17/10/2022 - 6:31
Descrito por Simone Tebet como possível “maior esquema de corrupção do planeta”, mecanismo criado sob Bolsonaro distribui verbas de modo a garantir apoio de parlamentares ao governo e acaba de levar a primeiras prisões.O segundo turno da campanha ao Palácio do Planalto reavivou o debate sobre o orçamento secreto, um mecanismo de transferência de recursos públicos para atender a interesses de parlamentares criado em 2020, no segundo ano do governo Jair Bolsonaro (PL).
Nas últimas semanas, apoiadores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vêm tentando vincular o orçamento secreto a escândalos de corrupção e a compra de apoio político.
Na sexta-feira (14/10), um fato novo reforçou essa narrativa da campanha petista: ocorreram as primeiras prisões em uma operação da Polícia Federal (PF) ligadas a desvios de verbas do orçamento secreto.
Simone Tebet, candidata derrotada do MDB a presidente, que agora apoia Lula, disse em uma entrevista em agosto que o orçamento secreto poderia ser o “maior esquema de corrupção do planeta Terra”. O trecho dessa declaração foi republicado na primeira semana de outubro e viralizou em redes sociais.
O orçamento secreto foi revelado pelo jornal O Estado de S.Paulo em maio de 2021, mas não havia mobilizado tanto a atenção do público como agora. As buscas pelo termo no Google atingiram seu pico depois do vídeo de Tebet viralizar. Entenda do que se trata.
O que é o orçamento secreto
É uma maneira de o governo e o comando da Câmara e do Senado distribuírem verbas públicas para atender interesses dos deputados e senadores que os apoiam.
As autorizações para destinar essas verbas são incluídas no Orçamento depois de ele já ter sido aprovado, por meio das emendas parlamentares.
Há quatro tipos emendas. As usadas no orçamento secreto são as emendas de relator, sob o código RP9. Elas são incluídas pelo relator-geral do Orçamento, um parlamentar escolhido a cada ano para ser o responsável pela redação final do texto.
As emendas de relator costumavam ser usadas apenas para fazer pequenas correções no Orçamento. Em 2020, uma nova regra mudou isso.
Essas emendas passaram a destinar bilhões de reais para obras, compras de veículos e diversos outros gastos, sem transparência e às vezes ligados a indícios de corrupção.
A nova regra foi criada para assegurar apoio dos parlamentares do Centrão a Bolsonaro.
Por que ele se chama secreto
A mídia batizou o mecanismo dessa forma porque é impossível identificar em alguns casos qual deputado ou senador é o responsável pela criação da emenda. No começo, também era muito difícil identificar o destino do dinheiro.
Quando ele veio à tona, funcionava assim: o relator-geral incluía no Orçamento uma emenda genérica destinando verbas extras a um órgão do governo – para o Ministério do Desenvolvimento Regional, por exemplo.
Em seguida, os parlamentares que tinham acordos com o governo ou com o comando da Câmara e do Senado enviavam ofícios – não disponíveis ao público – ao respectivo órgão, pedindo a transferência de verbas da sua “quota” para, por exemplo, asfaltar vias de trânsito ou comprar tratores. O dinheiro era então repassado.
As primeiras reportagens sobre o orçamento secreto identificaram suspeitas de compras superfaturadas de máquinas e equipamentos agrícolas com essas verbas.
Ao longo de 2021, ações questionaram o orçamento secreto junto ao Supremo Tribunal Federal e ao Tribunal de Contas da União. No final daquele ano, uma nova regra passou a exigir a indicação do nome da pessoa que havia solicitado a emenda, como um deputado ou um senador.
Porém, essa regra deixou uma brecha para manter em segredo o parlamentar interessado. Ela permitiu que um “usuário externo”, ou seja, qualquer pessoa, fosse incluída como a interessada na emenda, escondendo o padrinho político.
A figura do “usuário externo” passou a ser muito utilizada para destinar as emendas de relator. No primeiro semestre deste ano, essa estratégia respondia por um terço do total das emendas de relator negociadas, segundo levantamento do jornal Folha de S.Paulo.
Na última sexta-feira (14/10), foram realizadas as primeiras prisões em uma operação da Polícia Federal (PF) sobre o orçamento secreto. O esquema, revelado pela revista Piauí, envolve o registro de consultas e procedimentos médicos falsos no Sistema Único de Saúde (SUS) para justificar o recebimento de verbas do orçamento secreto em pequenas cidades no Maranhão e no Piauí.
Uma das pessoas presas foi Roberto Rodrigues de Lima, ele mesmo um “usuário externo”. Em seu nome, havia R$ 69 milhões em emendas do orçamento secreto – sem que estivesse claro qual era o parlamentar interessado.
A PF já havia realizado outras operações para apurar desvios ligados ao orçamento secreto em verbas destinadas para educação e saúde em Rio Largo (AL) e para obras de pavimentação em cidades do Maranhão. Há outras investigações em andamento.
Qual é o envolvimento de Bolsonaro no orçamento secreto
Bolsonaro foi eleito em 2018 com um discurso de que não repetiria as práticas adotadas por presidentes anteriores para construir e manter coalizões governamentais no Congresso, o que ele chamava de “velha política”.
