Brasil vem batendo ano após ano recordes de abertura de novos processos, com a adição de 39 milhões em 2024. Alta no número de advogados e má qualidade de serviços turbinam judicialização – que custa caro para o paísAno após ano, o Brasil vem batendo seu recorde de novos processos, que chegaram a 39 milhões em 2024, em uma alta de 8,3% ante os 35,3 milhões que o país viu serem abertos no ano anterior. As razões apontadas vão da qualidade dos serviços ao elevado número de advogados no país. Entre os efeitos negativos, está uma justiça potencialmente mais lenta e onerosa. Por sua vez, há a visão de que o avanço vem contribuindo para um maior acesso aos direitos no país.

Em 2020, o número de novos processos no Brasil foi de 25,8 milhões, ocorrendo um salto de quase 10 milhões de novas ações abertas no país em um período de cinco anos. A startup especializada no meio JusBrasil já acumula mais de 1 bilhão de processos, ativos e inativos, em seus registros.

Em 2023, esta estrutura com 91 tribunais consumiu R$ 132,8 bilhões, o que equivalente a 1,2% do PIB ou 2,38% dos gastos totais da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. Um universo com 446.534 profissionais, sendo juízes, servidores, estagiários e terceirizados. Os dados são do relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

O mesmo levantamento apontou que entre os cinco organismos com mais processos movidos contra no Brasil, três foram bancos. A administração pública também é protagonista neste avanço. Segundo o relatório, o líder em processos sofridos no país foi o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Em quinto lugar, ficou o Estado de São Paulo.

“O excesso de litigância afeta no tempo dos processos, que acabam ocorrendo em uma morosidade maior”, afirma a advogada Débora Chaves, especialista em Direito processual, e autora de estudos comparativos sobre o tema entre o Brasil e outros países. Ela destaca que no caso brasileiro, os processos podem chegar a dez anos para uma conclusão. Procurado, o CNJ preferiu não se manifestar.

Em sua visão, os litígios costumam ser cíclicos, e estão bastante ligados à dispersão da informação, como, há algumas décadas, quando ocorreu uma onda com os expurgos das cadernetas de poupança. “Muitas ações chegam às pessoas através da mídia, que tem um papel muito relevante neste aumento de processos”, aponta. Recentemente, ela destaca o avanço das ações contra planos de saúde. Em três anos, o número de processos contra o setor subiu 300%, chegando a 300 mil em 2024.

Por sua vez, Chaves lembra que não é o grande número de processos que garante que toda a população está acessando os seus direitos, já que, muitas vezes, uma menor parcela mais bem informada é responsável pela grande parte dos litígios. “Ainda há muita dependência do acesso à informação no país”, aponta.

Estado como principal alvo

Neste ano, um estudo dos economistas do Insper Marcos Mendes, Cristiane Coelho, Marcos Lisboa e Leonardo Barbosa, mostrou que a que a chamada “judicialização” passou de custar 1% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional em 2010 para 2,5% em 2024. Os chamados precatórios, formalizações de requisições de pagamento de determinada quantia por beneficiário, devida pela Fazenda Pública, representam 30% desta quantia.

Nos últimos anos, uma série de medidas governamentais passou a ser alvo de processos judiciais, com destaque para o benefício de prestação continuada (BPC). Somente em 2024, a Previdência Social teve de conceder pagamentos a 182 mil beneficiários que ganharam as ações na Justiça.

O cenário costuma ser repetir em âmbito municipal e estadual. Anteriormente ao programa Pé-de-Meia do governo federal, o Estado de Minas Gerais adotou uma medida semelhante, chamada de Poupança Jovem, que destinava recursos a estudantes de escolas públicas que concluíssem o Ensino Médio.

Na cidade de Juiz de Fora, após cumprir com os requisitos exigidos pelo programa, a nutricionista Izabela dos Santos esperava receber o recurso. Por sua vez, com o passar do tempo, foi indicado pela administração de sua escola que o governo estadual não teria verbas para pagar o benefício. Foi neste momento que uma ação na justiça foi vista como a única alternativa para receber. Após o ingresso com o processo, o governo teve de pagar à nutricionista verba e a correção monetária referente à demora.

