05/07/2025 - 7:58
Ausência de Xi e Putin reduz chance de grandes decisões, mas pode criar oportunidade para países democráticos do bloco. Brasil bancou participação inédita da sociedade civil.Pouco mais de um ano após se expandir, o Brics realiza no Rio de Janeiro neste domingo e segunda-feira (06 e 07/07) uma cúpula de chefes de Estado para analisar o contexto geopolítico global, tentar aprofundar a cooperação entre seus membros e sinalizar em qual direção o bloco pretende caminhar no futuro.
Os desafios serão grandes. O Brics atravessa uma crise de identidade sobre qual é seu papel em uma ordem mundial em rápida transformação. O principal dilema: pressionar por reformas da governança global em diálogo com países do G7 ou contestar mais abertamente o Ocidente, como vêm fazendo Rússia e China?
A cúpula do Rio será marcada pela ausência do presidente chinês, Xi Jinping, que alegou problemas de agenda, e pelo presidente russo, Vladimir Putin, que tem um mandado de prisão contra si expedido pelo Tribunal Penal Internacional, o que em tese obrigaria o Brasil a prendê-lo.
Por outro lado, a falta desses dois líderes pode acabar oferecendo uma oportunidade para os países democráticos do grupo que precisam manter um contato amistoso com o G7, como Brasil, Índia e África do Sul, demonstrarem que o Brics não depende tanto de Pequim e tentarem fazer avançar sua agenda, avaliam especialistas à DW.
A expectativa de que algo importante e concreto saia da cúpula, no entanto, é baixa. Mesmo a proposta de fortalecer transações comerciais sem usar o dólar – lançada com entusiasmo pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva – entrou em banho-maria após o presidente americano, Donald Trump, ameaçar retaliar.
Ausência de Xi e Putin: fraqueza ou oportunidade
A falta do presidente russo a uma cúpula do Brics não é novidade. Ele também esteve ausente da reunião de 2023, na África do Sul, que assim como o Brasil é signatária do tratado que cria o TPI e, em tese, seria obrigada a prendê-lo.
Mas é a primeira vez que Xi se ausenta de uma cúpula do Brics. O motivo real é alvo de especulação: falou-se em pressões domésticas ligadas à disputa tarifária com os Estados Unidos ou ao consumo em queda no país, ou ao fato de Xi ter se reunido com Lula duas vezes em menos de um ano, sendo a última em maio, durante a visita do líder brasileiro a Pequim.
O jornal South China Morning Post também questionou se o fato de o Brasil ter oferecido um jantar de Estado ao primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, poderia ter pesado na decisão de XI – para que o líder chinês não aparecesse como uma figura menor na cúpula.
Se por um lado a ausência de ambos os líderes reduz a chance de que “algo mais substantivo” seja decidido no Rio, por outro isso deixará Brasil, Índia e África do Sul “mais soltos” para defenderem suas posições, afirma Vinicius Guilherme Rodrigues Vieira, professor de relações internacionais da FAAP e da FGV.
Além disso, é uma chance para que esses três países “de alguma forma reajam à interpretação tradicional de que o Brics seria apenas uma bola para a China jogar, e mostrem que eles são capazes de desenvolver uma proposta para um tipo diferente de Brics”, diz Günther Maihold, non-resident senior fellow da Fundação de Ciência e Política (SWP) em Berlim.
Crise de identidade: como encarar o Ocidente
O debate sobre que “tipo diferente” de Brics poderia surgir está ligado a uma questão de fundo do grupo. Rússia e China têm feito uma contestação mais aberta ao Ocidente, enquanto África do Sul, Brasil e Índia atuam com “ambiguidade estratégica”, buscando representar o Sul Global ao mesmo tempo em que tentam manter um entendimento com os Estados Unidos e a União Europeia, diz Maihold.
“Para esses países, o objetivo não é tanto reduzir o poder do Ocidente, mas somar esforços do Sul Global para prover bens públicos de governança global, ainda mais em um contexto no qual os Estados Unidos estão deixando um vazio que a Europa, sozinha, não conseguirá preencher”, afirma Vieira.
Ele avalia que o mundo está retornando à “lógica das grandes potências”, que podem preferir lidar diretamente entre si em vez de apostar em soluções multilaterais, além de priorizar uma agenda tradicional de segurança. E, em um ambiente geopolítico conflagrado como o atual, “potências médias e regionais têm muito a perder se se opuserem a um dos blocos que estão se formando, um euroatlântico e o outro com Rússia e China.”
Apesar do esforço das potências médias, como o Brasil, buscarem esse equilíbrio, ele avalia que parte do Ocidente já “comprou a ideia de que o Brics é antiocidental”, diz Vieira.
Brics cresceu: como funcionará
Formado originalmente por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, o Brics recebeu a adesão de Egito, Etiópia, Irã e Emirados Árabes Unidos em 2024, e da Indonésia em 2025.