Ao assumir o poder, porém, ele percebeu que seria difícil governar só com o respaldo de seus eleitores, sem negociar apoios de deputados e senadores. Em 2019, ele teve uma taxa de sucesso legislativo no Congresso de 31%, a menor desde a redemocratização, segundo levantamento do Observatório do Legislativo Brasileiro (OLB). A taxa mede o êxito do governo na transformação dos projetos de sua autoria em norma jurídica.
Para reverter esse cenário, Bolsonaro começou a abrir espaço no governo a políticos do Centrão e deu aval à criação da nova regra para as emendas de relator, que resultou no orçamento secreto.
Ao fazer isso, Bolsonaro garantiu apoio do Congresso ao seu governo e proteção contra um eventual processo de impeachment. Por outro lado, abriu mão do poder de decidir o destino de uma parte relevante das verbas públicas disponíveis.
Os maiores beneficiários das emendas de relator são integrantes da base de apoio a Bolsonaro no Congresso. Um levantamento da revista Piauí apontou que integrantes do PL, Republicanos, PTB, União Brasil, PSC, PP e Patriota, que apoiam o governo, receberam R$ 6,2 bilhões em emendas de relator.
Esses parlamentares, por sua vez, capitalizam politicamente a destinação dessas verbas em suas campanhas eleitorais e no apoio aos seus candidatos, como ao próprio Bolsonaro.
A Transparência Internacional Brasil, organização que atua para defender o combate à corrupção, considera que o orçamento secreto é o maior processo de “institucionalização da corrupção” de que se tem registro no Brasil.
“O que a gente chama de institucionalização da corrupção é uma forma de dar um verniz legal, institucional, a uma prática absolutamente corrupta na sua essência, que é a apropriação do erário público para interesses privados, sejam eles políticos, de reprodução de poder, ou pecuniários mesmo, interesses materiais”, afirmou o diretor executivo da organização, Bruno Brandão, à BBC Brasil.
Quando é questionado sobre o motivo de ter autorizado o orçamento secreto, Bolsonaro costuma responder que vetou a regra em novembro de 2019, mas que o veto teria sido posteriormente derrubado pelo Congresso.
Contudo, foi o próprio governo que, em dezembro de 2019, enviou uma mensagem ao Congresso dando aval para a nova regra das emendas de relator entrar em vigor a partir do ano seguinte.
Qual é o valor do orçamento secreto
Em 2020, primeiro ano do orçamento secreto, as emendas de relator tiveram R$ 13,1 bilhões em valores aprovados. No ano seguinte, a cifra foi para R$ 17,14 bilhões. Neste ano, são R$ 16 bilhões, segundo o OLB. Nesses três anos, a soma de valores autorizados chega a R$ 46,2 bilhões.
Desde o início do orçamento secreto, seu montante superou em muito o destinado a emendas individuais e de bancada, que eram as mais usadas até então para atender pedidos dos deputados e senadores.
Em 2022, o valor aprovado para as emendas de relator foi 50% maior do que o das emendas individuais, e o triplo do das emendas de bancada.
Com tanto dinheiro a mais indo para o orçamento secreto, o volume de recursos disponível para o governo definir prioridades e decidir livremente onde gastar diminuiu. Para manter esse mecanismo, o governo teve de cortar verbas de outras políticas públicas, como da Farmácia Popular.
Em 2019, as emendas parlamentares representavam 5,4% do gasto com despesas discricionárias do governo. Neste ano, elas são 24% do valor aprovado para essas despesas.
Na prática, isso significa que cada vez mais são os deputados e senadores que decidem para onde irão as verbas, com menos transparência e coordenação de prioridades.
Lula defende acabar com o orçamento secreto. Mas, caso seja eleito, será difícil convencer a maioria dos deputados e senadores da próxima Legislatura a mudar essa regra.
Há também uma ação para ser julgada no Supremo Tribunal Federal que pode restringir a prática.
Como o orçamento secreto entrou na campanha
O mecanismo tem sido um dos pontos explorados pela oposição ao governo na campanha presidencial.
No final de agosto, em entrevista ao Jornal Nacional, da TV Globo, Lula rebateu uma pergunta sobre escândalos de corrupção em seu governo comparando o orçamento secreto ao mensalão, sugerindo que o atual esquema seria muito pior.
“Você acha que o mensalão, de que tanto se falou, é mais grave que o orçamento secreto?”, disse Lula.
O mensalão foi um esquema de compra de apoio no Congresso no primeiro governo Lula, denunciado em 2005, que usava recursos de empresas que tinham contratos com o poder público, e resultou na condenação de políticos importantes e empresários pelo Supremo Tribunal Federal. O Ministério Público identificou desvios de pelo menos R$ 101 milhões no esquema.
Na primeira semana de outubro, após o primeiro turno, o orçamento secreto voltou com força à campanha. Um dos motivos foi o vídeo de Tebet afirmando que as emendas do relator poderiam se relevar o “maior esquema de corrupção do planeta Terra”.
Após esse vídeo circular nas redes sociais, as menções ao orçamento cresceram 510% em relação à semana anterior, segundo um levantamento da Qaest divulgado pelo jornal O Globo.
Na mesma semana em que o vídeo de Tebet viralizou, o influenciador Felipe Neto, que tem 15 milhões de seguidores no Twitter e apoia a campanha de Lula, também havia sugerido aos seus seguidores que parassem de usar o termo “orçamento secreto” e passassem a citar o mecanismo como “esquema de propina do Bolsonaro pra comprar políticos”.