02/11/2025 - 14:32
Modelos sociais centrados no cuidado, no consenso e na equidade de gênero desafiam a lógica dominante – e não são utopia, mas realidade em partes do mundo.Um sistema em que as decisões são tomadas por consenso e a opinião de todos têm o mesmo peso, independente de gênero, e em que jovens, adultos e anciãos decidem em conjunto, respeitando o saber de cada etapa da vida. A sociedade é matrilinear – ou seja, centrada nas mães e sua importância como nutridoras na comunidade. O sistema político é igualitário, e não baseado na centralização de poder. A economia é assentada em partilha justa, e não em acumulação. A espiritualidade é vivida em conexão aos ciclos da natureza e as pessoas percebem divindades como imanentes, não como uma força externa masculina e onipotente.
Parece utópico? É a descrição de uma sociedade matriarcal, sistemas que existiram há milhares de anos e ainda são preservados por algumas comunidades tradicionais ao redor do mundo – inclusive na América do Sul e no Brasil. Movimentos e pesquisas resgatam essas formas de vida e de organização social, que podem oferecer esperança em um mundo que enfrenta múltiplas crises.
Pioneira de estudos modernos de matriarcado é alemã
A pioneira nos estudos de matriarcado é a alemã Heide Göttner-Abendroth, uma pesquisadora de 84 anos com cabelos grisalhos e fala calma que vive nos arredores de Munique, no sul da Alemanha. Ela começou a se interessar pelo tema aos 21 anos, enquanto ainda era estudante de filosofia.
A curiosidade latente e a escassez de pesquisas sobre matriarcado a levaram a iniciar os estudos modernos sobre o tema, que conduz desde 1986 na Academia Hagia, fundada por ela ao se dar conta da reprodução da lógica patriarcal em espaços universitários e do interesse crescente pela área à qual passou a dedicar a vida.
Ela enfatiza que, para entender o conceito de matriarcado, é necessário compreender a etimologia da palavra, que provém do grego e significa “no princípio, as mães”, enquanto patriarcado significa “o domínio dos pais” ou “o domínio dos homens”. Para ela, isso já entrega que o matriarcado não é simplesmente a oposição ao patriarcado, mas um modelo completamente distinto.
Conforme Göttner-Abendroth, o patriarcado é baseado em três pilares: a crença de que o ser humano pode subjugar a natureza (antropocentrismo); a crença na superioridade masculina sobre a feminina (machismo); e a crença na necessidade de subjugar outras nações (imperialismo). Em sociedades matriarcais, as mulheres não necessariamente governam, porque as decisões são tomadas por consenso. Ali, existe o aspecto da equidade entre gênero e idade e a proposição de modelos igualitários e complexos, que vão além da linha matrilinear.
“Elas são mais democráticas do que nossas democracias formais”, explica. “Essas questões são tão fascinantes que elas são relevantes para o nosso mundo hoje.”
É possível implementar o matriarcado?
“O modelo matriarcal não é uma utopia, ele é uma realidade, porque ele existe e existiu por muito tempo”, afirma Göttner-Abendroth.
Segundo ela, esses sistemas dão esperança às pessoas porque elas passam a ter “algo pelo qual lutar, não só algo contra o qual lutar”: “um modelo no qual todas as pessoas são respeitadas e vivem bem”.
“Sociedades matriarcais eram fortes no passado porque as mulheres lideravam sua comunidade. Precisamos disso hoje novamente”, defende a pesquisadora. “Vivemos em tempos tão estranhos, em que os direitos das mulheres são questionados, a extrema direita fica cada vez mais radical, há guerras por toda parte.”
Göttner-Abendroth diz que é preciso encontrar formas de implementar características de sociedades matriarcais hoje, mas que isso não pode ser feito simplesmente por imitação ou cópia.
Na economia, isso poderia passar pela priorização da divisão coletiva de bens em vez da posse; na cultura, pelo reconhecimento da Terra como mãe de toda a vida e do fomento ao respeito pela natureza; na esfera política, pela busca de consenso coletivo nas tomadas de decisões.
“Não precisamos nos deixar comandar, mas podemos, em nossas redes, comunidades, círculos de amigos, encontrar o consenso”, exemplifica.
Há comunidades que ainda vivem o matriarcado ao redor do mundo. Na África e na Ásia, as etnias moso, minankabau e kasi são as mais preservadas. Porém, Göttner-Abendroth afirma que achou mais desafiador encontrar etnias matriarcais bem preservadas na América do Sul e no Brasil, justamente por causa da colonização e da fragmentação de alguns povos.
Ela mencionou os wayuu em La Guajira, localizado em partes da Venezuela e norte da Colômbia, os uros, que vivem no Lago Titicaca, ainda no território peruano, e os arawak, no Brasil, como exemplos de povos que ainda preservam padrões matriarcais, embora estejam ameaçados.
