marítimos transformados em palco, plateia, camarins e salas de convivência.
Desde 2016, o Teatro de Contêiner Mungunzá tornou-se referência de resistência cultural e social na cidade. Hoje, porém, sua continuidade está em risco diante de uma ordem de despejo da prefeitura de São Paulo.
O projeto nasceu após a Companhia Mungunzá de Teatro vislumbrar que, em vez de direcionar recursos culturais para aluguéis de imóveis privados, fazia mais sentido ocupar um terreno público ocioso e transformá-lo em espaço cultural, com a participação da comunidade do entorno.
Inspirados por movimentos sociais que atuam pela garantia do direito à moradia, os artistas solicitaram à prefeitura uma concessão temporária de dois meses para o projeto em um terreno municipal abandonado, próximo à estação da Luz – região marcada pela antiga “Cracolândia”. E quase que da noite para o dia, montaram a estrutura.
“A população seria o nosso termômetro. Eles é que decidiriam se deveríamos ficar ou sair”, afirmou a atriz e produtora Sandra Modesto em reportagem ao jornal Valor Econômico.
A resposta veio rápido: o teatro se consolidou como ponto de encontro, arte e inclusão social. Desde então, o espaço já recebeu mais de 4.000 atividades culturais, oferecendo ingressos a preços populares e até gratuitos.
Também abriu portas para projetos comunitários, como o Tem Sentimento, que gera renda para mulheres em situação de vulnerabilidade.
O reconhecimento pela iniciativa, dentro e fora do país, não tardou. Em 2017, a Mungunzá recebeu um Prêmio Especial da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) por seu projeto de ocupação e criação do Teatro de Contêiner.
Embate com a prefeitura
Em maio deste ano, a gestão do prefeito Ricardo Nunes notificou a companhia a desocupar o terreno em 15 dias, alegando necessidade da área para um empreendimento habitacional popular. O projeto prevê 95 apartamentos em um prédio de 14 andares, além de quadra esportiva e praça.
“A prefeitura já ofereceu três terrenos alternativos, inclusive um no Bixiga, três vezes maior que o atual”, alegou o secretário-executivo de Cultura, Totó Parente, em artigo para a Folha de S.Paulo. Para ele, a companhia estaria politizando a disputa: “A prefeitura é a favor da cultura, não da baderna”.
O prefeito Ricardo Nunes sustenta que o teatro ocupa área estratégica: “Se não deixarem o espaço, terão que responder criminalmente”.
A prefeitura argumenta que quer revitalizar a região, inclusive com a construção de um prédio de habitação de interesse social. Também reitera que já ter repassou R$ 2,5 milhões em apoio às atividades culturais do grupo.
Mobilização e resistência
A ação da Guarda Civil Metropolitana (GCM) no último dia 19 de agosto acirrou os ânimos em torno da disputa. Agentes de segurança fecharam o acesso dos artistas a um prédio anexo usado para guardar cenários e figurinos. Houve resistência, e o uso de spray de pimenta por parte da guarda municipal.
A prefeitura havia montado um palco para anunciar o projeto habitacional no dia, mas desistiu horas depois que vídeos mostrando a ação repercutirem nas redes sociais.
O episódio gerou reação imediata de artistas, estudantes e coletivos, que denunciaram violência e autoritarismo. O Ministério Público de São Paulo notificou a prefeitura pedindo esclarecimentos sobre a ação.
A mobilização deu resultado: a prefeitura prorrogou por 60 dias o prazo de desocupação, agora até 20 de outubro. A Justiça de São Paulo foi além, e concedeu uma liminar, na quinta-feira (21/08), garantindo a permanência do Teatro de Contêiner e do Coletivo Tem Sentimento no terreno pelo prazo mínimo de 180 dias – ou seja, pelo menos até fevereiro.
Na decisão, a juíza Nandra Martins Da Silva Machado justifica que o teatro, composto por estruturas de contêineres marítimos interligados, paredes de vidro, cobertura acústica, iluminação, além de um acervo artístico e cultural, precisa de “planejamento técnico e logístico para sua desmontagem, transporte e reestruturação”.
O imbróglio envolvendo o teatro e a prefeitura mobilizou nomes de peso. Fernanda Torres enviou carta aberta ao prefeito pedindo a manutenção do espaço. Fernanda Montenegro também se pronunciou: “A Cia. Mungunzá já é parte da história teatral de São Paulo. Pedimos: estenda a sua mão”. Outros nomes, como Marieta Severo, Giulia Gam, Marcos Caruso, Camila Morgado e Maria Gadú, assinaram documento solicitando que o teatro seja incorporado ao redesenho urbano da área.
Caruso foi enfático: “Não levem com vocês a mancha do fechamento de um teatro. Este teatro é referência para o nosso país”.
Cultura x habitação
A disputa revela uma tensão mais ampla sobre o futuro do centro paulistano: como conciliar a urgente demanda por moradia popular com a necessidade de preservar espaços culturais que transformaram territórios antes marginalizados?
Para Marcos Felipe, um dos fundadores do teatro, a contradição é evidente: “Não somos contra moradias. Mas não compreendemos por que não se usam os tantos terrenos e prédios vazios da região. Um bairro não se faz só de casas; precisa de praças, lazer e cultura. O Teatro de Contêiner deve ficar porque descobrimos modos de sonhar e fazer acontecer onde parecia impossível”.
sf (Agência Brasil, ots)