Somados, esses países respondem por mais de 40% da população mundial e mais de um terço do PIB global com base na paridade do poder de compra, superando os países do G7.
Há grande heterogeneidade entre os membros. A China sozinha responde por cerca de 60% do PIB do grupo, e sua economia é quase cinco vezes maior do que o segundo colocado do Brics, a Índia. China, Rússia e Índia têm armas nucleares, mas só as duas primeiras possuem assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. E entre os membros originais, apenas Brasil, Índia e África do Sul são democracias.
Essas diferenças cresceram com a inclusão dos novos membros. Em abril, os ministros das Relações Exteriores dos países do grupo, reunidos no Rio, não conseguiram chegar a um consenso para um comunicado final. Em particular, Egito e Etiópia não concordaram com a linguagem usada para pedir a reforma do Conselho de Segurança da ONU, ao qual Brasil, Índia e África do Sul há muito pleiteiam um assento permanente.
Vieira considera que a cúpula do Rio poderá ser a primeira nas quais divergências entre velhos e novos membros podem surgir. Para Maihold, a regra de unanimidade para a tomada de decisões colocará empecilhos significativos no longo prazo ao Brics, e ele considera que seria importante o grupo rediscutir suas regras de governança.
Alternativas ao dólar: ameaça de Trump pesou
A adoção de alternativas ao dólar para comércio entre os países do grupo, como a adoção das moedas locais ou de instrumentos de pagamento próprios, apareceu no comunicado final da cúpula de Joanesburgo, em 2023, e também foi discutida na reunião de 2024, em Kazan, na Rússia.
Lula não foi a Kazan, devido ao acidente doméstico que sofreu na semana anterior, mas fez um discurso por videoconferência no qual afirmou: “Agora é chegada a hora de avançar na criação de meios de pagamento alternativos para transações entre nossos países. Não se trata de substituir nossas moedas. Mas é preciso trabalhar para que a ordem multipolar que almejamos se reflita no sistema financeiro internacional”.
Um mês depois, no entanto, Trump ameaçou impor tarifas de importação de 100% aos países do Brics que tentassem substituir o dólar no comércio internacional, seja usando outra moeda ou criando uma nova moeda do Brics.
A ameaça teve impacto. Vieira avalia ser alta a chance de a declaração final da cúpula do Rio não mencionar meios de pagamento alternativos ao dólar, para reduzir o risco para países do bloco de enfrentarem novos anúncios de tarifas de Trump.
“Lula tem sido um protagonista sobre esse tema, mas isso está muito abaixo na lista de prioridades [desta cúpula]”, afirma Maihold.
Toque brasileiro: participação da sociedade civil
Como atual sede da presidência do Brics, o Brasil abriu espaços de interação com a sociedade civil para debater o que ela considera que seja importante priorizar na atuação do bloco.
A Secretaria-Geral da Presidência da República selecionou dez grupos da sociedade civil, com critérios que “combinavam representatividade institucional e alinhamento com as prioridades da presidência brasileira”. Eles puderam apresentar diretamente suas propostas aos negociadores dos países-membros, os chamados sherpas.
Houve pedidos, por exemplo, para uma maior participação feminina nos espaços de poder e pela inclusão dos sindicatos no monitoramento de políticas públicas. Foi a primeira vez que isso ocorreu numa cúpula do Brics, e emulou uma estratégia que já havia sido adotada pelo Brasil na cúpula do G20 no Rio, em novembro passado.
Vieira avalia que a iniciativa deve ter desagradado alguns membros do Brics. “Isso é algo que a China e a Rússia odeiam. Essa conversa sobre sociedade civil, direitos humanos, nesse formato, para a China é algo que não respeitaria o que ela chama de pluralidade de civilizações”, diz.
Além disso, os especialistas esperam que Lula tentará usar a cúpula para obter prestígio internacional em um momento de relativo enfraquecimento no cenário doméstico, envolto em disputas com o Congresso sobre tributação, e projetar influência para a COP30, que será realizada em novembro em Belém.
O que mais?
A cúpula do Rio também poderá debater a eventual adesão da Tailândia e do Vietnã, com o potencial de deslocar a balança do grupo ainda mais para o Sudeste Asiático.
Por fim, se nas grandes questões políticas e econômicas a chance de resultados concretos nesta cúpula é baixa, Vieira avalia que as reuniões mantidas em nível técnico entre burocratas dos países sobre temas variados, como educação e saúde, têm potencial para produzir efeitos práticos, como em cooperações técnicas entre universidades e para a pesquisa científica.
“Ainda mais em um mundo em que o grande líder nas questões científicas de saúde e educação, os Estados Unidos, têm se retirado. Mas isso terá efeito mais no médio e longo prazo”, afirma.