Povos indígenas no Brasil resgatam tradições matriarcais pré-colonização
Povos indígenas do Brasil buscam resgatar tradições matriarcais pré-colonização, que foram dissolvidas com a chegada do homem branco. A indígena mura Monica Lima é uma dessas ativistas. Ela é coordenadora de Medicina Ancestral Matrilinear do movimento Matriarcado Ancestral, professora da Universidade Indígena Pluriétnica Aldeia Maraka’nã (UIPAM) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Fundado na pandemia, o Matriarcado Ancestral tem o objetivo de resgatar tradições que, segundo Lima, foram apagadas. A sede do coletivo é na Aldeia Portal da Floresta, na Ilha Grande (RJ), e o grupo trabalha com plantas medicinais, espiritualidade, formação e atividades pedagógicas.
“Na essência, somos um coletivo de mulheres que acolhem mulheres e seus filhos que estejam em uma situação de violência de algum tipo”, resume Lima.
Ali, eles fazem o que Lima nomeia de “retomada indígena”: o processo de reconhecer a própria ancestralidade – trabalho que já lhes rendeu ataques e ameaças, afirma a indígena.
“Viver o matriarcado não quer dizer que a mulher vai dominar o homem. É a justiça, a equidade entre as forças masculinas e femininas. Nesse matriarcado, as mulheres geriam a terra, cuidavam da terra, plantavam, como até os dias de hoje nós cuidamos da alimentação das pessoas, mas não gerimos mais a terra, porque a terra e a terra-corpo já foram tomadas pelo capitalismo neoliberal”, explica.
Lima afirma que, no matriarcado indígena, o cuidado com a prole é coletivo. “É diferente da sociedade do branco e do colonizador, em que as mulheres e os idosos são isolados. No momento em que a mulher mais precisa de apoio e de rede, que é quando ela tem um filho, é quando ela mais se isola”, critica.
Também há o respeito por pessoas de todas as idades e decisões tomadas por consenso. “O idoso tem que ser honrado, eles são nossas bibliotecas. Nós honramos essa ancestralidade e temos o diferencial de resolver de igual para igual, com muito papo e coletividade, tentando sempre o acordo”, pontua.
Ela também lembra que a figura do cacique nas aldeias é o de mediador de conflitos, papel que ficou centralizado como “chefe de aldeia” com a chegada da colonização.
“Esse retorno do matriarcado é a negação de tudo o que a gente vive hoje. Se a gente viver o matriarcado, a gente cura todas as crises existentes, porque se para de desmatar e as mulheres vão voltar a ocupar o lugar que é ocupado pelo capitalismo. Não é à toa que a sede do Matriarcado Ancestral é atacada”, afirma a indígena.
O poder da mulher em sociedades pré-incas
Entender a história é também um exercício de reinterpretação. Por isso, há pesquisadoras que questionam o que chamam de “olhar patriarcal dominante” sobre o passado. É o caso da historiadora peruana Maritza Villavicencio, que estuda o poder da mulher em sociedades pré-incas.
Ela é autora do livro Poder feminino: 5000 anos de história no Peru, que trata do protagonismo de mulheres no Peru pré-hispânico. Descobertas arqueológicas recentes interpretadas por ela apontam que, ao contrário do que se disseminava até então, as mulheres tinham poder político, geriam bens e governavam sociedades em povos que ocuparam o território que hoje é o Peru. No entanto, Villavicencio lembra que não se pode afirmar que essas sociedades eram matriarcais, mas que o poder era matrilinear.
No início de seu trabalho, ela enfrentou resistência de pesquisadores homens, que a criticavam por entrar no ramo arqueológico sendo historiadora. Além disso, ela conta que não se sentia representada pelo olhar do Norte Global nas pesquisas.
“E quem disse que se o meu país tem mais de 14 mil anos de história eu tenho que estudar somente os últimos 500?”, questiona Villavicencio.
A historiadora afirma que havia mulheres de muito poder no Peru pré-inca, como a Senhora de Cao, que governava uma sociedade mochica e foi descoberta em 2008, e a Senhora de Chornancap, que foi encontrada enterrada ao lado de outras oito mulheres na região de Lambayeque, no norte do Peru.
Villavicencio questionou as pesquisas que as apontavam apenas como “sacerdotisas” e afirma que elas governavam, gozando de prestígio e status social. “Se a linhagem matrilinear tinha esse peso, é porque a vida tinha outro peso”, diz.
Ela reforça que tudo o que hoje é colocado como “cuidado” feminino eram atividades reconhecidas e valorizadas nessas sociedades. “Os espaços de poder para as mulheres eram a maternidade, a alimentação, a taumaturgia [magia], a produção têxtil e a mineração”, explica.
Os símbolos de poder femininos também podem ser observados, segundo ela, na cerâmica e na arquitetura. “A história pode servir para isso: para tomar modelos e identificar onde houve espaços de poder das mulheres”, reflete.
Nessas sociedades, Villavicencio pontua que “a guerra não era mais importante do que dar à vida, a arte de matar não era superior a dar à luz”. “Isso não significa que não havia conquistas ou anexação [de territórios], mas eram de outra maneira.”
“O que temos que fazer é alterar o olhar. A vida e a força de trabalho eram as mulheres”, finaliza.
