Em 26 de fevereiro de 2020, quando o primeiro caso de covid-19 foi registrado no Brasil, poucos apostavam que o problema seria tão longo e tão grave. Dois anos depois, oficialmente a doença já tirou a vida de quase 650 mil brasileiros, trouxe impactos econômicos e transtornos que jamais poderão ser esquecidos.

Por outro lado, embora a pandemia ainda não tenha terminado, já é possível analisar os acertos e erros durante a crise sanitária e, principalmente, estimar qual é o legado positivo herdado da covid-19 – ou seja: o que fica e ajudará o Brasil a lidar com futuras pandemias. Que, alertam os cientistas, virão. E cada vez com mais frequência.

Em termos práticos, o país está mais preparado do ponto de vista institucional. A pandemia de covid-19 exigiu melhorias nas duas principais instituições produtoras de vacinas do Brasil, o paulista Instituto Butantan e a federal Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). E esses avanços, claro, seguirão à disposição da saúde pública.

Vitória de vacina nacional

O primeiro aspecto destacado por Tiago Rocca, gerente de Projetos Estratégicos e Novos Negócios do Butantan, é a rapidez na produção dos imunizantes. Segundo ele, o desenvolvimento tecnológico foi absorvido internamente e deve “servir para combater futuras doenças”.

Estruturalmente também houve um ganho de escala. “Aumentamos muito a nossa capacidade produtiva e de fornecimento de vacinas. Isso vai deixar um legado para a instituição em termos de resposta, esse padrão de trabalhar com um volume maior do que a gente vinha trabalhando”, comenta. “Acho que, para o futuro, essas plataformas podem ser utilizadas para outras respostas e agregar em algo mais eficiente para o país nessas crises de saúde pública.”

De acordo com Raphael Guimarães, pesquisador do Observatório Covid-19 da Fiocruz, a experiência adquirida com a atual pandemia é fundamental para as estratégias futuras da fundação. “A Fiocruz é pioneira no Brasil no enfrentamento de crises sanitárias, em diversas dimensões, desde o monitoramento e a avaliação dos cenários epidemiológicos até o uso da tecnologia mais dura para disponibilidade de insumos, como as vacinas. Isso sempre fez de nós uma referência internacional.”

“Desta vez, o trabalho incansável de diferentes unidades da Fundação, trabalhando com um propósito comum de oferecer a melhor saúde pública possível, nos fez ganhar mais credibilidade na população em geral. E este talvez seja um dos principais legados: poder oferecer à população uma saúde pública de qualidade, mesmo quando há forças poderosas agindo contra isso”, elogia o pesquisador.

“Além disso, comemoramos o fato de termos conseguido produzir uma vacina 100% nacional, com a incorporação tecnológica completa da vacina AstraZeneca/Oxford”, diz Guimarães. “Com essa tecnologia, poderemos avançar no futuro com o desenvolvimento de outras vacinas e utilizar a mesma plataforma tecnológica para o enfrentamento de novos desafios e agravos.”

“Viva o SUS”

Especialistas ouvidos pela DW Brasil também destacaram algumas mudanças sociais impulsionadas pela pandemia que devem ser irreversíveis. A principal: a imagem do Sistema Único de Saúde (SUS). Antes visto como precário e combalido por boa parte da população, o modelo público de atendimento de saúde acabou enaltecido durante a crise sanitária: de hashtags #VivaoSUS em posts mostrando cidadãos sendo vacinados, a formadores de opinião defendendo a importância de uma saúde pública gratuita e universal.

De certa forma, a covid-19 espantou um fantasma que por vezes aparecia em discursos neoliberais: o ideia da privatização completa da saúde. “É um grande aprendizado: devemos manter e cuidar do SUS. Ele não pode ser eliminado de jeito nenhum. Precisa ser ampliado e melhorado”, aponta o médico Carlos Rodrigo Zárate-Bladés, diretor do Laboratório de Imunorregulação da Universidade Federal de Santa Catarina. “Quem não entendeu isso provavelmente hibernou durante a pandemia.”

No aspecto da vacinação, isso ficou claro. Se houve atraso e bateção de cabeças no processo de negociação e aquisição dos imunizantes por parte do governo federal, tão logo eles estiveram disponíveis a aplicação foi eficiente. Com um sistema nacional capilarizado e estruturado há cinco décadas, nem mesmo discursos antivacina conseguiram manter baixas as taxas de adesão.

“O governo federal apoiou políticas negacionistas. Mas as vacinas foram um acerto”, reforça a imunologista Ester Sabino, pesquisadora da Universidade de São Paulo. “Houve um atraso na compra pelo governo federal. Mas uma vez as vacinas chegando, a proporção de pessoas vacinadas foi muito boa.”