Caso semelhante na mesma cidade, mas com final diferente, foi o do radiologista Antônio Neto. “Desde que nos formamos, havia a dúvida se iríamos receber a verba ou não. No portal da transparência, havia a fatura com meu nome, o que dava a esperança de que iríamos receber”, conta. Por sua vez, apenas após alguns anos, com auxílio de um advogado, Neto entrou com uma ação para tentar obter o benefício, mas o tempo para buscar a justiça fez com que o caso prescrevesse, não cabendo recurso.

Excessos de litigância e abusos

Recentemente, companhias aéreas passaram a serem alvos cada vez mais relevantes de ações. O país registra uma ação contra aéreas a cada 0,52 voos, enquanto nos Estados Unidos, o setor reporta um processo judicial a cada 2.585 viagens, por exemplo, segundo dados do Bernardi & Schnapp Advogados.

Nestes casos, o amplo incentivo de acesso à litigância, que envolve até mesmo anúncios em redes sociais para a abertura de processos contra as empresas, em grande parte em razão de atrasos, é apontado como uma razão para a disparada das ações judiciais.

Por conta de potenciais abusos em casos como estes, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo criou uma coordenadoria para lidar com litigâncias fraudulentas. Vice-presidente da OAB no Estado e responsável pelo organismo, Daniela Magalhães, afirma que há uma série de empresas de tecnologia que buscam operar neste segmento, sem necessariamente envolver advogados.

Segundo ela, 170 companhias foram processadas apenas em 2024 pela oferta de serviços visando ações judiciais de maneira irregular. Ela lembra que há alguns anos, na Praça da Sé, no Centro de São Paulo, era comum a entrega de cartões de advogados às vezes pelas mesmas pessoas que ofereciam outros serviços, como a compra de ouro, o que incorria em violações das normas. Já atualmente, ela destaca que “houve uma evolução” nos métodos.

Normalmente, estas empresas oferecem créditos aos clientes por suas ações, que podem demorar anos para pagar as indenizações devidas. Além do caso das aéreas, Magalhães afirma que este movimento vem crescendo também em processos trabalhistas, que acabam se valendo de um “desespero”, enquanto oferecem um recurso imediato e garantido. “Há um negócio gerado pela ineficiência do Judiciário e de serviços como o INSS”, avalia.

Muitos advogados?

Junto da alta no número de processos nos últimos anos, o Brasil lida com uma explosão no número de faculdades e profissionais formados em Direito. Atualmente, o país é líder mundial no número de advogados por habitante, com mais de 1,4 milhão de profissionais, ou um para cada 164 brasileiros. A rentabilidade do setor, que muitas vezes depende da cobrança de honorários pelos processos, é apontada como uma razão que contribui para este cenário.

“Com um maior número de profissionais, há pressão por uma lógica de mercado jurídico”, afirma Chaves, que lembra que atuação da maior parte dos advogados é voltada para o contencioso em suas ações.

Na visão de Magalhães, o número de faculdades de Direito contribui para uma busca por litigância no país. “Para o exercício da advocacia em si, são muitos formados”, pontua. Segundo ela, o exame da OAB, cuja aprovação é necessária para atuação como advogado no país, é um dos elementos que mostra a preocupação com regular a entrada neste mercado.

Possíveis soluções

Na comparação com os Estados Unidos, Chaves avalia que os mecanismos norte-americanos são mais restritos, o que frequentemente leva a um custo maior para a judicialização, o que acaba fazendo com que muitas ações não vão para frente. Ela destaca que no país as regras são mais difíceis que no Brasil para o acesso à justiça gratuita, e que não há uma atuação tão forte das defensorias públicas.

Ao mesmo tempo em que o modelo pode desestimular o excesso de litigância, há o risco de dificultar que, especialmente pessoas mais vulneráveis, busquem seus direitos legalmente, pondera.

Nos últimos anos, Chaves avalia que o judiciário brasileiro avançou em alguns pontos. Um destaque é a possibilidade de que casos semelhantes, como ocorrem frequentemente no país, a exemplo de atrasos em voos, possam servir de exemplo em outros processos, limitando etapas e conseguindo dar mais celeridade às decisões. Este tipo de agregação é recorrente nos Estados Unidos, aponta.

Magalhães enfoca na falta de qualidade dos serviços prestados pelos principais alvos de processo, e acredita, que atualmente, “os grandes agentes não cumprem seus deveres e usam o judiciário para retardar suas obrigações”. Em sua avaliação, as empresas não são penalizadas em caso de falhas da forma devida, sendo que multas não são suficientemente aplicadas no país.