Na mesma toada, o discurso de valorização da ciência foi a tônica. “De repente, a ciência saiu do puxadinho do quintal e foi posta na sala de estar das famílias brasileiras. E os cientistas passaram a ser reconhecidos como quem pode ajudar o país”, comenta o neurocientista Miguel Nicolelis, pesquisador da Universidade Duke, nos Estados Unidos.

“Para combater uma doença infecciosa pandêmica, um problema sanitário, a gente precisa ouvir especialistas e cientistas. Não podemos tirar conclusões do chapéu, como o governo federal fez e continua fazendo”, ressalta a microbiologista Natalia Pasternak, fundadora do Instituto Questão de Ciência. “Esse aprendizado, eu espero que fique.”

Pesquisas em rede

Outra lição aprendida de forma emergencial que agora fica como legado é a capacidade que cientistas de diversas instituições tiveram de estabelecer redes de trabalho, seja para pesquisa, seja para o desenvolvimento de projetos visando à produção de insumos. Inúmeros grupos multidisciplinares foram criados, geralmente de forma orgânica, para tratar de questões inerentes ao enfrentamento da covid-19.

“A comunidade científica se organizou para analisar a pandemia e mesmo combater os apagões de dados, que foram vários [por parte do governo federal]. Essas redes científicas demonstraram que temos um potencial pouco explorado e, ao mesmo tempo, comprovaram a relevância do sistema público universitário brasileiro, que é um dos maiores do mundo”, avalia Nicolelis.

Ele coordenou um comitê científico organizado para dar apoio ao Consórcio Nordeste, criado durante a pandemia. “Foi explosivo. Reunimos mais de 2 mil voluntários entre pesquisadores de todo o Brasil, trabalhando em tempo integral. Isso mostrou um potencial reprimido na criação científica brasileira.” O pesquisador acredita que tais redes de pesquisa serão mantidas, mesmo num cenário pós-pandêmico.

Professor e pesquisador da Universidade de São Paulo (USP), o médico Paulo Saldiva ressalta que essa união acadêmica proporcionou a produção “em curto espaço de tempo” de alguns insumos importantes, de ventiladores a máscaras. Contudo, recorda que também houve união de outros setores, como o empresariado, instituições filantrópicas e diversas outras entidades civis: “Formou-se uma rede de solidariedade, e isso veio preencher o vazio entre a demanda e a falta de insumos.”

Vida mais digitalizada

Outro ponto elencado por Saldiva são os protocolos que foram aprimorados. E um exemplo que também “veio para ficar” está na telemedicina, com os atendimentos remotos que podem ser uma maneira de garantir mais acesso da população ao atendimento médico, mesmo que sirva apenas para uma triagem inicial.

Pesquisador da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE), Jones Albuquerque também tem o olhar atento para as transformações do dia a dia que, ao ficarem como legados positivos da pandemia, além de facilitar a vida também nos deixam mais preparados para outras crises sanitárias.

“Aprendemos a digitalizar e desburocratizar vários processos, de contas de energia a carteiras de habilitação, passando por compras online, evitando que tenhamos de nos expor desnecessária e insalubremente a filas e ambientes aglomerados”, enumera, ressaltando mudanças como o home-schooling e o home-office, que demonstraram que os ambientes físicos podem “não ser mais tão necessários para o trabalho, o aprendizado e o convívio social”.

Por fim, Albuquerque ainda lembra que “muitos estão optando por viver onde antes ‘passavam férias’, melhorando a qualidade de vida como um todo”, e isso “reduz os riscos de prováveis surtos novos de doenças”, à medida que pode vir a diminuir o adensamento das grandes cidades e a criação de aglomerações desnecessárias.

Dados abertos

Em tempos de informação digitalizada, o programador e analista de dados Álvaro Justen ressalta uma lição desta pandemia: a necessidade de o Brasil ter sistemas mais integrados e processos mais automatizados de coleta e armazenamento de dados.

A plataforma Brasil.IO, criada por ele, acabou sendo uma tábua de salvação nos momentos de apagão de dados oficiais. Mas a tabulação dessas informações, diante de uma falta de padronização de formatos por parte dos órgãos municipais e estaduais de saúde, dependia de horas e horas de voluntariado.

“A pandemia pegou todo mundo de surpresa, mas o treinamento de alguns servidores, principalmente quem lida com dados, poderia ser mais técnico. Isso precisa ser melhor trabalhado para que, no futuro, todos tenham acesso a mais dados e consigamos fazer algo melhor com os dados disponíveis”, propõe Justen.